domingo, 26 de setembro de 2010

O Orkut como Espaço Dialógico de (Re)significação da Escrita de Sujeitos em Estado de Afasia


Monica Vasconcellos Cruvinel[1]
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
(Gilberto Gil)

Resumo
O presente trabalho analisa a escrita de um sujeito em estado de afasia nos espaços virtuais do Orkut. Investiga as formas como este sujeito constroi seus processos alternativos de significação e as maneiras como enfrenta os restritos recursos expressivos e interpretativos que condicionam sua linguagem. Diferentemente dos testes escritos aplicados a sujeitos em estado de afasia que, de modo geral, são limitados a procedimentos metodológicos fechados (cópia de palavras ou frases isoladas, identificação de letras, nomeação de objetos, transcrição em letra cursiva, identificação de erros ortográficos) - nas páginas do Orkut, foi possível analisar a escrita do sujeito afásico em situações reais de interação, interlocução e construção de sentidos, sem a mediação de profissionais da saúde, professores ou linguistas, ou seja, em textos escritos para uma comunidade leitora e não apenas como exercícios estanques para um único profissional leitor. Observou-se então, que a estrutura dialógica dessa rede de relacionamentos e sua “hiper-contextura” permitem que o sujeito em estado de afasia amplie suas possibilidades de combinação e seleção de fonemas, morfemas, palavras e sentenças no fio do discurso.

Introdução

            Para muitos sujeitos, um acidente cerebral vascular pode significar a condição para um grande silêncio. Ver-se desapropriado dos próprios movimentos e da própria fala, implica buscar processos alternativos para (re)significar a própria vida – o que nem sempre é fácil, numa sociedade acostumada a esquadrinhar, rotular, classificar e estigmatizar o Outro diferente. Esta ideia está implícita nos enunciados de alguns sujeitos que participam de um debate numa comunidade do Orkut, como vemos a seguir nos trechos 1 e 2:



Trecho 1


Trecho 2

            Desta forma, o Orkut, site de relacionamentos do Google, mostra-se como um espaço de vigorosa sociabilidade, onde o sujeito e a própria linguagem se constituem mutuamente, nos processos de interação verbal, regulados pelas relações sociais desta comunidade virtual. Esta imensa cidade azul abriga sujeitos de diferentes lugares, idades, etnias e gêneros. Abriga a alteridade constituinte do sujeito. É nesta outridade que podemos encontrar sujeitos em estado de afasia dialogando com outros sujeitos (afásicos ou não). Segundo Coudry,

a Afasia se caracteriza por alterações de processos lingüísticos de significação de origem articulatória e discursiva (nesta incluídos aspectos gramaticais) produzidas por lesão focal adquirida no sistema nervoso central, em zonas responsáveis pela linguagem, podendo ou não se associarem a alterações de outros processos cognitivos. (COUDRY, 2001, p.5)

            Se considerarmos que o sujeito afásico tem sua linguagem condicionada a um conjunto restrito de recursos linguísticos, o computador, a internet e, especialmente o Orkut, podem auxiliar este sujeito a utilizar a escrita no espaço virtual como mais uma forma de se construir sentidos e significações.
            O presente trabalho tem como objetivo analisar a escrita de El nos espaços virtuais do Orkut. El sofreu um AVC em 1989, quando tinha 37 anos. Mulher, advogada, mãe e esposa teve que (re)significar sua vida a partir das limitações que condicionaram sua linguagem. Em entrevista pelo MSN (trecho 3) e a partir de indícios de sua escrita no Orkut (trecho 4), podemos inferir que a parte mais comprometida de seu cérebro após a lesão, foi o hemisfério esquerdo.

Trecho 3


Trecho 4

            Os dados deste artigo foram coletados no início de 2008. Nesta ocasião, El era usuária do Orkut há dois anos.

