Assunção Cristóvão
Este trabalho baseia-se principalmente no conceito de dialogismo e enunciação desenvolvido pelo Círculo de Bakhtin. Dialogismo entendido como uma relação de interlocução em que o outro não é visto como um simples receptor. A enunciação que se estabelece, citando Voloshinov em “Marxismo e filosofia da linguagem” (p.112) é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor.
Na própria definição do Círculo de enunciado está embutida a presença do outro. Diz Voloshinov:
A palavra dirige-se a um locutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos.
Com esta visão de interlocução, tentaremos encontrar aspectos de afetividade na relação de interlocução entre um veículo de comunicação impresso e seu leitor; no caso em questão, entre o jornal Folha de São Paulo, visto a partir de seu projeto editorial de 1997, e seus leitores.
Trata-se, aqui, do estudo do texto como um enunciado, e considera-se que o ato responsivo, inerente a esse enunciado, é o princípio do dialogismo e da identificação da presença do outro no discurso. Citando Bakhtin: “O primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do enunciado é a possibilidade de responder”, sendo que responder refere-se não apenas à resposta direta, mas a “compreender de modo responsivo” (Bakhtin, 2000, p. 299).
É a possibilidade ou a efetivação da resposta, ainda que não haja alternância de sujeitos, que constitui o dialogismo, por sua vez, princípio constitutivo do discurso e que lhe confere o sentido, determinado pela presença do outro.
Toda enunciação monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um elemento ilanienável da comunicação verbal. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. [...] Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. (Voloshinov, 1999, p.98).
Como pensar, então, essa relação dialógica entre um jornal e seu público? No caso de um jornal impresso, como a Folha, o jornal é aquele que fala sem interlocução, que traz em suas páginas informações, opiniões, omissões, pontos de vista, independentemente dos pontos de vista, opiniões e omissões de quem o lê? Num primeiro momento poderíamos dizer que sim, uma vez que é o jornal que, aparentemente sem pedir licença, entra diariamente na casa de seu leitor.
Nesse sentido, ficaria difícil falar em interlocução. Mas não é o que acontece. No caso da Folha e dos demais veículos de comunicação impressos da iniciativa privada, o primeiro sinal de interlocução é o pagamento pelo produto jornal. Nesse sentido, o leitor seria um consumidor e a Folha, uma mercadoria.
Se pensarmos assim, com o pagamento, o leitor dá a sua primeira permissão para que o jornal se posicione desta ou daquela forma. Foi o leitor quem permitiu que, diariamente, no caso dos assinantes, se estabelecesse esse ato de interlocução e, por que não dizer, de afetividade?
Ainda que sob esse ponto de vista, consumidor x produto, podemos falar em afetividade na relação do leitor com seu jornal. Como outros objetos de nosso querer, podemos identificar nosso veículo de comunicação em meio a vários outros, com uma simples passada d’olhos. Somos íntimos de seu projeto gráfico, de seu tamanho, de sua relação texto, fotos e infográficos. Essa distinção também nos aproxima.
Também temos com ele outros comportamentos de afetividade. Contamos com sua presença em nossa casa ou nas bancas num horário específico. Quem já não se irritou com o entregador displicente que atrasa a entrega do jornal? Exigimos dele pontualidade, fidelidade, que corresponda às expectativas que nos convenceram a aceitar diariamente sua entrada em nossas vidas.
Podemos até afirmar que o jornal é, muitas vezes, espelho de seu leitor. Um se reconhece no outro.
Os valores e os gostos desse consumidor, sua escolha do veículo de comunicação de sua preferência, colocam o leitor numa epécie de comunidade de gostos, compartilhada por milhares de outros cidadãos.
