quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Entre o acabamento estético e o mundo ético: o papel e o lugar das controvérsias na educação em ciências


Maria Emília Caixeta de Castro Lima
Andréa Horta Machado
Luiz Gustavo D´Carlos Barbosa

Este texto nos dá oportunidade de tornarmos visíveis questões que dizem respeito a uma forma de se pensar sobre o que é ensinar ciências comprometida com o acabamento estético da obra, como finalização, conclusão e, portanto, fechamento. Nós, educadores da área das ciências (ditas exatas), nos dedicamos a ensinar definições, leis e teorias. Somos formados para considerar que um bom professor se configura pelo fato de fazer e executar um planejamento meticuloso de suas aulas, sistematizando ao fim o seu projeto de dizer. Todo esse arcabouço tem sua gênese no fato de que para a maioria de nós numa aula de ciências há pouco espaço para a dúvida, para a controvérsia, e para os sujeitos se dizerem. Quem diz é o professor e a ciência.
O encontro com Bakhtin e suas ideias sobre o acabamento estético e mundo ético nos permitem redimensionar de forma radical muito do que tem dado origem à formas de pensar e de agir de professores de ciências ao longo de décadas. Vejamos o que, grosso modo, encontramos nesse autor sobre a relação entre o acabamento estético e o mundo ético.
A obra de Bakhtin gira essencialmente em torno da constituição recíproca entre o eu e o outro. A vida, segundo ele, é vivida na fronteira entre a experiência individual e o excedente de visão. O que vemos é determinado pelo lugar de onde vemos. Como sujeitos, somos constrangidos a ver o mundo e a nós mesmos, a partir do que nos é dado ver pelo outro. Essa necessária complementaridade de visões decorre da condição social de existência do sujeito, o qual necessita do outro para se constituir, para se definir e ser autor de si mesmo. Trata-se de um eu aberto e inconcluso, susceptível aos discursos compartilhados. 
A consciência humana, trabalhosa e internamente construída pelos sujeitos nos embates permanentes com o mundo, nasce da consciência alheia. Desde o nome que recebemos ao nascer até a certidão de óbito lavrada em cartório, tudo que nos diz respeito, é nos dados pelos outros (Bakhtin, 1997). O inacabamento ou inconclusibilidade, inerente à condição e ao lugar que o eu ocupa como sujeito, é que me dá o sentimento de falta, de incompletude e de não lugar. O outro, que se coloca numa relação dialógica com o eu, me completa e me permite viver uma situação que me é alheia e exterior.
Bakhtin explica essa falta de resolução em nós mesmos pelo excedente de visão.  O outro possui uma visão em relação a mim, que do lugar em que me situo, estou constrangida a não ver. Desse modo, pelo excedente de visão do outro, ou dos vários outros que nos constituem, podemos ser ditos e completados naquilo que nos falta. Conhecemo-nos graças à comparação com os outros que nos fornecem a imagem tanto daquilo que somos, quanto daquilo que não somos. É essa certa visão que temos do outro, mas que o outro nunca terá dele como sujeito, a não ser pelo que lhe é dito, que é chamado de excedente de visão.
Portanto, a inconclusibilidade da qual falamos é compreendida mediante a ideia de acabamento estético, a qual nos leva a outra ideia igualmente poderosa em Bakhtin, a de dialogia. O acabamento de um enunciado qualquer está sempre constrangido pela possibilidade responsiva.
Nas esferas criativas (em particular, claro nas ciências), em compensação, o tratamento exaustivo [do tema ou do assunto ou do objeto] será muito relativo – exatamente um mínimo de acabamento capaz de suscitar uma atitude responsiva. Teoricamente, o objeto é inesgotável, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função de uma dada abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor. (Bakhtin, 1997: 300)
A educação em ciências ocorre na confluência entre os projetos de dizer dos diferentes atores que ocupam a cena na sala de aula. O tratamento exaustivo de um tema depende do que o enunciador entende por intervenção completa, no sentido de evocar no outro uma resposta, e no tipo de resposta que se espera que o outro forneça. Esse mínimo de acabamento, orientado pela responsividade depende, também, dos objetivos mais imediatos do enunciador, do seu projeto de dizer.
Assim, no mundo estético, cada ato visa a realizar o acabamento mentalmente antecipado. Por isso, está ligado a uma idealidade do mundo, mesmo que não seja tomada como fixa. Os planejamentos de ensino podem mudar, mas continuam sendo modificados para configurar acabamento (Lima, 2005).