Scrap[2]-enunciado: a enunciação no espaço dialógico do Orkut

            Os testes utilizados para avaliar a escrita de sujeitos afásicos, de modo geral, são limitados a procedimentos metodológicos fechados como: cópia de palavras ou frases isoladas, identificação de letras isoladas, nomeação de objetos, transcrição em letra cursiva, identificação de erros ortográficos, identificação de palavras homófonas e heterógrafas (BORGES, 2007) etc. - os testes não ocorrem no interior dos processos discursivos de interação verbal e, portanto, não situam os sujeitos afásicos em contextos reais de interlocução e de construção de sentidos.
            Para Bakhtin, autor que defende a ideia de que a construção dos significados se dá nos processos de interação verbal, regulados pelas relações sociais (2003, p. 272), a enunciação é um processo dialógico:

Todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes - dos seus e alheios - com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados.

            O enunciado concreto é a unidade real da comunicação discursiva, que é delimitado pela alternância entre os interlocutores. O falante termina seu enunciado para passar a palavra a outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. A conclusibilidade específica do enunciado é que cria a possibilidade de se responder a ele.
            O signo é plurivalente, dinâmico e vivo. Compreendê-lo é estabelecer uma relação dialógica entre ele e os outros já conhecidos. Toda compreensão sígnica é uma compreensão respondente – ou seja, os sujeitos compreendem um signo, respondendo a ele com outros signos. É uma cadeia ideológica que emerge no processo de interação verbal.
            Desse modo, no Orkut, cada scrap-enunciado passa a ser a unidade básica para a interlocução entre os sujeitos. Através da escrita, num espaço material mediado pelo computador, e em situações concretas de interação, alguns sujeitos em estado de afasia conseguem estabelecer uma compreensão ativamente responsiva dos discursos que circulam pelo site, assim como participar ativamente da produção destes discursos. Eles se utilizam da estrutura dialógica do Orkut para criar novas possibilidades de linguagem na afasia, como vemos nos trechos 5 e 6, abaixo, em que valorizam esse espaço dialógico.



Trechos 5 e 6

            El, antes do AVC, atuava como advogada e professora; atividades que demandam muita leitura e produção de textos escritos. Ainda que participe ativamente das discussões nos fóruns do Orkut (lendo e escrevendo scraps), El afirma, paradoxalmente, que não lê e não escreve. Isto demonstra, por um lado, que suas práticas de leitura e escrita ficaram mais restritas após o acidente vascular cerebral e, por outro, revelam que ela se sente incompetente quando se compara ao que conseguia fazer antes do AVC. Os seus depoimentos relatam também sua luta para voltar a ser como antes.[3]
Trechos 7, 8 e 9

            Os dados também mostram que os processos de leitura e escrita de El talvez sejam mais produtivos e dinâmicos nos espaços dialógicos do Orkut do que na escola tradicional e nas sessões tradicionais de fonoaudiologia. Neste site de relacionamentos, cada scrap-enunciado de El faz parte de uma cadeia discursiva com interlocutores reais. Nem mesmo El se dá conta de que, em um espaço efetivo de interação verbal, ela fala e escreve com competência comunicativa.
            O Orkut possibilita a compreensão do processo de enunciação, ao mostrar que os enunciados estão sempre inconclusos, abertos às respostas e às contrapalavras de seus interlocutores. Assim, podemos observar que os scraps do sujeito como enunciados são ativamente respondentes de um grande diálogo hipertextual. Além disso, a distância mediada pelo computador, ameniza as dificuldades que o sujeito em estado de afasia encontra para lidar com suas próprias limitações físicas, cognitivas e motoras - quase sempre, limitações que causam sentimentos de inadequação, vergonha e desconforto perante o Outro.
            Em conversa pelo MSN com El, pude perceber que ela demorava em média 10 minutos para ler e responder as mensagens que eu enviava. A seguir transcrevo um trecho de nosso diálogo, que revela muito sobre essas dificuldades:

