terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pipocas Pedagógicas: Contar a aula, Reencantar a Escola


Marcemino Bernardo Pereira*
Cristina Maria Campos*
(Glória, Mafê, Ana Aragão, Rosaura, Super-homem, Jéssica, Leonardo: pessoas/personagens dessa história)

            As Pipocas são escritos de professores que participam do Grupo de Terça do Gepec[1]. Estes escritos do cotidiano escolar, quando postados na nossa lista de discussão, adquirem novos sentidos por conta dos diálogos e silêncios que provocam. Não são escritos que lutam desesperadamente por um fim; ao contrário disso, fazem da falta de acabamento o seu motivo, afinal, são diálogos de muitas vozes.
As Pipocas pedagógicas contadas pelo Marcemino

               Em Agosto de 2008, a lista do Grupo de Terça do Gepec estava “pipocando” como nunca. Então postei esta, que transcrevo a seguir, intitulada  “Prova” no espaço “assunto” do correio eletrônico..

               “Já faz muito tempo que não aplico uma prova,  mas em meio a sinais dos tempos como Saeb, Enem, Saresp e outros a serem criados, sinto ser da minha responsabilidade treinar os alunos nesta modalidade de avaliação. Não foi fácil elaborar perguntas objetivas, com uma margem segura de respostas previstas e mensuráveis. Mas fazer o quê, esta ainda é a maneira mais eficiente de se calcular a rentabilidade dos conteúdos aplicados. São aplicações de renda fixa a curtíssimo prazo, mas o rendimento é baixo e o risco é alto.  Não se inventou ainda uma álgebra que dê conta de tanta complexidade.
               No dia “marcado”, o Leonardo veio encontrar-me à porta da classe como se quisesse me comunicar um fato grave:
               -Professor, a escravidão ainda não acabou!
               Fiquei surpreso com a afirmação dele, não respondi nada e ele continuou a falar, quase que impedindo a minha passagem:
               -Passou numa reportagem que no sul do Pará tem 35 escravos.
                Eu ensaiei uma resposta, mas parecendo ter saído do nada, logo atrás dele, a Jéssica também comentou a noticia, disse que ia passar no programa da Record. Achei engraçada a reação dela, que disse ter ficado revoltada quando viu aquilo na  televisão.
               Fui para a minha mesa enquanto eles se ajeitavam. Os alunos estavam todos sentados e pedi licença para contar o que os dois haviam me contado. A Jéssica murmurava e reclamava baixinho como se protestasse, enquanto remexia nas coisas coloridas que ela sempre tem sobre a carteira, já o Leonardo permanecia  atento e com ar sério. Contei o assunto para turma e dois ou três também relataram casos que tinham visto na tv. Emendei com informações sobre este tipo de escravidão no Brasil e também na Ásia, em seguida fechei a conversa com um alerta: que da próxima vez que eles comprassem um produto desses vindos da China, que se lembrassem do trabalho escravo e da exploração de crianças. Eu estava com pressa e não vi qual foi a reação do Leonardo e da Jéssica, mas certamente eles concordaram, fazendo um “é isso mesmo” com a cabeça.
               Como disse, eu estava com pressa. Pedi que se arrumassem as fileiras de carteiras, que destacassem uma folha do caderno e que não virassem as folhas com as perguntas que passei entregando, só poderiam virá-las quando eu terminasse de entregar. Pronto, agora podem olhar as perguntas da prova. Assunto: Fim da Escravidão”.

