sábado, 18 de setembro de 2010

Observações sobre a epistemologia das ciências humanas segundo Mikhail Bakhtin



Solange Jobim e Souza

Refletir sobre a construção de uma epistemologia das ciências humanas a partir da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin exige do pesquisador desta área enfrentar um desafio inicial, ou seja, a caracterização do que é conhecer um objeto, e o que é conhecer um indivíduo, outro sujeito cognoscente. Para Bakhtin, esta distinção é fundamental, pois permite o pesquisador caracterizar cada elemento, objeto e sujeito, em suas especificidades, nos seus próprios limites. Ao pensarmos no conhecimento que pode ser elaborado quando o sujeito se depara com um objeto, ou seja, a pura coisa, dotada apenas de aparência, desprovida de interioridade, observa-se que ela (a pura coisa) pode ser totalmente revelada por um ato unilateral do sujeito cognoscente e, portanto, tal conhecimento é da ordem do interesse prático. Em contrapartida, quando o sujeito cognoscente se abre para o conhecimento de outro indivíduo, deve conservar uma distância em relação a qual só é possível um procedimento desinteressado, pois, abrir-se para o outro é, em certa medida, permanecer também voltado para si.  O critério que orienta este tipo de conhecimento não pretende alcançar exatidão, mas se preocupa com a densidade e a profundidade do que é revelado a partir do encontro do sujeito cognoscente (o pesquisador) e seu outro. O pesquisador do campo das ciências humanas está, portanto, transitando no terreno das descobertas, das revelações, das tomadas de conhecimento, das comunicações, das produções de sentido entre o eu e o outro. Neste âmbito, vale destacar, a importância dos segredos, das mentiras, das indiscrições, das ofensas, dos confrontos de pontos de vistas que inevitavelmente acontecem nas relações entre humanos.  Vale dizer que aqui não importa o “certo” ou o “errado”, pois este critério pertence ao interesse e registro de uma verdade que se pretende universal e que tem a pretensão de ser comprovada e validada a partir de critérios de exatidão. A exatidão pressupõe a coincidência da coisa consigo mesma, sendo apenas necessária quando estamos voltados para a assimilação prática das coisas que estão no mundo. Bakhtin, quando distingue o conhecimento produzido no interior das ciências exatas do conhecimento no âmbito das ciências humanas, diz o seguinte:
As ciências exatas são uma forma monológica de saber: o intelecto contempla uma coisa e emite um enunciado sobre ela. Aí só há um sujeito: o cognoscente  (contemplador) e falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (Bakhtin, 2003, p. 400).

A epistemologia das ciências humanas de Bakhtin, pautada em sua filosofia da linguagem, tem como premissa problematizar a forte presença do positivismo no pensamento ocidental moderno, criando outra possibilidade de se produzir conhecimento no interior das ciências humanas. Ao levar em conta a particularidade do encontro do pesquisador com o seu outro e, consequentemente, a especificidade do conhecimento que pode ser gerado a partir desta condição, o que se destaca é a produção de um conhecimento inevitavelmente dialógico e alteritário. Para Bakhtin há que se considerar a complexidade do ato bilateral e da profundidade do conhecimento que se constitui e se revela na relação dialógica eu-outro. Dialogismo e alteridade, na obra de Bakhtin, são conceitos que não podem ser pensados separadamente. Alteridade na sua concepção não se limita à consciência da existência do outro, nem tampouco se reduz ao diferente, mas comporta também o estranhamento e o pertencimento.  O outro é o lugar da busca de sentido, mas também, simultaneamente, da incompletude e da provisoriedade. Esta perspectiva apresenta a condição de inacabamento permanente do sujeito, o vir-a-ser da condição do homem no mundo. Assumir o dialogismo e a alteridade como marcas das relações estabelecidas no contexto da pesquisa significa marcar o encontro com o outro, neste contexto, para compartilhar experiências, conhecimento e valores que se alteram mutuamente. O sujeito da pesquisa é visto como alguém cuja palavra se confronta com a do pesquisador, exigindo-lhe resposta. Em contrapartida a palavra do pesquisador recusa-se a assumir a aura da neutralidade e integra-se à vida, participando das relações e das experiências, muitas vezes contraditórias, que o encontro com o outro proporciona. O autor sublinha que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante e que este ser nunca coincide consigo mesmo, sendo por isso inesgotável em seu sentido e significado.
A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado (BAKHTIN, 2003, p. 319)

Deste modo, o conhecimento que se revela a partir do encontro do pesquisador com o outro não pode, ele mesmo, ser forçado a um enquadramento que o limite, mas deve se manter livre e, ao se manter livre, não oferece garantias. As ciências exatas procuram garantias, buscam explicar o que permanece imutável em todas as mudanças. Em síntese buscam encontrar a finalização de uma análise em um dado texto.  Mas a formação do ser não pode ser engessada, capturada por um ato de conhecimento que transforme o ser em um único texto.  A formação do ser deve estar livre para correlacionar um dado texto com outros textos possíveis. Cabe as ciências humanas encontrarem as estratégias metodológicas que dêem conta desta dimensão de liberdade que deve ser a principal garantia para nos mantermos, como pesquisadores, fiéis à especificidade das ciências que estudam o homem. Dado que o conhecimento é provocado por uma pergunta, ele não pode se constituir na ausência de uma resposta. Não há resposta que não gere uma nova pergunta. Perguntas e respostas compõem a engrenagem que movimenta a construção do sentido e do conhecimento na pesquisa.
Perguntas e respostas não são relações (categorias) lógicas; não podem caber em uma só consciência (una e fechada em si mesma): toda resposta gera uma nova pergunta. Perguntas e respostas supõem uma distância recíproca. Se a resposta não gera uma nova pergunta, separa-se do diálogo e entra no conhecimento sistêmico, no fundo impessoal (BAKHTIN, 2003, p. 408).

