Valéria Braidotti
Estudar a obra de Bakhtin tem sido um desafio e um estímulo constante na minha vida. Fui apresentada a Bakhtin logo no início do meu mestrado. Inicialmente, eu pensei que seria mais um autor a estudar e me perguntei: em que será que esse cara vai me ajudar a pensar as questões educacionais, a entender as relações que se dão nos espaços escolares? Mais especificamente, queria saber o que ele me ofereceria para pensar de forma mais ampla sobre o processo de alfabetização – entendido por mim como a relação do aluno com o universo da linguagem escrita. Foi paixão à primeira leitura. Fui sendo tomada por uma vontade inesgotável – Bakhtin é inesgotável – de conhecer mais e mais o seu pensamento. A excitação fervilhava dentro de mim diante de um pensador que não dicotomizava o homem. Minha esperança numa educação que concebesse afetividade e cognição como uma unidade parecia ganhar um aliado. E que aliado! As idéias de Bakhtin estão presentes em todos os atos da vida, e isso é fascinante.
À medida que ia conhecendo mais o pensamento bakhtiniano me divertia construindo imagens mirabolantes de livros didáticos despencando em abismos, levando consigo, presos nas pontas das capas, professores donos da verdade cristalizada e única. Eles, professores, iam despencando descabelados, loucos, perdidos sem a sua verdade incontestável e soberana sobre qualquer pensamento vindo de um qualquer aluno qualquer.
Para Bakhtin, a consciência é um fator sócio-ideológico – explicável somente e tão somente por fatores sociais “que determinam a vida concreta de um dado indivíduo, nas condições do meio social.” (Bakhtin, 2003:48). Ele buscou acabar com a dicotomia formalismo e idealismo existente na época. Tanto em uma visão como na outra, a linguagem é considerada do ponto de vista individual do locutor, personagem solitário da comunicação verbal, apagando o papel constitutivo do outro.
As concepções de Bakhtin exigem do leitor um olhar múltiplo sobre o mundo e sobre o outro. Trata-se de uma teoria que vê o mundo a partir de ruídos, vozes, sentidos, sons e linguagens que se misturam, (re)constroem-se, modificam-se e transformam-se. Dentro desse burburinho, a palavra assume papel primordial, pois é a partir dela que o sujeito se constitui e é constituído. Para pensar a palavra a partir dessa perspectiva, faz-se necessário considerar o direito e o avesso não como partes distintas, mas como elementos que se complementam por meio de uma relação dialógica.
Essa visão dialógica supera a descrição dos elementos estritamente lingüísticos e busca também os elementos extralingüísticos que, direta ou indiretamente, condicionam a interação nos planos social, econômico, histórico e ideológico. Para pensar a concepção de palavra, para Bakhtin, é preciso abandonar a noção de codificação e decodificação que dá margem a uma percepção de língua como sendo um código fechado. Assim, a linguagem e a história são pontos fundamentais na compreensão das questões humanas e sociais. Por ser polissêmica e dialógica, a palavra traz marcas culturais, sociais e históricas. Neste ponto Bakhtin estabelece o maior divisor de águas na construção de sua teoria sobre a língua, pois, ao afirmar que o contexto histórico é parte constitutiva da linguagem, ele questiona as concepções estruturalistas que tomam a palavra como parte de um sistema abstrato de formas em que o falante não tem poder de intervenção. O contexto histórico transforma a palavra fria do dicionário em fios dialógicos vivos que refletem e refratam a realidade que a produziu. (Bakhtin,2003)
Sua concepção de palavra, a linguagem em sua dimensão ideológica, o sujeito concebido por ele com suas múltiplas vozes, seu aspecto polifônico, o eu constituído pelo outro que, numa relação dialética também se (re)constitui, são aspectos que vão despertando em mim uma perspectiva bastante instigante de “olhar” para mim mesma, para o outro, para as relações que se estabelecem no cotidiano social, familiar e escolar que, segundo Bakhtin, requerem um olhar múltiplo sobre o mundo e sobre o outro. Acredito que esse olhar pode levar a compreensões mais densas do contexto ideológico e da constituição do homem histórico-social e, consequentemente, ao adensamento das discussões tecidas sobre os processos de aprendizagem escolar e, de modo mais pontual, ao que se refere ao processo de alfabetização. Talvez algum leitor deste texto pergunte: por que alfabetização e não letramento? Estaria a autora desatualizada sobre as questões que envolvem letramento? Então aviso: desatualizada não, apenas posicionando-se de um jeito próprio onde não cabe separar o que se pretende separar com o letramento. Mas isto é assunto pra outra hora.
Para Bakhtin, a palavra não é somente um universo de sentidos ou signo puro, é também um signo neutro. Ela é neutra em relação a qualquer função ideológica determinada. Ela aceita qualquer carga ideológica. Bakhtin a considera como o modo mais sensível de relação social, uma vez que se faz presente em todos os domínios sociais. É por meio da palavra que percebemos as mudanças mais efêmeras que ocorrem na sociedade.
A palavra é um espaço de produção de sentido. Dela emergem as significações que, conseqüentemente, se fazem no espaço criado pelos interlocutores em um dado contexto sócio-histórico. Por ser espaço gerador de sentido é controlada, selecionada por meio dos mecanismos sociais.
