Sérgio Augusto Leal de Medeiros[1]
Não sei se consigo, mas minha intenção é “cometer” um texto atravessado pelo “alto astral” que envolve o movimento das rodas bakhtinianas e o movimento do “círculo de São Carlos”. Círculo de significação especial para o ambiente universitário, tanto pela generosidade das publicações, quanto pelos estudos investigativos e, ainda, pela maneira transgrediente de tratar os temas e as discussões acadêmicas. Rodas de conversa, conversações, arena de vozes que divergem/convergem, imbricam-se/bifurcam-se para se multiplicarem no mundo da vida, na velocidade e no tempo/espaço das inquietações, das procuras e dos encontros e desencontros. Penso que o espaço não é para texto acadêmico, sisudo, canônico e predicativo, mas um texto que fale dos encontros irrepetíveis, dos atos únicos e dos acontecimentos de nossas vidas e, consequentemente das inquietações e dúvidas, angústias e deslocamentos decorrentes. Responsividade e inquietação são matérias-primas do devir pesquisador que não se atém apenas às imagens do mundo, mas, com seus pressupostos, “olha” através delas. A visão, aqui, não se confunde com o olhar. A visão não é o olhar, pois ver é ver o mundo que está diante de nós; e olhar é fixar a vista em um detalhe, num aspecto particular, que nos faz ver além... Que é vidente.
Na experiência de pesquisa com os alunos do curso de pedagogia da faculdade de educação da UFJF, sujeitos do projeto de investigação que tem como tema a relação educação-cinema, delineia-se uma nova perspectiva para pensar a educação-cinema numa arena na qual um e outro possam se observar, se completar e se questionar. É nesta troca de olhares, no processo e no desenrolar da pesquisa educacional com o cinema que a construção metodológica para a criação de espaços e trabalhos com filmes na direção de uma educação do olhar se realiza. Não deixando de reconhecer a importância e as contribuições que os trabalhos escolares de interpretação de filmes e os exercícios escolares de pensar sobre as obras fílmicas, seus recursos técnicos e narrativos, deram para a aproximação cinema-escola, os sujeitos da pesquisa, preliminarmente, já apontam para a possibilidade de ir além na direção de não apenas pensar sobre filmes, mas pensar com eles e a partir deles.
É no campo de pesquisa que a questão do olhar é colocada como elemento que solda a relação educação e cinema, como elemento comum desta parceria que aponta, em ambos, na direção do devir, do desejo e do prazer. O saber, e não o já sabido, é o princípio e fim da educação, e sua busca é pelo desejo de ver além de, ou seja, pelo “olhar” implicado no prazer de ver alem de. Como afirma Adauto Novaes, “olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver” (Novaes, 1989), e é nessa diferença, neste intervalo entre o visível (aprendido como estabelecido) e o vidente (as forças do devir) que o pensamento é convocado para o movimento. Vidência daquilo que, apesar de não ser dado a ver por estar fora do quadro ou do plano, está no encontro com a imagem que se dá a ver, e que convoca o sujeito-espectador ao olhar.
Qual o princípio e o fim do cinema senão a atualização de uma linguagem visual e imaginária, favorecendo as transformações nos modos de percepção e de experiência social? O cinema é enunciação social e sua invenção nas últimas décadas do século XIX repercutiu no século seguinte de forma incisiva no processo de constituição do sujeito como espectador e da percepção como vivência. A percepção e a sensibilidade humanas são expandidas, na medida em que o cinema, como tecnologia visual, revela aspectos da realidade que não seria possível desvendá-los a olho nu. O cinema “nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, ou seja, a partir deste aparelho o homem passa a representar para si o mundo que o rodeia” (Benjamin, 1996, p.22) Se estas transformações na percepção e na sensibilidade humana são consequências históricas do advento do cinema, outras tecnologias, desenvolvidas a partir do cinema, renovam estas transformações permanentemente.
Assistindo “Ensaio sobre a Cegueira”, filme do diretor Fernando Meirelles baseado na obra homônima de José Saramago, os sujeitos da pesquisa experienciaram, no paradoxo e no choque, a melhor simbologia encontrada para ilustrar os testemunhos com o filme. A película oferece, em seu movimento de câmara implicado nas ocorrências, e com a construção de sua narrativa fabular, a discussão sobre uma situação “absurda” e cientificamente inexplicável, mas não menos horrorizante, que acomete os personagens (a cegueira branca), questionando, ao longo da narrativa, se não estaria ele, o espectador, também cego. É preciso, apontaram os sujeitos-espectadores, que a visão seja excluída para permitir que surja um olhar. Que cegueira era aquela que contaminava os habitantes daquela cidade? Onde encontrar a cura? O médico cega quando, para explicar o fenômeno, seu saber institucionalizado e sua racionalidade lógica se esgotam. A cura não estaria no encontro daquilo que só é enxergado através da cegueira?