Vale dizer que ao assumirmos a filosofia da linguagem de Bakhtin como fundamento de nossas preocupações epistemológicas no âmbito da pesquisa em ciências humanas, o ato mesmo de pesquisar passa a se constituir a partir de uma peculiaridade que precisa ser explicitada. O que importa aqui é apreender aquilo que é da ordem da singularidade da experiência humana, ou melhor, tudo que seja revelação de novidade e criação, em detrimento da busca por explicações do que permanece imutável no sujeito.
Há no encontro do pesquisador e seu outro um compromisso ético com a produção de um conhecimento desinteressado. Bakhtin ao apontar para esta necessária condição de produção de conhecimento nas ciências humanas traz à tona o tema da ética na pesquisa. Este tema é anunciado em uma de suas primeiras manifestações na imprensa, na forma de um pequeno e denso texto intitulado Arte e responsabilidade, de 1919. Neste texto, Bakhtin afirma alguns aspectos importantes relativos ao compromisso ético da arte com a vida que serão aqui retomados para incitar uma reflexão sobre o pesquisador e o seu compromisso ético na produção do conhecimento nas ciências humanas. Vejamos alguns excertos deste texto, em que o autor faz uma crítica ao modo como o conhecimento produzido no âmbito da ciência e da arte, por ser frequentemente  instrumental, além de não ser desinteressado, não pode estar verdadeiramente integrado à unidade da experiência do indivíduo. Quando um conhecimento é puramente mecânico, unindo os seus elementos – ciência, arte e vida - no espaço e no tempo por uma relação externa, não penetra a unidade interna do sentido. 

Os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode se tornar mecânica, externa. Lamentavelmente, é o que acontece com maior frequência.
(...)
O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. (Bakhtin, M. 2003, P. XXXI-XXXII)

É muito importante perceber que nessas citações Bakhtin mostra sua crença na singularidade da experiência subjetiva e nos convida a perceber que ela se nutre no campo da vida, dos acontecimentos, em que somos habitados pelas vozes de muitos outros. É aí que ele convoca o Ser a viver sua existência sem escapar da responsabilidade que lhe cabe na unicidade de sua vida. A intenção aqui é refletir sobre a responsabilidade do pesquisador, uma vez que o ato de pesquisar pode ser entendido como um acontecimento único, que se dá a partir do acontecimento singular entre o pesquisador e seu outro. Em síntese nossa intenção é problematizar o próprio ato de pesquisar, admitindo que o acontecimento da pesquisa abarca simultaneamente um pensamento sobre o mundo e um pensamento no mundo. Ou seja, participamos de momentos diferenciados na produção do conhecimento. Por um lado, temos o pensamento que procura abarcar o mundo, por outro, o pensamento que sente a si mesmo no mundo (como parte dele). Com isso, a pesquisa pode ser vista simultaneamente como acontecimento no mundo e como um modo de participação nele. Tendo como base essas reflexões epistemológicas, apresentamos a seguir algumas questões como ponto de partida para o debate:
Que diálogos e que relações de reciprocidade se estabelecem no contexto de uma determinada pesquisa entre o pesquisador e seus outros? Podemos considerar que a pesquisa que tem como premissa o dialogismo e a alteridade, na perspectiva bakhtiniana, pode ser considerada um tipo especial do que denominamos pesquisa-intervenção em ciências humanas?  O contexto da pesquisa pode ser considerado um espaço de construção de consciência de si e do outro na produção do conhecimento responsável? Conhecimento responsável é agir no mundo para também transformá-lo? Qual a especificidade do encontro do pesquisador e seu outro no contexto da pesquisa quando temos também, um segundo momento, o encontro do pesquisador e seu outro no momento da escrita do texto da pesquisa? Ou seja, como caracterizar a especificidade do momento em que o pesquisador se retira do campo, onde se deu o diálogo vivo com o sujeito da pesquisa, para o momento do relato escrito deste acontecimento, como um momento diferente, mas intensamente dependente do primeiro? Em outras palavras, quais as conseqüências epistemológicas para a pesquisa em ciências humanas quando levamos em conta a dimensão ética do ato de pesquisar em seus dois momentos constitutivos: o encontro do pesquisador e seu outro, e o encontro do pesquisador e seu texto?
Estas são apenas algumas das perguntas relativas às considerações éticas para a pesquisa em ciências humanas a partir do pensamento de Bakhtin.  
Bibliografia
Bakhtin, M. Metodologia das ciências humanas. IN: Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Bakhtin, M. Arte e resposabilidade. IN: Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Solange Jobim e Souza
Doutora em Educação pela PUC-Rio. Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade – GIPS - no Departamento de Psicologia da PUC-Rio.

Um comentário:

  1. Excelente texto!
    Minha pergunta é: onde posso situar Bakhtin ante as teorias epistemológicas? O dialogismo dele se situa aonde?

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