Trecho 10

Monica diz (20:01):
Quando vc teve o AVC, alguém te ajudou com seus filhos?
El diz (20:11):
os meus pais.meus filhos e eu moramos 10 meses nos meus pais.e os meus irmãos(8 irmãos).mas queria ir pro meu apardamento.e não falava nem explicava nada..so chorava.queria FALAR OU EXPLICAR,mas não dava.eu falava;outrem,outrem...............Deus me livre.......
Monica diz (20:12):
Ainda bem que já passou... E o Atlético - é outra paixão mesmo? Vai ao estádio ver os jogos?
El diz (20:22):
ia!!!!!!agora sou cega,surda e muda(AHAHAHAH)sou cegado olho esquerdo e o direito,50%cega.o resto dos 50%,mal.sou surda  do direita.e muda,quando tô nervoza.o Atletico tá ruimm mesmo,então.............mas antes do AVC ,eu e os meus filhos iamos no mineirão.
           O MSN é uma ferramenta de comunicação em tempo real, como a interação face-a-face, ou a comunicação por telefone. Já a interlocução no Orkut não precisa ser, necessariamente, em tempo real. Os usuários do Orkut, ao escreverem um scrap, têm mais tempo para agenciar os recursos linguísticos necessários para compor seus enunciados. Esta característica constitutiva desta plataforma pode explicar a preferência de El  pelo uso do Orkut em oposição ao uso do MSN.

            No dado a seguir, podemos verificar outra característica da enunciação e da escrita na plataforma do Orkut: não é possível corrigir um scrap após ele ter sido postado. O enunciado fica registrado no site, a menos que o próprio sujeito apague sua mensagem. No caso, um membro da comunidade Já tive AVC, o Alê, criou um tópico em que perguntava como havia sido o AVC de cada um. El respondeu empolgada e terminou seu scrap afirmando que era bom escrever para o Alê. Após postar sua mensagem, repensou o seu enunciado e concluiu que o bom era escrever para todos na comunidade, não apenas para o criador do tópico. Como não podia corrigir seu scrap já postado, sem que o excluísse e o reescrevesse novamente, El postou outro scrap em que corrigia o seu engano “[Bom MESMO] é escrever pra vocês, tá?

Trechos 11, 12 e 13

            Ainda que em sua correção, El escreva corresão com “s” e não com “ç”, esta troca de letras não é relevante para os participantes do diálogo - ela pode também ocorrer com usuários não afásicos, sem comprometer a construção dos sentidos.
            Dessa forma, o Orkut se mostra como um espaço privilegiado para analisarmos os processos de enunciação escrita de sujeitos em estado de afasia.

Por uma linguagem sempre inconclusa

            Bakhtin (1993, 2003), falando do diálogo da vida, mostra-nos a impossibilidade do sujeito vivenciar seus dois expressivos e fundadores silêncios deste diálogo: o nascer e o morrer; o vir-a-ser e o deixar-de-ser. Acredito que passamos por muito mais do que dois intervalos silenciosos durante nossas vidas: nascemos e morremos inúmeras vezes.
            Como viver quando as condições de existência não mostram possibilidades de cálculo para uma vida futura que faça sentido?
            É no Outro que buscamos um acabamento sempre inconcluso e é o Outro que interrompe o nosso silêncio. Assim, são inter-silêncios os momentos em que o Outro se faz presente, olhando-nos de um ponto em que jamais poderíamos nos ver. São inter-silêncios os momentos em que somos ouvidos, somos lidos, somos contestados, somos percebidos, somos tocados, somos alterados...  Os trechos a seguir mostram alguns dramas pessoais que os sujeitos que tiveram afasia sofrem em seu cotidiano. Mostram como é difícil lidar com a incompreensão e com a discriminação do Outro em relação à condição de afasia em que vivem atualmente: marido, amigos, colegas de trabalho, entre outros. Isto nos revela de maneira profícua como nos constituímos como sujeitos na/através da linguagem, nas relações que mantemos com nossos Outros.

