Valdemir Miotello
Todos aqui do GEGe temos pensado muito e exaustivamente sobre os eixos que alimentam as conversas do Rodas desse ano. As questões enlaçando Ética e Estética. O mundo da cultura e o mundo da vida. O mundo do ser e o mundo do sendo. O mundo material e o mundo dos Signos. Também tenho filosofado muito sobre essas questões. E a filosofia não é apenas uma teoria. Longe disso. Ela faz parte da nossa vida, ela reflete e refrata o que a gente é.
Estes últimos tempos trouxeram propostas, perspectivas para se pensar a ética que tinha muito de pragmático, nós vivemos num mundo pragmático. Queremos vantagens. Assim, mesmo querendo levar vantagem como primeira lei nacional, a famosa lei do Gérson [isso é coisa do meu tempo] também penso em outra lei, falada nos últimos tempos, a lei do Barrichello; quando na luta com Schumacher, de vez em quando ele tinha que perder, para o Schumacher ganhar; Assim o resumo dessa lei é: “Até perdendo a gente ganha”, porque ele continuava empregado, continuava ganhando dinheiro, mas ele tinha que perder para o Schumacher ganhar; isso de vez em quando é o nosso próprio comportamento: a gente tem que perder para que alguém ganhe; levar vantagem não dá para todo o mundo; um bocado de gente tem que perder para que um outro ganhe. Essa é uma visão mais pragmática. Quem não vê no dia a dia que a gente troca várias coisas por uma vida um pouco mais sucedida; e a gente troca os nossos próprios comportamentos, as nossas convicções, aquilo que a gente é, por uma vida melhor, por emprego, por dinheiro, por cargo; a gente é pragmático, e nisso pode ter problema.
Pensei também, filosoficamente, nos grandes últimos sistemas, e, para dar um contraponto com Bakhtin, na perspectiva mais kantiana de ética, no caminho por onde Kant andou; uma perspectiva mais universalizante. Funciona assim essa perspectiva idealista: Aquilo que penso sobre ética tem que ser uma regra e tem que servir para todos. Logo instaura-se uma lei do dever ser. Cada um de nós tem que agir daquele jeito, e tem que agir apenas daquele jeito; é um dever ser, um imperativo, que é maior do que a gente, e teria que abarcar todos nós, e teria de garantir uma universalidade do dever, e não um dever vivido individualmente. Essa vivência individual teria que ser única, responsável, social, o que também garantiria que viveríamos em uma perspectiva ética. A gente já sabe que no dia‐a‐dia, no decorrer da existência de cada um, fica mais complicado pensar uma perspectiva que seja abstrata, pois não é viável na vida individual de cada um. Esse é um problema a ser pensado e conversado: como é que a gente pode navegar numa perspectiva mais universal, e numa perspectiva de ato singular na vida individual de cada pessoa, e isso ser considerado um movimento, um jogo, uma ação um ato ético responsável entre o universal e o singular?. Bakhtin pensou isso.
Bakhtin certamente vai ser muito falado agora no decorrer do séc. 21; ele desde cedo lia todos os clássicos, os filósofos, de que modo que ele mesmo disse: quando eu tinha 13 anos, já conhecia toda a filosofia alemã, Kant, Hegel, Marx, tudo aquilo que era possível conhecer. Um camarada, portanto, que estudou muito todos os grandes autores, os autores franceses, os autores alemães; escreveu um tese sobre Rabelais. Um camarada estudioso. E que aprendeu a estudar em grupo, com estudiosos de áreas diversas; soube aproveitar aquele vigor que a Rússia estava vivendo naquele momento, com muitos intelectuais espalhados pela Rússia inteira.