O leitor é, em tese, aquele que garante a existência do jornal. A notícia, modernamente considerada uma mercadoria, adquiriu esse status não apenas porque passou a ser objeto de consumo e, portanto, descartável, mas também porque a mercadoria é o produto que, na sociedade industrial de consumo, deve ser projetada a partir da necessidade que os consumidores têm dela, deve ser revestida de elementos da preferência do consumidor, seja nas cores, volume, tamanho, sabor, cheiros, conteúdos. Conforme acentua Frias Filho, secretário de Redação do jornal e um dos herdeiros do grupo Folhas, “a ideia de que o jornal deveria se nutrir única e exclusivamente do seu mercado foi realmente posta pela empresa em prática e garantiu a ela uma autonomia editorial muito grande” (Frias Filho in: Abreu; Lattman-Weltman; Rocha, 2003, p. 365).
Mas quem são os leitores da Folha, que permitiram ao jornal crescer de forma autônoma, ao contrário de jornais que precisaram se submeter ao Estado para sobreviver? Numa grande pesquisa datada de 2001, a Folha identificava o seu leitor médio como pertencente à faixa dos 40 anos. Além disso, esse leitor-síntese teria formação superior, seria casado, estaria empregado no setor formal da economia, teria renda individual na faixa que vai até 15 salários mínimos e familiar que ultrapassa os 30 mínimos. Faria parte da classe A ou B. Seria católico, possuiria TV por assinatura e utilizaria a Internet.
Com base em dados dessas pesquisas, a Folha muda, recua ou reforça suas diretrizes. Por identificar, por exemplo, um leitor culto, de nível superior, pode incluir temas mais herméticos ao grande público que os abordados pelos noticiários das emissoras de televisão. Porém, exige de seus jornalistas a utilização de recursos visuais e de linguagem mais condizentes com públicos que pouco apreciam – ou que dispõem de pouco tempo para – a leitura. A ênfase na necessidade de didatismo, por exemplo, reforça essa possibilidade. Ao mesmo tempo, num determinado momento, ao propor a transposição de um texto menos informativo e mais analítico, é como se o jornal confiasse mais na capacidade de seu leitor receber uma opinião sem se chocar e/ou sem se deixar levar por ela.
Segundo pesquisa do jornal, esse leitor teria uma visão, “mais liberal” entre aspas, da sociedade.
Nesse sentido, podemos recorrer a uma primeira pergunta? O leitor lê a Folha porque a Folha é um jornal liberal ou a Folha é um jornal liberal para agradar seus leitores e, assim, vender seu produto? A Folha desenvolve um jornalismo crítico, apartidário e pluralista ou é o seu leitor que, preso numa massa amorfa e com identificação da média ponderada, é composto por indivíduos de vários partidos, embora de origens, em sua maioria, neoliberais, de várias opiniões, e crítico, sem dúvida, até porque pertencente a uma renda média alta e com ensino superior?
Vale lembrar que, em seus projetos editoriais, espécie de manual de condutas voltado aos jornalistas da empresa, a Folha já se colocava como liberal desde 1981. Seus projetos preconizam a defesa do mercado, e o jornal coloca o mercado como seu único servo, até mesmo ao chamar explicitamente seu leitor de consumidor.
De qualquer forma, se queremos apontar essa relação de interlocução entre leitor e empresa, vale a pena dar uma rápida volta ao passado, para identificar se essa característica de antecipar tendências de seus leitores e assimilá-las é uma atitude padrão desse jornal
Historicamente, a Folha é reconhecida como uma empresa com essa característica de antecipar tendências e moldar-se a novas circunstâncias sempre que os fatos assim o exigissem. Seus sucessivos projetos editoriais mostram essa faceta.
Muitas fases do jornal mostram isso, mas a mais conhecida foi certamente a defesa do ao movimento das Diretas Já. A Folha vinha de uma fase, durante a ditadura militar, em que seu comportamento frente à política brasileira foi considerada, inclusive por seus diretores, “anódina”. Não houve, como foi o caso do jornal O Estado de São Paulo, nenhum tipo de enfrentamento, discordância ou qualquer outro posicionamento desse tipo nos anos de ditadura militar.