Trechos 14, 15, 16, 17 e 18


            A linguagem não é apenas um instrumento de comunicação social - “a linguagem é uma atividade constitutiva” (FRANCHI, 1992), ou seja, ela não é um produto pronto e acabado, é um trabalho que se constitui na interação verbal, no interior das relações sociais e que ao mesmo tempo refrata e reflete a realidade. A partir dela podemos observar a ação criadora de um sujeito agente que constrói, elabora seu pensamento e organiza suas experiências a partir dos recursos linguísticos e interpretativos que dispõe.
            No estado de afasia a condição de incompletude manifesta-se ainda mais à revelia do sujeito. Com sua linguagem condicionada a um conjunto mais restrito de recursos expressivos e interpretativos, o Outro tem papel fundamental para que o sujeito afásico consiga agenciar recursos alternativos na constituição de sua própria linguagem.
            Segundo Jakobson (1975), a afasia é um espaço produtivo para que os linguistas observem a linguagem em funcionamento. Ela altera todos os níveis de organização da linguagem (fonológicos, morfológicos, sintáticos e discursivos). Para a Lingüística não cabe pensar a afasia como uma patologia, mas sim verificar que tipos de perturbações e alterações na linguagem ocorrem nos sujeitos que sofrem algum tipo de lesão no cérebro. O autor defende a idéia de se usar critérios puramente lingüísticos para interpretar e classificar os fatos de afasia.

Falar implica a seleção de certas entidades lingüísticas e sua combinação em unidades lingüísticas de mais alto grau de complexidade. Isto se evidencia imediatamente ao nível lexical: quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sintático da língua que utiliza; as frases por sua vez, são combinadas em enunciados. (JAKOBSON, 1975, p. 37)
            Assim, o falante não tem autonomia para escolher livremente suas palavras. A seleção é feita sempre a partir de um código comum aos interlocutores. Da mesma forma, a combinação não é aleatória, ela também está condicionada às regras sintáticas da língua.
            Jakobson (1975, p. 39) afirma ainda que “todo signo lingüístico implica dois modos de arranjo”:

1)      Combinação: todo signo, em qualquer nível lingüístico aparece combinado com outros signos, ou seja, qualquer unidade lingüística, além de servir de contexto para unidades mais simples, encontra seu próprio contexto em uma unidade lingüística mais complexa. Combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação.

2)      Seleção: todo falante seleciona signos que podem ser substituídos por outros alternativos (equivalentes em um aspecto e diferentes em outro). Seleção e substituição constituem uma mesma operação.

            A “hiper-contextura” do Orkut permite que o sujeito afásico amplie suas possibilidades de seleção e combinação no fio do discurso. Neste site de relacionamentos, o sujeito pode lançar mão de vários recursos (ícones) como marcas da oralidade (letras maiúsculas, símbolos, desenhos, pontuação, negrito etc.), sem as restrições que a norma culta impõe à escrita em espaços institucionalizados. Além disso, ao possibilitar a criação de comunidades, o site dá ao usuário o sentimento de pertença a um grupo - o que, sem dúvida nenhuma, no caso da comunidade Já tive AVC, implica na partilha das dificuldades impostas ao sujeito que sofre um AVC, na troca de experiências em relação aos tratamentos e  nas diversas possibilidades de (re)significação da vida.
            Os scraps de El - a seguir, foram postados em fóruns de discussão diferentes, na comunidade “Já tive AVC”. O trecho 19 responde a pergunta se algum dos membros da comunidade já havia ficado em coma; o trecho 20 responde a um tópico sobre como os membros da comunidade lidam com os limites de sua linguagem e o trecho 21 responde a uma pergunta sobre as possíveis causas do AVC para cada usuário.

Trecho 19

Trecho 20

Trecho 21


            Nestes dados, podemos verificar que El consegue metaforizar, quando utiliza aspas para as palavras acordei e derrame e quando coloca a fala do médico ACHO em caixa alta. Ela não parece ter dificuldades em selecionar palavras equivalentes que podem funcionar com sentidos diferentes.
            Percebemos também, que todas as vezes que ela passa do discurso indireto livre para o discurso direto ela faz algum tipo de marcação para sinalizar o leitor:

Trecho 22
            quando “acordei”pensava; o que que eu tô no hospital, meu Deus?
Trecho 23
            todos falam; “embolia cerebral? O que que é?

Trecho 24
            os médicos falam, que ACHO que é fumo, porque fiz todos os exames e não deu...