        
               Em 2008 eu estava especialmente sensibilizado e apreensivo com o avanço das avaliações externas e a ameaça de apostilamento das redes públicas de ensino. Faz muito tempo que não ensino na perspectiva da transmissão de conteúdos e no treino para realizar “provas”; tenho insistido no desenvolvimento das muitas possibilidades de aprendizagem do aluno, mas naquele momento eu estava um tanto inseguro frente ao avanço daquelas políticas, e com este escrito eu quis mostrar de que maneira -  mesmo que  por um momento muito breve - eu  fraquejei nas minhas concepções e tentei me enquadrar às provas de aprendizagem.
               Os colegas do Grupo de Terça logo começaram a postar suas respostas e impressões ao que eu havia escrito[2]:
               - Marcemino, às vezes acompanho as discussões do grupo de terça, por estar inserida na lista e porque acho muito interessante o que vcs postam nesta lista, Mas, agora, vc me desculpe, mas isto NÃO é uma pipoca pedagógica. Este é um dos textos mais interessantes que li sobre avaliação.
               Acho que vc deveria aproveitar este caso e fazer um belo artigo sobre ele, dissertando, analisando e discutindo, buscando "responder" às perguntas que vc propõe - disse enfaticamente a Prof.ª  Ana Aragão.
               -Fico muito feliz e agradecido por suas considerações, muito mesmo. Tenho pensado em produzir um texto mais extenso sobre alguns aspectos da minha prática, mas não tinha muita idéia por onde começar e você fez uma ótima sugestão. Deixa passar esta semana de Conselho de Classe na minha escola que vou começar a trabalhar a partir do que você disse - respondi respeitosamente e, porque não assumir, com um certo acanhamento frente ao convite/desafio posto pela Professora.
               A reação da Glória ao texto e às respostas das colegas  foi mais ainda mais provocativa:
               - Algumas vezes os textos poderiam estar junto com textos dos alunos, o que eles escreveram sobre a situação ou textos nos quais a mesma situação contada por você aparece em um texto ou desenho de aluno (mesmo que modificado); como o lance da carta dos alunos pra você;  acho que quando você contou isto na qualificação dizia que achava a escrita da carta uma mostra de que eles não tinham assimilado o que você queria ter ensinado e depois foi vendo que era quase que exatamente o contrario; não foi isto? Então fiquei pensando que  um diálogo, entre textos teus e dos alunos poderia gerar uma polifonia diferente da que ouvimos; não lemos os alunos junto com os professores, é sempre na dicotomia, um e outro; na sala de aula nem sempre é assim, nem sempre tem de um lado os alunos e de outro o professor, temos montes de lados. Não proponho um professor explicando o texto do aluno, explicando o que o aluno queria ter dito ou coisa assim, mas junto; eu tive professores que me provocavam pra escrever; amo eles até hoje. Você é um professor que provoca (e é provocado....) e então eu fico curiosa de saber qual foi a reação escrita dos alunos a algumas das situações contadas; também acho que este "miiu" seu está mais pra Canjica do que pra Pipoca.
                - Concordo com Glória - completou  prontamente a Rosaura.
                Eu só quis fazer um texto lembrete: “Não acredites nas provas porque as provas nunca provaram nada!!”, mas o diálogo no grupo recortou outros temas e eu já estava sem saber o que responder, então a Cris veio me salvar, mudando de assunto:
               -Marcemino, como demorei pra escrever, todo mundo já elogiou você demais, então só posso dizer que adorei e que a produção desse trabalho com sua turma ta lindo mesmo. Lembra que no início de semestre conversamos sobre a questão do negro, você me mostrou umas cartas  escritas por seus alunos sobre a Melanina, olha onde chegou isso. Falei para os meus heróis que ia convidar um amigo meu aqui da Terra pra falar um pouco sobre a Melanina com eles, ai vc leva todos esses lindos pra ajudar.
              
               Para mim, a escrita das pipocas é exercício de formação continuada porque nos põe a pensar sobre estes pequenos eventos dialogados, estes fragmentos de conversa do cotidiano da escola que nos tocam porque nos dizem algo sobre nós mesmos, sobre nossas práticas, sobre os alunos, sobre a escola; ao mesmo tempo, quando postadas na rede, por conta também do diálogo que se estabelece, gira o nosso olhar para um novo foco, constroem-se outros sentidos por meio das palavras do outro.
As Pipocas pedagógicas contadas pela Cris
            Quando iniciei o processo de escrita das pipocas em 2008, buscava apoio no meu grupo de pesquisa o GEPEC, leitores que a partir da leitura dessas pipocas me apontavam o Sul, afirmando com seus comentários que todas as vezes que fugia do padrão da escola e viajava pelo mundo com meus alunos seguia o caminho correto. Mesmo que o caminho correto para mim fosse o contrário da escola, ou pelo menos, da escola onde trabalho há dez anos.
            Após postar muitas pipocas e receber comentários, explicar, contar, recontar a escola e fazer o mesmo com algumas pipocas de meus amigos, resolvi ler algumas para meus alunos, afinal, eles eram o tema central de minhas pipocas, porque tudo naquela turma era tratado como a grande descoberta da vida. Muitos assuntos tratados em aula que para muitos podiam ser considerados corriqueiros, para eles eram motivo de espanto, festa, e isso era demonstrado nas feições e olhares deles.
            Em cada leitura novo comentário surgia, risos e a descoberta de cada aluno como parte da pipoca, ou seja, como personagem de uma história escrita, o que me levou a outra reflexão. Ao escrever pipocas sobre o cotidiano dos meus alunos, nós estávamos também fazendo história e dividindo-a com outros que por serem leitores também faziam história. Segundo Prado e Soligo (2005):

Afinal, se ler possibilita acessar informação, conhecer o que era ate então desconhecido, produzir sentidos a partir dos textos escritos pelo outro, desejar muito mais leitura e o que ela se conquista, dialogar, relatar, descrever, informar, comentar, explicar, analisar, discutir, opinar e manifestar tudo o que se acha por bem, por escrito, possibilita o exercício da necessária expressão. E da generosidade. E do compromisso. Não só com o outro, mas também conosco. Com o outro porque essa é a forma de compartilhar. E conosco porque a escrita permite a cada um de nós se conhecer melhor e se dar a conhecer aos outros. Pg 25.
           