Para compreender como se dá o processo de construção de sentido, é preciso ver a palavra como um signo ideológico, pois só assim é possível perceber a sua capacidade de assumir múltiplas tonalidades em diferentes campos como o político, o moral e o religioso. Os sentidos funcionam como camadas superpostas que se vão juntando. É o contexto, a situação social e o lugar ocupado pelo falante que determinam qual o sentido que deve ser dado à palavra.
Em situação de uso, a neutralidade da palavra não é possível, porque o processo de interação não acontece de forma simétrica entre os. interlocutores. Por meio da linguagem, são evidenciadas as divergências, a materialização das lutas de classes, a disputa pelo poder por grupos antagônicos, as crenças religiosas e as demonstrações de preconceitos.
E é exatamente sob esse aspecto que decidi pensar a literatura infantil e seus significados – signos para as crianças das séries iniciais do ensino fundamental na sua constante provocação interativa. Esse processo de interação não ocorre fora do contexto social e histórico; ele é fruto da interlocução de dois falantes pertencentes a um mesmo contexto. Neste caso, questões como classe social, ética, hierarquia e afetividade são determinantes para a construção dos sentidos. Não existe interlocutor abstrato, uma vez que o horizonte social é determinante no processo de uso da palavra. Esse horizonte é internalizado pelo falante, que passa a fazer suas deduções e considerações com base no contexto ético e estético que o cerca.
As palavras refletem, não de forma mecânica, os conflitos, e apontam as marcas ideológicas distintas de cada sujeito em interação. Nessa visão bakhtiniana não existe pensamento e linguagem inatos. A atividade mental do sujeito pertence totalmente ao campo social, pois a palavra e o material semiótico, externos aos sujeitos, são elementos determinantes para a organização do pensamento que, posteriormente, retorna ao campo social.
A palavra, em sua condição de signo, é adquirida no meio social que, interiorizada pelo sujeito, retorna ao meio social por meio do processo de interação numa forma diferenciada, ou seja, ela é dialeticamente alterada devido às colorações ideológicas que marcam as condições concretas de produção.
Em razão desses condicionamentos sociais e históricos que perpassam tanto os sujeitos quanto as palavras, somente o acontecimento enunciativo dará a significação da palavra que, muitas vezes, será diferente da significação registrada no léxico. A significação é construída no processo de interação social. Assim, a palavra é constitutiva tanto da consciência quanto do desenvolvimento humano.
No trabalho realizado com crianças de primeira série de uma escola pública do interior do estado de Goiás, explorei algumas obras literárias selecionadas por seu valor textual, estético e contextual. Dentre essas obras, para exemplificar o processo de constituição dos significados/signos, fiz um recorte do livro “Mamãe trouxe um lobo pra casa” de Rosa Amanda Strausz.. Após as leituras e as rodas de conversa foi possível fazer uma interessante ‘coleção’ das enunciações das crianças. Por meio da observação dessas enunciações é possível lançar bases para pensar o processo de constituição dos significados a partir dos diferentes contextos histórico-culturais.
SINOPSE DO LIVRO:
ALGUNS EXEMPLOS DAS FALAS COLECIONADAS:
Os fatores extralingüísticos determinam socialmente as enunciações dos interlocutores, uma vez que eles também são sujeitos sócio-históricos e trazem valores, ideais, desejos, culturas e marcas de pertencimento sócio- político-econômico diferente, que marcam singularmente os sujeitos e se fazem presentes na materialidade de suas palavras. A enunciação “...situada na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado, bombeia energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa lingüisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único” (Brait, 2005 p. 67) e, deste modo, provoca a produção de significados.
Em razão desses condicionamentos sociais e históricos que perpassam tanto os sujeitos quanto as palavras, somente o acontecimento enunciativo dará a significação da palavra que, muitas vezes, será diferente da significação registrada no léxico; a significação é construída no processo de interação social. Os sujeitos atualizam o enunciado do ponto de vista de seu significado semântico e não somente enquanto palavra gramatical. E esse movimento diz respeito tanto ao sentido ético quanto ao sentido estético porque é o sujeito histórico que se manifesta ao enunciar.
“A expressividade de um enunciado é sempre, em menor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do locutor com os enunciados do outro.” (Bakhtin, 2003 p.316)
O entendimento de que todo enunciado, embora aconteça num dado momento (presente) é marcado pelo passado, e carrega expectativas do futuro, é fundamental para entender as relações dialógicas que se dão no espaço escolar. É a partir desta afirmação que pretendo compartilhar e colocar na roda de discussão uma possibilidade de abordar a literatura infantil sob o referencial bakhtiniano, o que, sem dúvida, traz consigo o sentido estético, não apenas do escrito, como também do lido.
BIBLIOGRAFIA
Bakhtin, M.. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp-Hucitec, 1988.
_______. Estética da Criação Verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11 ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
Brait, Beth. (org.) Bakhtin: conceitos -chave. São Paulo: Contexto, 2005.
Góes, Maria Cecília de Rafael. A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. In: Relações de Ensino – Análises na perspectiva histórico-cultural. Cadernos Cedes nº50. Campinas: Unicamp, 2000
Padilha, A M.L.. "Uma breve introdução aos estudos de Mikhail Bakhtin" (mimeo)
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