No “Para uma filosofia do ato responsável” Bakhtin envereda por vários caminhos para pensar a filosofia moral. O primeiro deles é pensar a ética como filosofia moral, que também é o que faz a escola de Frankfurt ainda hoje. É pensar a dimensão moral da vida. Falar em moral hoje, mesmo aqui no Brasil, parece uma coisa imoral. Falar em moral parece um palavrão na sociedade em que a gente vive. Pesquisa do Data Folha revela que brasileiros se sentem cercados de corrupção por todos. Então falar em moral parece imoral. A palavra moral virou um palavrão. Então uma questão é como podemos pensar a ética como uma filosofia moral. Filosofia moral não tem nada a ver com igreja; é um jeito não de comportamento, mas um jeito de ser; o ethos diz quem eu sou, quais são os compromissos que eu tenho, quais são as responsabilidades que eu assumo, como eu vejo responsavelmente, como respondo à vida; essa é uma primeira questão. A segunda seria como posso pensar a ética enquanto uma questão de linguagem. Um linguista pode falar de ética; pode falar de tudo, mas principalmente da vida. Assim, essa é uma questão: como é que posso pensar a ética como uma questão de linguagem. E uma terceira questão é, por outro viés, como pensar a linguagem enquanto uma questão ética. Quer dizer, aqui podemos andar em pista dupla: como pensar a ética como uma questão de linguagem, e depois pensar a própria linguagem como uma questão ética. Para pensar isso com os olhares de Bakhtin é preciso responder a essa pergunta: como Bakhtin via essa questão da filosofia moral, e qual o seu objeto? Bakhtin pensava o objeto da filosofia moral como o ato de pensar. Aqui ele vai tomar da mesma água que passa na corrente da modernidade. Se a gente voltar um pouco para trás, vamos encontrar Descartes entrando nesse mesmo barco. Se a gente quiser pensar a vida, pensar a filosofia moral, pensar a ciência, pensar em qualquer coisa, é preciso partir do pensamento. Todos nós conhecemos aquela famosa frase do Descartes, “Eu penso, logo existo”. Logo eu sou. O pensamento era constituidor; eu me constituo a mim mesmo; eu sou mais eu, independente dos outros. É um projeto arrogante, excludente. Rompeu aquela cadeia medieval de que Deus pensa por você, é verdade. Agora não tem mais isso. Agora, com Descartes, é você que tem que pensar. Instaurou‐se um novo sujeito, um sujeito que se constitui a si próprio, por si próprio: “penso, logo existo”. Tem um livro muito interessante, brincalhão, brinca com a modernidade e eu lembro dele quando falo de Descartes; é aquele das aventuras do Barão de Münchausen. Em um momento do livro [também há um filme bem feito sobre ele] o Barão e seu cavalo caem em uma areia movediça, e vão atolando, até ficarem apenas com as fuças de fora. Não há onde se agarrar, nenhum cipó, nenhum campinzinho... Quanto mais se mexem mais atolam. Então ele se agarra pelos próprios cabelos, aperta bem as pernas ao redor do cavalo, e ambos saem do atoleiro, puxado pelos cabelos do barão. Nesse atoleiro das possíveis epistemologias eu saio por mim mesmo. Descartes ainda segue pensando em Deus e o criando; pensando na alma e a criando. Uns 100 anos depois chegou‐se ao exagero dos exageros: “Se eu pensar numa ilha cheia de ouro, então ela também existe”. E aí se chegou num exagero da racionalidade, e racionalidade idealista, como se meu pensamento conseguisse constituir a própria realidade do mundo. Esse ainda é um risco sempre presente. Álvaro Vieira Pinto, pensando sobre essa questão e apresentando uma perspectiva inteiramente marxista, vai dizer: “Nós precisamos contrapor a um projeto de “Cogito, ergo sum”, um projeto invertido: “Eu sou pensado, logo existo”. Primeiro sou pensado e então penso. Bakhtin vai dizer: O Outro se dirige a mim; ele pensa em mim. “Eu sou pensado”, e aí eu começo a pensar: inverta‐se a questão. Essa constituição da própria identidade deve vir pela alteridade, deve vir pelo outro, e não por mim.