Algumas questões pensadas a luz dessa discussão sobre acabamento estético podem nos ajudar a compreender o que se passa na sala de aula de ciências, tais como: Que ensino de ciências é mais favorável a uma abordagem estética do mundo? Ou em que domínios do ensino de ciências, o projeto de dizer do professor se fecha com maior sucesso? Que significados e conseqüências esse tipo de ensino tem para os estudantes? 

 Na condição de docentes, re-planejamos esteticamente nossos passos entre universos possíveis, com o objetivo de dar um fechamento comum ao que os sujeitos devem se apropriar, mesmo que o produto tenha nada ou muito pouco de próprio. Acabamento, no sentido de planejamento, só existe no mundo estético porque é produto de uma idealização. O mundo ético, lembrando Paulo Freire, tem uma estética que, ao contrário, é aberto e não permite acabamento (Lima, 2005). Assim, mesmo que o professor tente fechar sentidos, estes nos escapam por dentro da floresta que habita em cada um de nós. Mas, com o tempo os estudantes passam a exigir de nós a resposta correta, a nos questionar com quem está a verdade, o que irá valer como resposta correta na prova.
Como professores de física e de química nossas incursões têm sido no sentido de promover uma educação em ciências que seja capaz de incluir os estudantes como sujeitos. Experimentamos jogar um jogo difícil no qual nos negamos a dar a última palavra sobre Uma verdade (in)conveniente, qual autor está falando a verdade ou se é tudo uma armação e daí por diante (Barbosa, 2010).
Creditamos nosso movimento pessoal a três grandes contribuições teóricas para a área:
·         a centralidade do sujeito - que destacamos na obra de Bakhtin;
·         à constatação de que vivemos um tempo de insurgência das incertezas na ciência e em suas relações com a tecnologia e a sociedade, mais especificamente argumentadas por Ilya Progogine, Boaventura de Souza Santos, entre outros;
·         à proposições curriculares baseadas no argumento democrático do ensino de ciências, baseadas na abordagem que busca relacionar ciência, tecnologia e sociedade – conhecido como movimento CTS.

Nesse sentido, trazemos mais algumas perguntas: Existe lugar para os sujeitos no discurso científico? Que temas ou abordagens científicas são oportunos de se adotar em sala de aula com vistas a incluir os sujeitos como legítimos autores dos seus discursos?Que outras racionalidades podem ser postas em diálogo com as explicações da ciência ocidental no sentido de construir outras perspectivas de mundo?

O conhecimento científico nos marcos da sociedade moderna e outras formas de racionalidades

