segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Parecer consubstanciado: da análise ética à ética em pesquisa


Vânia Lúcia M. Torga
Universidade Estadual de Santa Cruz
O presente texto se constitui  a partir de um pensar acerca de minha experiência como membro de um comitê de ética em pesquisa com seres humanos. Mais especificamente sobre um gênero discursivo – o Parecer Consubstanciado.
Este documento é emitido após a análise ética que contempla a identificação de pontos controversos de um projeto de pesquisa com seres humanos, indicação dos riscos e dos benefícios para os sujeitos da pesquisa, bem como o respeito à sua autonomia, qual seja o direito que lhe é garantido de não participar ou deixar de participar da pesquisa durante o seu desenvolvimento.
No manual operacional para os comitês de ética em pesquisa do Ministério da Saúde, no seu texto introdutório diz que o ser humano formula perguntas, busca respostas, se comportando assim, ora como filósofo, ora como pesquisador.
Desses lugares, o homem se defronta/confronta com o outro, com o mundo, com questões acerca dos valores humanos, em especial, com a ética.
Sem me deter no histórico, mas nas razões que fazem pensar a relação ético/ética nos CEPs e seu documento final, não posso deixar de relembrar os antigos códigos como o de Hamurabi, código de Nuremberg, as “Diretrizes Internacionais” dos conselhos científicos das organizações médicas, no Brasil, as resoluções 1/88 e finalmente a Resolução 196/96fruto das reflexões acerca dos atos da humanidade conforme a história registra.
A Resolução 196/96, ainda que elaborada a partir de princípios médicos, caracteriza-se por ser multi e interdisiciplinar, contemplando, portanto, o fazer, o pensar da sociedade na contemporaneidade. Todos estes documentos têm como basilar as questões éticas.
Segundo Hossne (2002,p. 9).
Característica fundamental da Resolução 196/96, reside no fato de que a mesma não é um código de moral, nem lei. Ela é uma peça de natureza bioética, entendendo-se, por tal, análise e juízo crítico sobre valores (que podem estar em conflitos), o que exige condições básicas para tanto. Assim, liberdade para proceder às opções, não preconceito, não coação, grandeza para alterar opção, humildade para respeitar a opção do outro, são condições essenciais para o exercício da bioética.(grifo meu)

Em seguida, o mesmo autor continua:
                                  
Como prova de respeito ao trabalho dos CEPs, a Comissão Nacional de Ética me Pesquisa(CONEP), com apoio dos CEPs, solidarizando-se com a enorme carga de responsabilidade ética de cada um de sues membros, desencadeou a elaboração deste Manual, como forma de estímulo ao alcance da missão de cada comitê. Trata-se de um conjunto de orientações como subsídios à organização funcional e consequentemente ao melhor desempenho dos Comitês de Ética em Pesquisa.
           
            Este preâmbulo acerca da criação, funcionamento e objetivos dos CEP me indicia algumas reflexões interessantes neste XXI que corre célere, impondo-nos um novo pensar sobre o mundo, o homem sob uma perspectiva mais ecológica, digamos assim.
            Considerando as premissas de um CEPs, as quais demarcam “liberdade para proceder às opções, não preconceito, não coação, grandeza para alterar opção, humildade para respeitar a opção do outro”,  encontro uma via de articulação com as premissas bakhtinianas que tangem à ação do  viver e do conviver nas ciências; a dizer, o ato ético, a exotopia, a alteridade, a verdade, veracidade, a responsabilidade e responsividade. Pressupondo, acredito, ser esse um processo de tradução da intenção dos analistas dos CEPs, uma vez que, nas entrelinhas, percebe-se o tênue fio ético da ética do outro - o pesquisador e o  sujeito da pesquisa, consolidado na emissão final do Parecer Consubstanciado –  tornando-se um documento que  avaliza  e credencia a pesquisa sob a perspectiva dos princípios éticos.
            Não me deterei em analisar o Parecer Consubstanciado como um gênero discursivo – seu estilo, composicionalidade etc., mas como ele, alusivamente nos remete à síntese de uma filosofia de um ato responsável na  pesquisa, envolvendo  seres humanos.
Emerson (2010, p.69) afirma que
não há dois indivíduos cujas experiências coincidam inteiramente ou que pertençam exatamente ao mesmo conjunto de grupos sociais, todo ato de compreender envolve também um ato de traduzir, além de uma negociação de valores. È essencialmente um fenômeno de inter.-relação e de interação.