            Nos trechos 22 e 23, El coloca “ponto e vírgula” ao invés de “dois pontos” para indicar um discurso direto. Isto ocorre, provavelmente, em virtude de uma possível hemiplegia[4], que compromete o uso da tecla SHIFT do computador por parte de El.; já que para utilizar a tecla SHIFT, esta tem que ser mantida apertada juntamente com outra tecla. Esta dificuldade foi verificada na maior parte de seus enunciados (com raríssimas exceções), já que ela não utiliza letra maiúscula no início das sentenças, embora sempre faça algum tipo de marcação/pontuação indicativa de uma pausa. Entretanto, El, algumas vezes utiliza o recurso de escrever em caixa alta, mas sabemos que é possível escrever uma palavra ou um texto inteiro em caixa alta, acionando a tecla Caps Lock apenas uma vez, e não concomitantemente apertada com outros caracteres do teclado. El, de modo geral, utiliza letras maiúsculas em nomes próprios ou em palavras que queira ressaltar.
            No trecho 24, El marca o discurso direto colocando a fala do médico entre vírgulas (que acho que é fumo). Usa a palavra ACHO como ironia, com letras maiúsculas, para reforçar a ideia de que nem o médico tem certeza das causas do AVC sofrido por El.
            Em outros scraps de El podemos verificar que ela, assim como outros usuários da internet, costuma fazer um largo uso da pontuação, trazendo marcas da oralidade para sua escrita. Ela também estende algumas vogais e escreve em caixa alta, palavras que deseja ressaltar, como observamos nos trechos 25, 26 e 27:
Trecho 25

Trecho 26
Trecho 27

            Os scraps de El que apareceram até agora neste trabalho, como já dissemos, foram postados nos fóruns de discussão da comunidade “Já tive AVC” – comunidade criada para a troca de experiências entre sujeitos que já tiveram um acidente vascular cerebral. Com isso, podemos observar uma recorrência temática e até da forma de sua escrita. El normalmente conta como foi seu AVC, quantos dias ficou em coma, sua dificuldade de fala e escrita, seu processo de recuperação e a forma como tem conseguido superar os limites a que foi submetida. Entretanto, quando posta mensagens nos murais de recados de seus amigos como, por exemplo, no trecho 25 acima, escrito para Lena - El deixa de falar apenas de seus problemas decorrentes do acidente vascular cerebral e aborda temas do dia-a-dia, como qualquer outro usuário do Orkut. O mesmo acontece com os trechos 28 e 29 a seguir, postados nos murais de recados de outros amigos:
Trecho 28

Trecho 29

            As trocas de letras que El faz e que aparecem ao longo de seus scraps como, por exemplo, corresão/correção (trecho 13), nervoza/nervosa (trecho 10), aparecem também na escrita de usuários não afásicos. Mas, em outro scrap postado na comunidade, El afirma o seguinte sobre as trocas de letras em sua escrita:
Trecho 30

            Neste enunciado, ela tenta exemplificar uma das dificuldades que tem em sua escritura. Ao fazê-lo, escreve também a forma correta da palavra: saponete/sabonete. Entretanto, a seguir, escreve aposendei, trazendo assim, de fato, um exemplo das trocas que costuma fazer. No trecho 10, El também utiliza a palavra aposendei, para se referir à sua aposentadoria.
            Neste espaço dialógico do Orkut, os sujeitos afásicos sentem-se à vontade para “falar” de suas dificuldades motoras, afetivas, cognitivas e psicológicas. Não se sentem intimidados para escrever, mesmo tendo consciência de que cometem alguns erros ou equívocos. O compromisso dos membros da comunidade não é com uma escrita “correta”, “normal”, mas é, antes, com a possibilidade de criar novos amigos, mesmo que “virtuais”, com quem possam dialogar e interagir, constituindo-se não como sujeitos “doentes”, “afásicos” – mas como sujeitos agentes, que produzem significações por meio da escrita na Internet. Escrita que, como a de qualquer sujeito, demanda o Outro - Outro que garante, ainda que provisoriamente, uma conclusibilidade sempre inconclusa à linguagem.