O filme apresenta a imagem da cegueira de que trata o autor do texto literário, José Saramago: “a insondável brancura” (Saramago, 2005, p. 15), cegueira branca e ontológica. Aproximo o conceito de Saramago/Meirelles do diálogo com o que Bakhtin traz com o conceito de excedente de visão, colocando em xeque certa forma de pensar e... de olhar. O olhar não é a visão, como foi dito acima, pois, para Bakhtin, o olhar, enquanto ato, seria ação pulsional, carregada de conteúdo axiológico e volitivo-emocional, e não sustentada unicamente numa capacidade de ordem física. Para Bakhtin, o excedente de visão de um sujeito, sua posição exotópica relacional, é justamente a área de cegueira do outro. Entretanto, nem o excedente de um pode significar a visão plena do todo, uma vez que esse mesmo sujeito, cuja visão excede numa direção, também se cega noutra. Importante observar que Bakhtin assinala ainda que se trata de um excedente condicionado pela singularidade e pela impossibilidade de substituição do próprio lugar que cada um ocupa no mundo: em tempo, espaço e circunstância.
Embora não tenha escrito especificamente sobre o cinema, os conceitos de Bakhtin guardam grande potência para ser explorada por outros campos do pensamento além da linguística e da literatura. Vários estudos se apropriam dos conceitos de Bakhtin para pensar com o cinema as questões e os problemas que se colocam em nossa prática e escrita de vida. Com Bakhtin, é possível uma abordagem da relação cinema-educação que leve à necessidade de produzir novo paradigma de reflexão teórica e de análise empírica, permitindo a integração de processos de produção e de recepção, e considerando os aspectos dialógicos das relações do espectador com o filme – os entrecruzamentos e negociações estabelecidas nesta relação.
Bakhtin se opunha, em suas reflexões estéticas e filosóficas, às forças centrípetas, à vigência de uma língua única, padronizada, visto que a linguagem não é um meio de expressar um conhecimento que lhe é anterior. Os fatos expressivos da linguagem não se situam no interior do individuo, não existindo, desta maneira, conteúdo mental preexistente. O centro organizador e formador dos fatos linguísticos se situa no intervalo entre o exterior, território do social, e a individualidade cronotópica do sujeito, e não em um ou outro plano isoladamente.
Aproximar Bakhtin na construção de um trabalho investigativo que tem por tema a reflexão sobre a interseção cinema-educação é atualizar seus conceitos na grande temporalidade da cultura. O conceito de polifonia, embora criado para a análise do romance literário, contém uma intensidade considerável para a reflexão sobre a enunciação na narrativa cinematográfica. No cinema, a narrativa é construída por um jogo de falas e olhares, no encontro/choque entre os campos conceitual-teórico, axiológico e emocional-volitivo, estabelecidos na relação entre autor e personagens, entre os diversos personagens, entre os personagens e o espectador – e entre todos e os contextos de produção e fruição. Em Bakhtin, o receptor/contemplador tem existência imanente e não transcendente. Ele é autor-contemplador, pois participa da obra artística como função estética formal, na medida em que é o contemplador que transpõe, para o plano estético, as manifestações do coro de vozes sociais.
Os conceitos de Bakhtin representam grande reserva teórica para os estudos com o cinema e sobre sua linguagem. O cinema constrói uma nova visibilidade e a leitura de um filme é sempre atividade complexa. Na arquitetônica teórica de Bakhtin, a concepção idealista de espectador míngua diante da consideração da heterogeneidade dos espectadores, sujeitos que interpretam ativamente, negociando com o filme o seu sentido. Assim, qualquer filme é resultado da capacidade humana de lembrar e imaginar, de se re-ver no filme. Ética e estética são categorias integradas na arquitetônica do humano, na fusão entre o mundo da cultura (conteúdo-sentido) e o território da verdade autoidêntica (istna), com o mundo da vida, da realização e experimentação verdadeira (pravda) de um ato. Para o pensador russo, nem a cognição teórica nem a intuição estética são suficientes para garantir acesso ao saber inteiro sobre o ato. O conceito de responsibilidade de Bakhtin remete à unidade entre o pensamento e a ação, entre o teórico-conceitual-abstrato e o emocional-volitivo. Pensar responsivamente é se abrir ao devir, é não destacar o ato, realizado e experimentado, de seu produto. O conceito de dimensão ativa do pensamento permite aproximar Bakhtin das análises fílmicas, na medida em que, nesta perspectiva, a percepção ativa e a imaginação do espectador é que tornam o filme mais que imagens em sequência. É essa atividade imaginativa que completa o que a montagem fílmica e o movimento das imagens escondem. A imaginação do espectador se alimenta da memória de suas experiências, de afecções, presumidos e textos que vão preenchendo os sentidos que o filme suprime.