Se para Emerson o ato de compreender implicar um ato de traduzir, para Amorim (2004, p. 26) pode-se dizer que o “trabalho de pesquisa é uma tradução do que é estranho para algo familiar”. Logo, em meio a essa discussão, é possível aferir que o comitê de ética tem também esse papel de traduzir, via Parecer Consubstanciado, para o sujeito de pesquisa  a intenção do pesquisador. É válido lembrar que esse sujeito é portador de experiências que não são sempre coincidentes e são socialmente diferentes das experiências de pesquisadores e de membros de um comitê.
Isso indicia uma relação direta de “um” para o “outro”, entendo que as relações CEP, pesquisador e sujeito da pesquisa  mediadas pelo parecer, acontecem na perspectiva da ambigüidade do movimento constitutivo da análise fenomenológico-dialética, ou seja, entre o estranho e o familiar há uma determinação recíproca.
Assim as atividades dos CEPs, consubstanciadas no documento final, na perspectiva de um  trabalho de tradução, indicam um certo  deslocamento, como ação, como movimento ambíguo, espiralado, interlocutivo do familiar/ estranho e do estranho/familiar, pois um e outro, fragmentariamente, estão presentes no “um” e no “ outro”,  tais como  luzes/sombras. O movimento da pesquisa, e da análise pelos CEP, não se dá na articulação da linearidade ou de uma divisão formal, mas na ambigüidade, em que o familiar e o estranho dialogam dialeticamente com a mediação da teoria e do método.
É, também com Amorim (ib.), que entendo o momento de análise dos projetos e emissão do  documento  pelos CEPs, como o tempo e o lugar de  receber e acolher o outro, o estranho: o pesquisador e o sujeito da pesquisa; de deslocar-se do seu lugar para o lugar do outro, permitindo a escuta e a constituição da alteridade, para poder traduzi-la e transmiti-la ao final da análise com o Parecer Consubstanciado.
Por ”outro” entenda-se aquele(s) a quem nos dirigimos – o pesquisador que receberá seu  Parecer e  aqueles a quem a pesquisa tem como alvo - o centro do ato ético, os sujeitos da pesquisa - com os quais, como membros dos CEPs, nem pensamos encontrar ou dialogar, mas que se constituem  os interlocutores reais e ou virtuais. Corroborando com isso, é pertinente demarcar o que diz Bakhtin (1997, p. 113):

Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede alguém, como pelo fato de que dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a “um” em relação a”outro”. Através da palavra defino-me em relação ao outro, isto é, última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia em mim numa extremidade na outra apóia-se sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.

Logo, o outro também se instaura e se instala no discurso científico nos CEPs, já que somos seres inconclusos, inacabados. Como afirma Holquist (1990, p.164, citado por MACHADO,1995, p.37)  “o que vemos é governado pelo modo como vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos” e pressupõe uma resposta ao que vemos, porque vemos e a/de quem vemos. Somos o outro - tal como pontes -  nesta relação dialógica  entre o eu (CEPs) e o(s) outro(s) – pesquisador e sujeito da pesquisa.  Ou seja, este lugar de onde os membros dos CEPs falam tem que ser o lugar do ético em busca do ético no projeto de pesquisa em análise.
Como resposta ética a uma consulta dos pesquisadores e à sociedade, representada pelo grupo a ser investigado, que o parecer, do lugar que ocupa, será emitido, ressaltando a eticidade da pesquisa, sua metodologia e resultados.
Observe-se  que, na condição de produtores da pesquisa e de analistas dos projetos de pesquisa, inventamos um interlocutor e vamos com ele dialogando e construindo o parecer consubstanciado que em outro momento terá outros interlocutores, num permanente devir. Tal como galos que levam seu canto a outros galos, tecendo sua manhã-texto, permitindo que o projeto de pesquisa contemple o que é precípuo em Bakhtin: a verdade, a veracidade, a eticidade.
A esse movimento de ir e vir, construir, des-construir, traduzir os projetos em análise têm como ponto de partida a excedência de visão, que permite a interlocução, concedendo a um projeto de pesquisa em análise um caráter ético na sua origem e na sua finalidade.
A excedência de visão, diz respeito ao processo de produção de sentido que o locutor produz inventando a si como uma certa construção de linguagem, inventando, também, o outro, o interlocutor, como uma construção de linguagem com a qual se viabiliza a interação. 
Aquele que pesquisa, e aquele que analisa, de sua exterioridade, produz uma certa leitura do objeto – o outro – e esta certa excedência, com o auxílio das teorias e práticas da pesquisa, a partir da exterioridade que lhe permite vestir a roupagem de linguagem do pesquisador, selecionadas e trabalhadas produzem uma certa invenção do outro – um certo sentido indiciado pela leitura do fenomênico e sistematicamente agenciado pela ação de tais teorias e práticas de pesquisa para a constituição do fenômeno naquilo que lê passa a ser: o conceitual.
A responsabilidade e a responsividade estão presentes nas ações dos CEP, em especial no Parecer Consubstanciado, quando se entende  tais ações como “ ato respondível que corresponde, então, ao ato ético, pois envolve o conteúdo do ato, o seu processo, valorado (avaliado) pelo sujeito com respeito ao seu próprio ato, quando reflete sobre ele e lhe dá um acabamento (estética) (GEGe, 2009, p. 42).
A abordagem sob a perspectiva bakhtiniana do Parecer
Consubstanciado nos indicia a necessidade refletir sempre sobre a importância e valorização da busca do conhecimento, o impacto das pesquisas e compromisso ético e social de melhoria das condições da sociedade.
Um desafio na contemporaneidade: ser ético na vida e na ciência.

Referências
AMORIM, Marília.  O pesquisador e seu outro- Bakhtin nas ciências  humanas. São Paulo: Musa Editora,2001
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João. Editores, 2010.
GEGe, Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e contrapalavras: glossariando conceitos; categóricos e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro L. João Editores, 2009.              
MACHADO, Irene A.  O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. Rio de Janeiro, Imago, 1995.
BRASIL. Ministério da Saúde – CNS-CONEP. Manual operacional para comitês de ética em pesquisa. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. (Série A. Normas e Manuais técnicos; n.133)

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