Assuntinho: Pipocas Street Dance, de 12 de junho de 2008
 
               Queridas pessoas do GEPEC de terça, não quero escrever mais, prefiro ler as que estão para chegar, mas as coisas na minha sala rolam, acho que é porque tem mais heróis que mortais, então não tem jeito né.
               Essa coisa tem a ver mesmo com as coisas que falamos nos encontros, temos que ter uma relação de afeto com o aluno, o resto a gente pensa depois.
Beijos   Crishop
 
Get Up/Sex Machine

               “Ontem o Super-homem liberou-se de vez da Kriptonita que o impedia de participar ativamente da vida do Planeta Terra.       
               Participou das atividades, brincou, conversou e mostrou-se feliz, o que para os heróicos ocupantes da “Sala da Justiça” foi a GRANDE Vitória, muito mais difícil do que “lutar” diariamente contra a Vilã de Sedna.
               Conquistada com agrados, elogios, leituras intermináveis de gibis, sorrisos, piscadelas e às vezes um pouco de “tacones lejones” no bumbum, mais para rir do que para corrigir.
               A magia é que ele chegou. Confuso, com dúvidas, mas mostrou a que veio, pergunta, responde e muitas vezes questiona, o que às vezes nos deixa pensando:
               - Onde acho uma boa dose de kriptonita?!!!
               Pretende ser o maior herói da “Sala da Justiça”, Homem Aranha! Dupla Dinâmica! Bem 10? Matrix! X-Men! Hulk!! Talvez respeite as mulheres: Maravilha, Biônica, Vampira e defenda sempre a Pequena Sereia e brinque com a Shyra.
               A escola recém descoberta, os muitos “As” da tartaruga, o lado “errado” do número 1, o livro inatingível da “biblio”, a altura da lousa, pequenas coisas que me levam a observar a escola através do olhar de um pequeno grande homem.
               Hoje na hora da Produção de Texto perguntei para turma:
               - Sobre o que escreveremos hoje? Depois de muitas falas e confusões a música ganhou, então o tema foi “Se eu fosse música eu seria...”
               Homem Aranha pede ajuda pra escrever que seria uma música do Edson e Hudson e tocaria sempre para sua mãe, para espanto do Super, que ODEIA esse tipo de “som”.  Passado o tempo da escrita completa do texto do amigo, vem e pergunta:
               - Cris você me ajuda também? - Claro! Respondi bem alegre, batendo a mão na dele no puro estilo Hip Hop.
               Falei para ele pegar o caderno e perguntei:
               - E você Super-Super qual música seria?
               A resposta foi um giro completo rápido demais, deixando apenas um som no ar.
               Seguro o pequeno herói e digo:
               - Foffys agora você fala, só mais tarde dança. Resposta, pior que exata:
               - A música é pra dançar Prô. Após uma pequena conversa com medo de que o herói retorne para Kripton, voltamos a escrever:
               - Se eu fosse uma música eu seria ”Guiroupa”, pra rolar um som, pra “galera” dançar a noite toda. Notando o meu espanto, completa:
               - Esse som é do James Brown!
Conheço a música, mas me espantei porque era da adolescência do meu irmão mais velho, que é de “1500” e mesmo sendo o som dos B.Boys, achei muito para ele. Perguntei:
- E como escreve isso? Depois de um tempo me olhando e pensando um pouco provou que sempre esteve presente na aula, apesar da distancia:
- Ah, do mesmo jeito que fala!”