Algumas considerações

Com este trabalho foi possível verificar que o Orkut, configura-se como um espaço privilegiado para analisar a linguagem em funcionamento - espaço onde os sujeitos em estado de afasia podem estabelecer situações concretas de interação, sem a mediação de médicos, linguistas, professores ou fonoaudiólogos. Neste processo efetivamente dialógico e discursivo, o sujeito pode utilizar a leitura/escrita como recurso alternativo de constituição e (re)significação da sua própria linguagem e da linguagem de seus outros e também de sua subjetividade.
No Orkut, cada scrap-enunciado passa a ser a unidade básica para a interlocução entre os sujeitos. Através da escrita, num espaço material mediado pelo computador, e em situações concretas de interação verbal, alguns sujeitos em estado de afasia conseguem estabelecer uma compreensão ativamente responsiva dos discursos que circulam pelo site, assim como participar ativamente da produção destes discursos.
            Como a interlocução no Orkut não precisa ser necessariamente em tempo real, o sujeito em estado de afasia possui mais tempo para agenciar os recursos linguísticos necessários para compor seus enunciados. Este é um dos fatores que explica a preferência de El pelo uso do Orkut em oposição ao uso do MSN, que é uma ferramenta de diálogo em tempo real.
Além disso, a “hiper-contextura” do Orkut permite também que o sujeito afásico amplie suas possibilidades de seleção e combinação de recursos da língua para a produção do discurso. Neste site de relacionamentos, o sujeito pode lançar mão de vários recursos como marcas da oralidade (letras maiúsculas, símbolos, desenhos, imagens, fotografias, pontuação, negrito, cores etc.), sem as restrições que a norma culta impõe à escrita em espaços institucionalizados.
            O fato de ser uma interação à distância, mediada pelo computador, também possibilita que o sujeito afásico sinta-se menos constrangido com as limitações motoras, físicas, cognitivas e sociais a ele impostas em decorrência de um acidente vascular cerebral.
            Os sujeitos em estado de afasia, no ciberespaço, mais especificamente no Orkut, não se autodenominam “afásicos” ou “doentes” e não querem participar de comunidades que discutam a afasia como uma patologia. Na comunidade virtual Já tive AVC há uma vigorosa interação entre sujeitos em estado de afasia.
            Posicionando-se ideologicamente, os sujeitos que criaram e participam desta comunidade não se identificam apenas como portadores de alguma doença, colocam-se como sujeitos que tiveram, no passado, um acidente vascular cerebral e que agora enfrentam os limites que este lhes impõe em relação ao sujeito, à linguagem, ao corpo e, principalmente, às relações sociais. Nos fóruns de discussão postam tópicos sobre as dificuldades que encontram para se constituírem como sujeitos da e na linguagem, a partir de relatos da vida cotidiana.
            Embora os “internautas afásicos” tenham criado um espaço próprio para suas interações verbais sem a mediação de profissionais especializados em linguagem, em suas discussões observamos que seus discursos se constituem também pelo discurso da ciência, como por exemplo nos trechos abaixo:
Trecho 31