A teoria estética de Bakhtin bombeia energia teórica para as investigações e a construção metodológica que permitem olhar o cinema como educação, no sentido amplo de formação e socialização, orientada por uma razão sensual e estética que ensina a ver diferente. Onde está esta diferença? Talvez numa concepção estética, como proposta por Bakhtin, para quem o artístico, em sua totalidade, não se localiza no filme, enquanto artefato técnico, nem na psique do criador ou do contemplador, considerados separadamente. Para ele, o artístico é uma forma especial de inter-relação entre criador e contemplador, fixada em uma obra de arte: “a comunicação artística deriva de base comum a ela a outras formas sociais, mas, ao mesmo tempo, ela retém, como todas as outras formas, sua própria singularidade; ela é um tipo especial de comunicação, possuindo uma forma própria peculiar”. E ainda continua: “O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores, e não requer nenhum outro tipo de objetivação” (s/d, p.6).
A diferença pode estar na direção de uma metodologia de pesquisa que não apenas descreva, nem simplesmente compreenda as relações com o cinema, mas experiencie situações que permitam falar das imagens do filme com nossos presumidos. Muitos são os modos de se falar de um filme. Podemos organizar nosso olhar a partir da história, da trama, da narrativa. Também podemos olhar a partir da composição cinematográfica (planos, sequências, movimentos de câmera, cortes, música etc.), da atuação dos atores, do estilo ou cronotopo do diretor. Mas é no cruzamento destes olhares que se pode revelar algo além do que o filme dá a ver; o que ele não mostra, o que sugere e o que faz pensar. O que no filme é, por um lado, visível, atual e, por outro lado, vidente, virtual, e que nos convoca. O movimento entre a imagem visível e a imagem vidente é realizado pela alteridade, pelo compartilhamento de um olhar alheio, “olhar de outro”, fruto de outra história e contexto.
Diante da reconhecida reordenação imagética do cotidiano contemporâneo e da apropriação da linguagem imagética como condição para interações, relações e sentidos construídos no espaço da vida, salta aos olhos a necessidade da escola rever seu paradigma e promover práticas educativas que valorizem a relação entre o geral e o particular, entre momentos constituintes e totalidades, entre conteúdos e processos dos atos da vida. Como tornar os alunos competentes para os desafios da sociedade atual? Cotejando os conceitos e as teorias de Bakhtin, pretendemos enfrentar os desafios teóricos a fim de estabelecer uma relação entre o cinema e a educação, de modo a provocar o olhar na busca sempre mais do que é dado a ver, a fim de atravessar o cruzamento entre o visível e o invisível. Talvez aqui resida uma possibilidade de encontrar caminhos para responder à questão colocada acima ou, pelo menos, para construir um campo epistemológico que coincida com o campo em que são formulas as questões na contemporaneidade.
Referências Bibliográficas
AMORIM, Marília. Cronotopo e Exotopia. In BRAIT, Beth. Bakhtin: Outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas (1). São Paulo: Brasiliense, 1996.
BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins fontes, 2003.
_______________ Para Uma Filosofia do Ato responsável. São Carlos,SP: Pedro e João editores, 2010.
________________Por Uma filosofia do Ato. Tradução de Faraco e Tezza para uso didático e acadêmico. S/data.
________________ Arte e responsabilidade. In Estética da Criação verbal. Martins Fontes; São Paulo, 2003.
CAMARGO Jr, Ivo e outro. Entrecruzando estéticas para tentar definir a linguagem cinematográfica. In Grupo de Estudos do Gênero do Discurso- GEGE. Arenas de Bakhtin: Linguagem e Vida. São Carlos: editor Pedro & João, 2007.
NOVAES, Adauto. O Olhar. Cia das Letras, São Paulo, 1989 NOVAES, Adauto. O Olhar. Cia das Letras, São Paulo, 1989.
SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
XAVIER, Ismail. Cinema: revelação e engano. In NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
Referências Fílmicas
MEIRELLES, Fernando. Blindness/Ensaio sobre a Cegueira. Brasil/Japão/Canadá, 2008.
[1] Professor do Colégio de Aplicação João XXIII da UFJF e doutorando do PPGE da Faculdade de Educação da UFJF sob orientação da Profª Drª Maria Teresa de A. Freitas
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