Mensagens postadas na rede após a circulação desta pipoca:
Cris,
 definitivamente estou apaixonada pelo Super-homem. Se ele fosse pelo menos uns 30 anos mais velho (não precisava mais não...) eu vestiria minha roupa de Orquídea Negra e roubava ele para meu jardim... ou melhor ia com ele pra sua sala!
Mande beijos perfumados pra ele
gloria

kkkkkkkkkkkkkkkkkk, maluca pior que ele é lindinho e dança bem. Imagina qd ele tiver 30 pq agora só tem 06. É inteligente e agora ta vivendo a escola. Sabe que to até achando que de repente a escola tem futuro mesmo. Não essa trilha conhecida, como vc falou tão bonito no último encontro, mas uma trilha escrita, arranjada e executada por heróis, piratas, E e Ts da Mafê e isso muito me alegra.
Beijos

... “Guiroupa”... :que foooofo!
Cris que delícia!
A música foi a “Kriptonita vermelha” ( E já assistiu ‘As aventuras do Super-boy’?) que trouxe tanta espontaneidade  e desejo para o Super-Homem nesta semana?
E a sua maneira de conduzir as produções de texto... Fico curiosa, pois aparece sempre em seus relatos escritos e orais. Quero saber mais!
Tenho aqui algumas pipocas a serem digitadas... Meu olhar “registrado”, em anotações pequenas são sempre em torno de questões que chamam minha atenção, por temas reincidentes, perguntas, pedidos das crianças...ou até mesmo gestos que se repetem muito entre eles... Coisas que indicam objetos de estudo para a turma...
Você me inspira a tentar escrever sobre pequenos gestos, palavras e cenas que mostram quem são as crianças, como pensam e elaboram idéias nos diálogos com os colegas e com a prô!
Obrigada por sua disponibilidade e partilha de cenas tão preciosas!
Abração,
Mafê.
               Após dois anos intensos de ‘pipocas’ penso que escrevo porque meus alunos e eu produzimos conhecimentos e construímos nova forma de nos relacionarmos e produzir vida dentro da escola.
               Acredito que quando escrevo uma pipoca e ela proporciona um debate, estou trabalhando com Formação de Professores. Cada pipoca estourada e saboreada no grupo nos informa e nos forma nos obriga a questionar e a rever nossas práticas a cada momento da aula, humanizando as relações da escola através do olhar do outro. Como afirma Arnaldo Antunes na canção, Seu Olhar (1995):
O seu olhar agora
O seu olhar nasceu
O seu olhar me olha
O seu olhar é seu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu
              
Outros interlocutores
ANTUNES, Arnaldo. CD Ninguém, RCA. 7432126593-2 (C)1995.
BAKHTIN, M. (1979) Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SOBRAL, A. Ético e estético. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
Campos, Cristina M.; Cunha, Glória P. da; Pereira, Marcemino B.; Buciano, Maria Fernanda P.; Queiroz, Wilson. De “Pipoca Pedagógica” a Cordel – experiências narrativas no “GEPEC de Terça”. In IV Congresso INternacional de Pesquisa (Auto) Biográfica, São Paulo: FE – USP, 2010. 1 CD-Rom.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W. Benjamin. 2ª ed. Revista, São Paulo, Editora Perspectiva, 1999.
GERALDI, C. M. G. Currículo em ação: buscando a compreensão do cotidiano da escola básica. Revista Pró-posições. Vol 05. nº03 [15]. Novembro de 1994.
LARROSA, J. Pedagogia profana – danças, piruetas e mascaradas. 4ª ed., trad. Alfredo Veiga-Neto, Belo Horizonte, Autêntica, 2004
PRADO, Guilherme do Val Toledo, SOLIGO, Rosaura. Porque Escrever é fazer História. Revelações, Subversões, Superações. SP. 2005.


*Sou professor de História da rede municipal de Campinas e leciono na E.M.E.F. “Pe. Melico Cândido Barbosa”. Fiz mestrado em educação pelo Gepec sob orientação da Profa. Dra. Corinta Maria Grisolia Geraldi. Estou no programa de doutorado por esta mesma instituição e com a mesma orientadora. marcemino@uol.com.br.

* Mestre pela Faculdade de Educação da UNICAMP, integrante do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada. Professora da Prefeitura Municipal de Campinas. E-mail: Cristina.crishop@gmail.com
[1] O GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada iniciou suas atividades      informalmente no ano de 1984, sob a coordenação da Profa. Dra. Corinta Maria Grisolia Geraldi, reunindo professores da Faculdade de Educação da UNICAMP, estudantes e profissionais da educação da escola básica, com o intuito de, nesses encontros, problematizarem se questões relativas à formação de professores

[2] Estes diálogos foram escritos originalmente como respostas de e-mail numa lista, daí algumas marcas deste gênero de escrita, como as abreviações. Mantive a escrita tal qual foi postada, introduzindo-lhes apenas o travessão e uma certa ordem que desse sentido e clareza para o diálogo que se seguiu. 

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