Logo, esse “eu sou mais eu” tem que ser o outro dizendo para mim: “Você é assim; vejo você dessa forma...”. Isso que talvez o mundo esteja dizendo para o Brasil: “Vocês podem estar num lugar mais elevado”. Porque nós não notamos claramente que mudamos; os outros é que estão notando melhor que nós estamos mudando. Nas relações com os outros países, o lugar que nós estamos ocupando aparentemente é um lugar diferente, novo, e quem está dizendo isso são os outros, não somos nós. Nós somos pensados e não apenas pensamos. Então, este projeto de colocar o pensamento como objeto não é um projeto que Bakhtin instaura; Descartes já tinha instaurado, mas Bakhtin instaura de outra forma, de forma invertida. Não pensar para constituir a própria identidade; mas pensar como lugar da responsabilidade social. A construção da própria identidade vem pela alteridade. Quero instaurar o pensar como um lugar pelo qual eu respondo. Pelo meu pensamento eu respondo. O que eu respondo afinal? Se penso, se pratico esse ato de pensar, eu respondo pelo quê? Bakhtin diz que, quando eu respondo, não respondo a uma necessidade lógica, não respondo a uma necessidade teorética. O teoricismo está na linha da impostura e não da postura. Mas quando começo a pensar, o ato de pensar atende a uma necessidade ética. Aqui já estou encontrando essa primeira questão que Bakhtin coloca que é: como posso pensar a ética como uma filosofia moral? O próprio ato de pensar já atende a uma necessidade ética. Esse lugar onde estou, o lugar onde cada um de nós está, é um lugar único, irreproduzível, irrepetível, de onde apenas eu vejo o mundo, de onde apenas eu vejo os outros; neste lugar eu necessito pensar. Essa palavra necessitar é importante. Eu tenho um necessitamento, uma necessitação de pensar. Porque deste lugar onde eu estou, ninguém mais vai poder fazer isso por mim. Olha a questão ética posta aí. Estou num lugar onde só eu posso pensar aquilo que eu penso. O lugar em que estou agora, ou o lugar em que cada um está agora, constrói um lugar singular. Antes eu tinha feito uma proposta que era tentar juntar uma perspectiva abstrata, universalizante a uma perspectiva de singularidade. Há uma perspectiva ética, que é universalizante, abstrata? É possível. Mas ela só existe caso ocorra num lugar singular, num lugar que cada um de nós ocupa, numa ação única. Logo, o ato de pensar, o ato de você pensar, só você pode fazer e mais ninguém.
Essa é a primeira perspectiva que eu gostaria de levantar. Quer dizer, é uma perspectiva que defende que seu lugar não pode ser ocupado por uma outra pessoa; daí essa perspectiva de necessidade do ato de pensar. Você precisa pensar! Depois Bakhtin diz: “Somente o ato de pensar pode ser ético”. “Somente o ato de pensar pode ser ético, pois é nele que o sujeito é convocado”. Nenhum outro ato instaura a ética. Vejam que não estou usando a palavra ação. Bakhtin também foge dessa palavra; ação são os acontecimentos do cotidiano. Ele insiste no próprio ato de pensar. O ato de pensar, de construir um pensamento, de enunciar um pensamento, como se fosse ainda nesse primeiro momento, um discurso interior, seu; social mas seu; depois ele vai precisar se exteriorizar, ou ele não se completa. E para isso que o sujeito é convocado, é uma convocação. Não é alguma coisa que eu faço de forma fortuita. Eu sou obrigado a fazer, eu sou convocado a fazer, quem me convoca a fazer é outro. Vejam que aqui já está instaurada a figura do outro; não sou eu quem me convoco. Eu não me chamo a mim mesmo, não me puxo para a racionalidade e para o ato por meus próprios cabelos; o outro me chama, o outro me cobra esse pensamento. O outro me exige esse pensamento, para que eu mantenha com ele uma relação de alteridade. E nessa relação de alteridade, eu preciso ser eticamente; só o ato de pensar pode ser ético, pode exercer essa obrigação, essa ação responsável. Agora estou usando ação responsável, que é o ato de pensar com o qual instauro a alteridade, a constituição de um outro diferente de mim. Essa é uma segunda perspectiva do ato enquanto ético. Ato de pensar é um ato que é responsável. Eu devo responder por ele, ele é assinado, tem a minha assinatura, tem a minha responsabilidade. Depois que assino, não posso mais escapar de responder por aquilo. O sujeito que pensa um pensamento, diz Bakhtin, assume que pensa assim face ao outro. Não é para mim que penso; eu penso face ao outro; logo eu assino o meu pensamento. Ele tem a minha cara, ele tem a minha responsabilidade, ele tem o meu jeito, ele tem o meu ethos. Então, somente o ato de pensar pode ser ético. Aqui entro num conceito