Esse posicionamento, ou falta de posicionamento do jornal foi mudando gradativamente a partir da fase de abertura política do país, e ficou consolidada por ocasião do movimento pelas Diretas, quando o jornal não apenas noticiou à exaustão os fatos relacionados ao movimento, mas se posicionou francamente favorável a ele, sendo que no dia da votação da emenda Dante de Oliveira publicou, na sua primeira página, foto de dezenas de representantes da sociedade civil, sobre o piso de cobertura do edifício do jornal, que se posicionavam a favor das Diretas. Foi a fase do crescimento mais expressivo da história do jornal, mas ainda assim, pode-se perguntar: o jornal aderiu a uma posiçào política e por isso arrebatou novos leitores ou apenas ele mesmo se curvou a um anseio irrefreável e irreversível que vinha das ruas?
Podemos verficiar que, ao planejar seus caminhos através de projetos editoriais, a Folha de S. Paulo realiza o que o Círculo de Bakthin já afirmava sobre enunciação: enunciar é enunciar valores e enunciá-los sob a forma de gêneros. Mas esses valores são também uma resposta ao seu interlocutor, no caso, seu leitor/consumidor.
Este trabalho defende que essa característica do jornal, a de moldar-se às circunstâncias, tal como camaleão, está diretamente relacionada a uma prática mercadológica que utiliza preceitos do jornalismo, tais como isenção, imparcialidade e outros, como estratégia de venda de um produto – a informação. E que, apesar da pretensa e declarada isenção, a Folha orienta-se por parâmetros que permitam refletir as tendências consideradas modernas num mundo globalizado e, em particular, no meio específico de seu público-leitor, identificado pelo próprio jornal como instruído, maduro, de uma alta faixa de renda.
Apesar da pluralidade proposta por seus sucessivos projetos editoriais (o jornal consegue o feito de reunir colunistas de origens político-ideológicas díspares), a Folha tem um objetivo que unifica a sua proposta: o mercado. Esse aspecto - apesar da carga negativa que certamente o termo contém numa atividade como o jornalismo, na qual ganha credibilidade o veículo que se distancia do mercado, porque essa atitude está relacionada com a característica de isenção -, também legitima a opção da Folha, manifestada em um de seus slogans, de ter “o rabo preso com o leitor”.
A escolha por um padrão de atuação que identifica leitores com “consumidores”, permite ao jornal declarar-se como atividade empresarial e não cultural, como muitas vezes se encara o jornalismo.
Essa história de mudanças que marcou o jornal, desde 1921 com a sua criação sob o nome Folha da Manhã, pode ser vista mais como um reflexo de mudança da sociedade brasileira e uma estratégica mercadológica do que uma crença em formar opiniões sob os auspícios de uma crença em valores éticos, políticos e morais.
A Folha, assim como outros veículos de comunicação, é responsável por transmitir, numa corrente ideológica em que múltiplas vozes se misturam, algumas com um poder de influência ideológica maior do que outras, sua forma de enxergar o mundo e seus processos, ou ainda de adotar como sua a forma como seus leitores enxergam o mundo e seus processos.
Pelos seus projetos editoriais pode-se observar que o jornal entende sua atividade como uma empresa enxerga sua mercadoria: com orgulho de estar fazendo o melhor para vender mais, de acordo com os anseios de seus consumidores, sem, no entanto, jamais abrir mão daquilo em que acredita, ou seja, a manutenção de um controle de qualidade compatível com a sua relevância no cenário nacional.
Apesar de sua ênfase no mercado, a Folha diz não permitir-se a utilização de recursos chamados sensacionalistas e utilizados por parte da imprensa com o objetivo único de vender jornal. Isto é um fato, pelo menos em se tratando do principal jornal da empresa; basta lembrar que a Empresa Folhas foi proprietária, durante anos, do jornal Notícias Populares, um ícone do jornalismo sensacionalista no país.
O que nem sempre transparece é que o fato de ser identificada com o jornalismo sério, que evita adjetivos e sensacionalismos, com textos objetivos e imparciais, etc, não a faz se contrapor ao jornal sensacionalista, já que a motivação de ambos é atrair o leitor, um com o apelo fácil do sexo e do sangue e outro com o status de ser restrito a um público selecionado, exigente e politicamente correto.
