Amanda Bastos Amorim de Amorim[1]
amandabastos1987@gmail.com
A neurolingüística encontra-se num campo de conhecimento híbrido, pois recorre tanto às neurociências quanto à lingüística para o estudo de seus objetos. Os estudos mais tradicionais tanto em neurociências quanto na neurolingüística são predominantemente quantitativos, utilizando testes-padrão, que visam o diagnóstico de alterações de linguagem nas patologias. Há diversas baterias validadas, traduzidas e aplicadas mais ou menos da mesma forma, em todo o mundo, tanto para fins de pesquisa como na prática clínica de avaliação e acompanhamento terapêutico.
As unidades privilegiadas pelos testes – palavras e orações –, como aponta Bakhtin (2003), são abstrações, recursos da língua que só têm valor no enunciado, este sim a unidade real da comunicação verbal, o que reforça o argumento da artificialidade das tarefas metalingüísticas quando o objetivo seria compreender o funcionamento da linguagem. Nas palavras do autor (Bakhtin, 2003: 306):
Quando se analisa uma oração isolada, destacada do contexto, os vestígios do direcionamento e da influência da resposta antecipável, as ressonâncias dialógicas sobre os enunciados antecedentes dos outros, os vestígios enfraquecidos da alternância dos sujeitos do discurso, que sulcaram de dentro o enunciado, perdem-se, obliteram-se, porque tudo isso é estranho à natureza da oração como unidade da língua. Todos esses fenômenos estão ligados ao todo do enunciado, e onde esse todo desaparece do campo de visão do analisador deixam de existir para ele.
A crítica de Bakhtin não incide completamente sobre os modelos, desde que esses sejam tomados apenas como modelos, tendo em vista os limites explicativos dos mesmos. Caso contrário, se eles têm como objetivo referir-se ao todo da linguagem, transformam-se em ficção científica (2003). Sobral (2005b: 115) sintetiza esse posicionamento:
[...] vem em primeiro lugar a necessidade de, na pesquisa, levar em conta que o empreendimento teórico que esquece as especificidades do objeto, sua singularidade, sua inserção particular é teoreticista, absolutista. Um trabalho que propõe encerrar o abjeto na camisa-de-força da teoria, ou das limitações do pesquisador, ao mesmo tempo em que o empreendimento que se perde da especificidade, não incidindo seus esforços sobre o que o fenômeno estudado tem de comum com outros fenômenos, não é propriamente pesquisa, mas prática relativista que só vê no espelho do outro aquilo que ele mesmo lá inseriu.
Por isso, optamos por uma abordagem que privilegie a linguagem em uso às situações artificiais criadas nos testes, bem como privilegiamos os estudos de casos em oposição a estudos quantitativos que apaguem os indivíduos, pois dessa maneira torna-se possível estudar fenômenos particulares sem perder de vista o todo que nos interessa: a linguagem em seu funcionamento real, considerando sempre “a relação entre os aspectos generalizáveis e os aspectos particulares do fenômeno” (Sobral, 2005b).
Dessa maneira, a neurolingüística de abordagem enunciativo-discursiva, em desenvolvimento desde os primeiros trabalhos de Coudry (1986/1988), tem por objeto de estudo fenômenos presentes em enunciados produzidos em situações dialógicas, em oposição àqueles produzidos nas situações descontextualizadas dos testes. Novaes-Pinto (1999) agrega a essa discussão diversas noções bakhtinianas, dentre as quais destaco a noção de sujeito, que desde então norteia diversos estudos que compartilham dessa abordagem.
A noção bakhtiniana de sujeito situado (Sobral, 2005a: 22) possibilita que escapemos às visões tradicionais tanto de sujeito assujeitado quanto de sujeito fonte do sentido, colocando-nos numa posição em que vemos a nós mesmos e aos outros como responsáveis em relação aos atos. As escolhas que fazemos como pesquisadores são, portanto, também escolhas éticas. Assim, quando optamos por determinadas noções, estamos excluindo muitas outras possíveis, o que nos confere uma determinada posição frente aos fenômenos estudados. De acordo com Novaes-Pinto (1999: 173):
O lugar que ocupamos enquanto interlocutores de sujeitos afásicos ou portadores de demência é, de certa forma, único. Lidamos com esses sujeitos como seres íntegros, inseparáveis de suas dificuldades com a linguagem. Lidamos com seu sofrimento e com sua condição de afásico em uma sociedade que os discrimina, que tira seus empregos e que os fazem calar. Ao mesmo tempo, enquanto profissionais, temos que voltar ao nosso lugar, criar um distanciamento com relação aos sujeitos para que possamos ajudá-los.
É fundamental, a fim de dar conta desse distanciamento, desenvolver nosso excedente de visão, que “permite que possamos ao mesmo tempo avançar no conhecimento dos fenômenos, que é um dos objetivos da nossa pesquisa, e ao mesmo tempo nos constituirmos como verdadeiros interlocutores dos sujeitos afásicos” (Novaes-Pinto, 1999).
A leitura e releitura dos textos de e sobre Bakhtin propicia constantes reflexões sobre as metodologias de pesquisa da neurolingüística de abordagem enunciativo-discursiva. A fim de mantermos uma postura ética e responsável é fundamental que reflitamos sobre como a abordagem teórica influencia a prática metodológica, uma vez que o método, conforme vimos, não é uma escolha isenta de posicionamento. Mais uma vez, nos aproximamos do pensamento bakhtiniano (Sobral, 2005b: 105):
O empreendimento bakhtiniano consiste em propor que há entre o particular e o geral, o prático e o teórico, a vida e a arte uma relação de interconstituição dialógica que não privilegia nenhum desses termos, mas os integra na produção de atos, de enunciados, de obras de arte etc.
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
COUDRY, M.I.H. Diário de Narciso – discurso e afasia. São Paulo : Martins Fontes, 2001 [1986/1988].
NOVAES-PINTO, R.C. Uma contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias clínicas. Tese (Doutorado em Lingüística). Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, Campinas , 1999.
SOBRAL, A. “Ato/atividade e evento”. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo : Editora Contexto, 2005a.
_________. “Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas”. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo : Editora Contexto, 2005b.
[1] Aluna de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP) e bolsista Capes.
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