de Bakhtin que é a responsabilidade/responsividade/respondibilidade. E aqui dá para abrir em duas perspectivas: de um lado, a responsabilidade enquanto o lugar do ato responsável; de outro, a responsividade, como ato exigido pelo outro. Aqui acho que tem uma coisa que é muito bacana em Bakhtin; qualquer ato que eu esteja fazendo, e qualquer ação que o ato de pensar demande, estou respondendo a uma outra pessoa; não respondo para mim mesmo. Vejam que quando digo responder, estou respondendo ao outro; pode ser uma fala; o outro falou, eu respondo; pode ser uma ação que o outro está me cobrando. Isto é, qualquer ação minha ou qualquer ato de pensar, é um ato responsável e ao mesmo tempo é um ato de responder. Está na mesma raiz. Eu respondo, eu estou sempre dizendo para o outro alguma coisa. Isso constitui um ato responsável. Respondibilidade e responsabilidade são duas faces de uma mesma moeda; eu sou responsável, e ao mesmo tempo estou respondendo. Uma outra questão para a qual Bakhtin nos alerta, e é extremamente importante, é que o ato de pensar é um gesto ético no qual eu me revelo por inteiro; não dá para me esconder, aos pedaços; é um arriscamento, e eu me arrisco inteiro. Talvez a gente esteja vivendo num mundo em que parece que as pessoas não se arriscam mais. Mas Bakhtin vai dizer que há uma exigência de arriscamentos. Ele constrói um pensamento muito interessante, que diz assim: Eu não tenho álibi, eu não tenho como me esconder, eu não posso me esconder. Eu me responsabilizo inteiramente pelo meu pensamento. Eu não tenho álibi para não pensar. Eu não tenho álibi para não responder. Eu não tenho álibi para não tomar posição. Não adianta você querer se esconder; é isso que ele está dizendo. A sua própria existência já é um ato ético; não se esconda, não tem como se esconder. Logo, ele nos provoca para que a gente assuma, para que a gente se revele, para que a gente se arrisque, para que faça um arriscamento. Há uma necessitação de se arriscar. E, finalmente, uma outra questão que ele trata é que esse pensamento que é universal, que me colocaria numa perspectiva do ato universal, do pensamento abstrato, apenas é reconhecido quando ele existe de forma única para mim. Essa é uma discussão que a filosofia já faz há 2.300 anos ‐ a existência da coisa em si, e que o começo do século 20 renovou com muita força e que chegou a Bakhtin. A existência da coisa em si e a existência da coisa para mim; a coisa em si existe como objeto, a coisa para mim existe enquanto sujeito. Se já ponho naquele objeto a minha visão, o meu ponto de vista, o meu olhar, se já assino aquele objeto, o próprio Marx disse que essa ação humaniza tal objeto. E aquele objeto que singularizo como humanizado, me humaniza e humaniza outros em troca. Vai se dando esse jogo dialético: o humano humanizando o mundo, aplicando a ele minha assinatura responsável, meus valores, meus pontos de vista, meus pensamentos, o jeito como eu vivo o mundo, como eu atribuo valores a ele, e o mundo se devolvendo humanizado, com a cara do humano, devolvendo humanização, me constituindo de volta. É o próprio mundo fazendo mediação, e sendo mediado. Então, à medida que eu me relaciono com esse universal individualizado, ele começa a existir para mim; estou garantindo a ele a existência, que é mais importante para mim que a essência. O mundo começa a existir na relação. E eu também! As coisas todas existem porque eticamente atribuo o meu ponto de vista a elas, o meu olhar, as minhas ideias, o modo como eu vejo o mundo, como eu penso as coisas. Logo meu pensar transforma aquele pedaço do mundo, porque atribuo constitutivamente o meu ponto de vista a um objeto. Então, não só eu começo a ter existência nessa relação, como ele, o outro, começa a ganhar existência a partir dessa relação, neste jogo social. Essa é uma última idéia que quero conversar: “Eu não penso sozinho”. Meu pensamento já é uma resposta, logo todo o pensamento é social. Aquilo que a gente diz individual, o próprio individual é social. O individual não é alguma coisa que eu construo por mim mesmo. Só há o individual no jogo com o social, no jogo com o outro. Logo, não vamos pensar o individual como separado e independente dos outros. Isso não existe. Só posso ser eu no jogo com o outro, jamais sem o outro. Assim a individualidade, ou o que penso, ou aquilo que atribuo, ou o valor, é social sempre.
São essas algumas das questões que gostaria de colocar nas Rodas, para falar de Ética na sua relação extremamente tensa com a Estética. As coisas na relação com a vida! Viva a vida!
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