Trecho 32

Trecho 33

Trecho 34

Trecho 35

Trecho 36

            Em quase todos os scraps de El postados na comunidade “Já tive AVC” aparecem paráfrases de um mesmo enunciado: “Tive AVC há 17 anos, sou cega, surda, falo mal, escrevo mal, leio mal, tenho sequelas no lado direito do meu corpo.”
            El marca sua identidade, na comunidade, a partir do discurso médico da “doença” e do “déficit”. Embora esteja conseguindo (re)significar sua vida  lendo, escrevendo, cantando, passeando, cuidando dos filhos, estabelecendo interações verbais em situações reais de discurso, usando o computador e fazendo novos amigos – o discurso de El é marcado pela dificuldade e pelo que lhe falta. Seu falar é um repetir intermitente de que é difícil constituir-se como sujeito quando se sofre uma lesão cerebral. É difícil buscar processos alternativos que compensem suas perdas. É muito difícil (re)significar a vida quando se é diferente.
            Apesar de todas as dificuldades, os sujeitos em estado de afasia têm encontrado no ciberespaço, uma possibilidade para estabelecerem vínculos de amizade, dialogarem e experimentarem novas formas de trabalhar a própria linguagem e agenciarem outras de suas múltiplas identidades (mãe, esposa, filha, profissional, estudante, avó, mulher, consumidora, usuária da Internet etc.), além da identidade de quem sofre um AVC. Neste espaço comunitário, onde a diferença aparece atenuada pela partilha da dor e da dificuldade, os sujeitos em estado de afasia conseguem fundar no futuro uma memória repleta de possibilidades e utopias. Segundo Bakhtin (1993; 1999) é a partir do futuro que o sujeito se desloca no presente. Do lugar único e irrepetível que ocupa no Ser, sem nenhum álibi para sua existência, é que calcula as possibilidades que estão por vir. A memória do sujeito sobre si mesmo é uma memória de futuro. Viver torna-se, então, (re)inventar maneiras de atualizar os sentidos quando estes parecem ausentes.
  
Referências Bibliográficas

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Bakhtin, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem.  9a. ed., (M. Lahud, & Y.Vieira Trads.) São Paulo, SP, Brasil: HUCITEC, 1999.

Bakhtin, Mikhail. Para Uma Filosofia do Ato. (C. Faraco, C. Tezza. Trads.) São Paulo, SP, Brasil: Tradução Universitária, 1993.

COUDRY, Maria Irma. Diário de Narciso – Discurso e Afasia. 3ª. edição., São Paulo, SP, Brasil: Martins Fontes Editora Ltda., 2001.

COUDRY, Maria Irma & SABISON, Maria Laura Mayrink. Pobrema e Dificulidade. In: ALBANO, Eleonora et ali.(org.)  Campinas, SP, Brasil: Mercado das Letras.

COUDRY, Maria Irma. Processos de significação no estudo discursivo da afasia. (no prelo)

COUDRY, Maria Irma. O que é o dado em neurolingüística?. In: O Método e o Dado no Estudo da Linguagem. De Castro, Maria Fausta Pereira (Org.)

CRUVINEL, Monica Vasconcellos. Rastros virtuais de uma morte (a)enunciada : uma analise dos discursos do suicidio pelas paginas "brasileiras" do Orkut. Dissertação de Mestrado – IEL/ UNICAMP, 2008. http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000439597

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. 6ª. edição, Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Editora Forense Universitária, 2006.

FRANCHI, Carlos. Linguagem – atividade constitutiva. In: Cadernos de Estudos Linguísticos, vol. 22, p. 9-39, Jan-Jun, 1992. UNICAMP.

GERALDI, João Wanderley. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In: FREITAS, Maria Teresa; SOUZA, Solange Jobim; KRAMER,Sônica (Org.) - Ciênicas Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. 2a. ed., São Paulo, SP, Brasil: Cortez Editora; 2003.

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JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, SP, Brasil: Editora Cultrix, 8ª. edição, 1975


[1] Mestre em Linguística Universidade Estadual de Campinas - doutoranda em Linguística IEL/ÚNICAMP
[2] Scrap são as mensagens que cada usuário do Orkut posta nas comunidades temáticas do site ou nos murais de recados de outros usuários.

[3] Esses enunciados nos lembram o que diz Oliver Sacks sobre os sujeitos e as doenças. Para o autor, cada sujeito é um herói no enfrentamento de sua doença. Cada um encontra seus meios e suas armas e buscam romper os limites impostos pela patologia.
[4] A hemiplegia é o comprometimento motor de um dos lados do corpo (hemi). Compromete, às vezes, totalmente a possibilidade do movimento. Ocorre uma hipertonia dos membros superiores e/ou inferiores.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto! Ele nos faz pensar nas nossas próprias inconclusões e nas estratégias que inventamos para reinventar vida, sempre, indpendente das circusntâncias.
    O texto também esclarece como a linguagem é constitutiva em nossas vidas.

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