O momento atual é identificado por Boaventura de Souza Santos (1995) como de transição paradigmática, pois comporta uma nova relação do sujeito com a Ciência. Nessa transição é possível observar um deslocamento na forma de se conceber a ciência como depositária de verdades sólidas e lineares e considerá-la como parte de uma complexa rede de fenômenos.
A produção do conhecimento científico, nos marcos da sociedade moderna, está associada à construção de teorias universalizantes, por meio da argumentação dentro de um sistema formal de descrição e explicação. Esse modo paradigmático de pensar guarda compromissos epistemológicos explícitos com a abstração, a generalização, a neutralidade e a objetividade desde o recorte dos problemas, do modo de produção dos dados, das explicações propostas até seus domínios de validade. Outra marca, que decorre das anteriores, é a renúncia ao valor de tudo que se caracteriza como sendo de natureza particular e contextual. Essa forma de razão se assenta na crença em uma totalidade cujas partes constituem necessariamente o todo, construído e validado cientificamente. A valorização da ciência recai sobre a hipótese da existência de aspectos técnicos, propositivos e modelares no mundo. Os modelos construídos no interior da ciência fazem nesta o papel da história no âmbito das humanidades e do senso comum. Em outras palavras, os modelos tomam o lugar da história para completar as lacunas daquilo que não se sabe ou que lhe falta (BRUNER, 1998). Na ciência importa o prestígio dos autores e dos periódicos, algo que por vezes coincide com os critérios de verdade e de confiabilidade (CASTRO e COL, 2010
Assim, a ciência é concebida como global e totalitária ao se legitimar como conhecimento verdadeiro, único e paradigmático, já que visto do seu interior nada existe fora dessa totalidade. Tudo que está fora da racionalidade científica é entendido como formas ilusórias de explicações, porque são não racionais. A ciência ocidental chama a si o papel de forma única e legítima de racionalidade e rejeita, tipicamente, o conhecimento e a compreensão gerados fora das instituições científicas acreditadas (IRWIN, 2005: 106). Por isso, não nos surpreendemos ao nos ver como professores, no diálogo a seguir:

Prof: Onde ele (artigo) foi publicado? É revista? É revista científica? Vamos começar a prestar atenção em quem fala, de onde a pessoa fala! O seu cientista é brasileiro? O que ele é?
Representante do grupo 1 dos estudantes: Ele é pós-doutor em meteorologia, formado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Presidente da Américas...

. Ao contrário da visão científica ocidental do mundo existem outras racionalidades invisíveis e ausentes que têm uma epistemologia diferente. Nelas importam os sujeitos nas suas singularidades. O modo narrativo de pensamento, por exemplo, está preferencialmente ligado à experiência, o que é, segundo Bruner (1998), um modo não-paradigmático de explicação. Ao contrário das proposições lógico-científicas, da experiência emerge nos sujeitos o conhecimento contextualizado, particular, local e singular. A narrativa lida com as idiossincrasias do mundo e vale-se para isso da força da tradição, não sendo passível de ser "comprovada cientificamente” pela sua própria natureza e gênese. Esses saberes, oriundos das experiências, foram não só desautorizados pela ciência, como paulatinamente silenciados até seu completo apagamento. Nos casos de alguns povos e tradições, configurando-se como epistemicídio (SANTOS, 2000).