Ao optar pelo mercado e pelo público consumidor, a Folha revela fazer uma opção neoliberal que se reflete no seu Projeto Editorial de 1997, um jornalismo que aposta na cultura hegemônica, mas que se orgulha de não ter o “rabo preso” com o Estado Nacional, com partidos políticos ou grupos econômicos, como já o fez em décadas passadas. Poderia ter sido outra a sua escolha – poderia ter optado, por exemplo, por ligar-se a algum grupo situado na esfera do poder – ainda que tal opção esteja amparada no seu referencial máximo: o leitor/consumidor. Tanto uma opção quanto a outra mantêm idênticos vínculos de conivência, acordos implícitos, reducionismos e simplificações que aparentemente não se revelam.
A construção social a respeito do público padrão de veículos de comunicação de massa no Brasil – o leitor, no caso do jornal – é a de um sujeito passivo, quase vítima de um processo que o exclui como sujeito, desamparado frente a um bombardeio de informações sem qualidade, uniformizadas e fragmentárias.
A Folha proclama que vê o seu leitor, entretanto, como uma espécie de autoridade máxima, a quem ela respeita acima de qualquer outro valor ou categoria. No discurso da Folha, o jornal possui um mandato conferido pelo leitor, sobretudo quando afirma que é ele quem define sua política editorial, que lhe dita posturas e formas de cobertura, e isso, para a Folha, traduz-se em signo de independência editorial.
Como manter a liberdade editorial, quando ela se contrapõe às leis do mercado? A resposta é simples e não traz em si nenhum paradoxo: quando a Folha se refere a seu leitor, por exemplo através de seu mais famoso slogan, “De rabo preso com o leitor”, ela refere-se não ao cidadão, ao sujeito, ao agente ativo de seu próprio destino, mas àquele que “consome”. Rabo preso induz a pensar num termo disfórico, que assume identidade com uma ligação ilícita, espúria, sem autonomia. O efeito quebra-se ao completar-se a frase: Rabo preso, sim, porém, com o leitor, cuja função, aqui, é evidentemente a de redimir e neutralizar a disforia do primeiro sintagma, e, mais ainda, operar uma conversão absoluta, pois o que era disfórico, torna-se, agora, eufórico, já que o leitor é o valor máximo instituído pelo jornal. O que a frase opera é uma ilusão mercadológica, que ilude justamente o leitor, com quem ela afirma ter o rabo preso. Ilusão, porque se refere ao aspecto “consumidor” do leitor e não ao seu aspecto “sujeito”. Não que a Folha deixe de cumprir uma das principais características do bom jornalismo, que é formar informando. Isso ela faz como outros jornais, ou, ainda, muitas vezes melhor. Ela prioriza o consumidor no sentido de ser ele quem define o jornal.
O leitor, então, é a autoridade máxima, mas é o produtor primeiro do discurso, ou seja, em última instância, o dono do jornal – se é que existe uma única origem na relação dialógica proposta pelo Círculo de Bakhtin, na qual as diversas “vozes” se confundem sem origem nem ponto final.
Ainda num outro aspecto, a frase “De rabo preso com o leitor” também ilude, porque, ao fazer pressupor que é o leitor quem manda no jornal, ela escamoteia o fato de que o leitor, como membro e representante de uma comunidade, não manda. Apesar de ser a imprensa quem informa, alerta, fiscaliza os órgãos públicos, os governos e seus representantes, ela não é um serviço público nem pode o cidadão interferir nos processos jornalísticos por ela adotados. Ou pode, quando isso funciona como uma propaganda, no sentido de mostrar que o jornal é democrático ao atender os interesses de seus leitores. Mas também a atitude inversa – quando não se curva a apelos que iriam atentar contra seus princípios – funciona como propaganda, a de um jornal crítico que não se curva a pressões, o que vai fomentar novos embates, novas denúncias, novos alertas, já não mais como serviço público, mas como estratégia empresarial. Ilude porque leitor, no projeto, é sinônimo de consumidor e não de parceiro ou cidadão, a não ser que também se considerem esses três termos sinônimos.
ABREU, A. A.; LATTMAN-WELTMAN, F.; ROCHA, D. (org.). Eles mudaram a imprensa – Depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.
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