Ciência e vida: dois mundos à parte


Na área de ciências naturais, a vida mesma e a natureza, em toda sua concreticidade, estão ausentes. Epistemologicamente e ontologicamente, ciência e experiência são mundos cindidos. Está consolidado um modo de pensar e, por conseqüência de ensinar e aprender a pensar cientificamente, rompido na sua origem.
Bakhtin discute, já nos primeiros escritos, a separação ocorrida entre mundo teórico (cultura) e o mundo da vida (historicidade dos sujeitos concretos do mundo), entre ciências naturais e filosofia. Na medida em que o mundo autônomo abstratamente teórico (um mundo fundamentalmente e essencialmente alheio à historicidade única e viva) permaneça dentro de seus limites, sua autonomia é justificável e inviolável (Bakhtin, 1993: 8). Se por um lado, o mundo teórico constitui-se como um mundo particular, autônomo, por outro, o mundo da vida na sua complexidade não admite recortes, nem isenção dos sujeitos para se propor saídas. Esse autor nos ajuda a compreender esse fosso na medida em que persegue a gênese da produção do mundo objetivado da ciência - mundo teórico ou da cultura - e do mundo concreto da vida. Para ele são dois mundos impenetráveis, que não têm comunicação um com o outro (Bakhtin, 1993: p.3). Recompor os nexos perdidos entre ciência e vida requer, portanto, recuperar a integridade do ato de nossa atividade. No mundo teórico o sujeito está posto como Ser possível (é incapaz de devir, é incapaz de viver) e não como essencial, o que leva o autor a dizer que: O significado de um Ser para o qual o meu lugar único no Ser foi reconhecido como não essencial não será jamais capaz de me conferir sentido (Ibid, p.17).
Isso nos ajuda a compreender o que ocorre com a população, em geral, e com os estudantes mais especificamente, ao se mostrarem desinteressados dos assuntos da ciência. A ciência tornou-se um projeto que não lhes diz respeito e, portanto, nada sabem, querem, podem ou devem se ocupar a dizer.
Nesse mundo eu sou desnecessário; eu sou essencialmente e fundamentalmente não-existente nele. O mundo teórico é alcançado através de uma abstração essencial e fundamental do fato do meu ser único e o sentido moral desse fato — “como se eu não existisse”.  (Bakhtin, 1993: 10).
Lidando no campo de conhecimentos científicos consolidados não temos conseguido resgatar nexos entre o mundo da vida e o mundo teórico. Nesse âmbito não importa, por exemplo, o que me acontecerá se for construída essa ou aquela usina nuclear; minha saúde fragilizada pela ingestão de agrotóxicos; a segurança alimentar de meus descendentes frente ao uso de sementes transgênicas, etc.
Essa é a questão que Bakhtin se pôs no início de sua obra: Como relacionar o universal com o particular? O transcendente com a experiência subjetiva? Para Bakhtin é preciso encontrar o valor da experiência, recuperá-la de dentro da particularidade de uma vida específica, por meio dos eventos enquanto eles acontecem, antes que se tornem teorias sobre o que aconteceu. Vamos encontrar também em Boaventura de Souza Santos uma crítica contumaz a esse modelo de racionalidade que preside o projeto moderno de sociedade e que contribui para o apagamento das diferentes racionalidades, relegadas ao estigma de ignorância e não-saber.
Conectar o mundo da ciência com o mundo da vida passa pela retomada do que Bakhtin (1993) chama de pensamento participativo ou consciência participativa, como uma atividade não-indiferente, engajada e compromissada com o Ser evento único, dentro do qual a cognição teórica é apenas uma parte. Por consequência, para poder participar da história da humanidade não é condição estar dentro do enquadramento de uma das formas de se produzir conhecimento. Significa promover o diálogo entre as diferentes racionalidades.
Acreditamos que no campo das incertezas científicas a educação em ciência pode avançar no sentido de uma sociologia das ausências, como defende Boaventura de Souza Santos (2000). Para isso, é necessário termos senso de oportunidade para colocar em pauta na sala de aula de ciências temas e problemas científicos que são controversos para a própria comunidade científica. Nesse sentido, sugerimos consultar trabalhos que envolvem esse tipo de abordagem e, mais especificamente, Barbosa, 2010.

Referências bibliográficas

BARBOSA, L. G. D. C. O debate sobre o aquecimento global em sala de aula: o sujeito dialógico e a responsabilidade do ato frente a um problema sócio-científico controverso. Dissertação de mestrado. UFMG. 2010.
BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. Rio de Janeiro. Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Austin: University of Texas Press, 1993. Título original: Toward a Philosophy of the Act. 93p.
BRUNER, J. Realidade Mental, Mundos Possíveis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
CASTRO, R.S; LIMA, M. E. C. C.; PAULA, H. F. Formação de professores e compreensão pública das ciências: contribuições para a participação democrática. Anais do VIII Jornada Latinoamericanas ESOCITE: Ciencia y Tecnología para la inclusíon social. Buenos Aires, 2010.
HOLQUIST, M. Prefácio. In: Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Austin: University of Texas Press, 1993. Título original: Toward a Philosophy of the Act. 93p.
IRWIN, A. Ciência Cidadã – Um estudo das pessoas; especialização e desenvolvimento sustentável. Lisboa: Piaget, 2005.
LIMA, M. E. C. C. Sentidos do trabalho: a educação continuada de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.  São Paulo: Cortez, 1995.
SANTOS, B. S. A Crítica da razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. (Coleção para um novo senso comum; v.1).

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