Evani Andreatta Amaral Camargo
Este texto tem como propósito fazer uma co-relação entre o conceito de intuito discursivo (querer dizer) de Bakhtin de sujeitos com alterações linguísticas e o papel do terapeuta/ interlocutor de tais sujeitos, que possibilita (ou não) que este querer dizer seja efetivado. A questão Ética é criar condições no processo dialógico para isto.
A linguagem é, por princípio, dialógica e a significação só é construída nas interações verbais. Assim, é neste espaço que é possível a constituição do sujeito. Segundo Bakhtin (1997), a subjetividade decorre do processo de alteridade, quando me identifico diferente do outro. Para este autor, o desenvolvimento linguístico realiza-se pela enunciação, a partir dos enunciados concretos: ‘aprender a falar é aprender a estruturar enunciados’ (p. 302). Ainda para Bakhtin, só é possível o desenvolvimento linguístico pela apreensão dos gêneros discursivos. É porque os bebês estão imersos na atividade e a organizam segundo gêneros que a aquisição de linguagem se dá. Portanto, ‘aprender a falar é aprender a estruturar enunciados’ nos diversos gêneros. Dominamos os gêneros, suas estruturas linguísticas e transitamos entre eles.
Há uma multiplicidade de gêneros, porém o intuito discursivo de cada um realiza-se por meio de um determinado, conforme a esfera da comunicação verbal, a temática que está sendo desenvolvida, a necessidade dos interlocutores etc.
Em crianças com alterações de linguagem decorrentes de acometimentos neurológicos, como nos casos que venho estudando, muitas vezes, o desenvolvimento linguístico se configura de uma forma diferente, tanto pelas questões intrínsecas dos sujeitos como pelas interrelações que se estabelecem com os interlocutores, no processo de enunciação.
Na linguagem de tais sujeitos, muitas vezes, faltam os recursos da língua e então há uma maior dependência da fala do outro, tornando-se fundamental que os interlocutores dessas crianças interpretem outros processos de significação (gestos, desenho, escrita) que elas possam apresentar. Há, então, a necessidade do acesso a uma língua para que o intuito discursivo dessas crianças se faça presente. É, portanto, na enunciação, que o querer dizer e, portanto, a subjetividade, de fato, emergem. Portanto, em crianças com dificuldades linguísticas, o acesso à língua pode necessitar de outros caminhos e é o outro da interação que vai possibilitar que isto ocorra.
Em relação ao querer dizer do locutor (BAKHTIN, 1997), se faz necessário identificar se o locutor conseguiu, de fato, expressar o que desejava. Para Bakhtin ‘o tratamento exaustivo do objeto do sentido, do tema do enunciado, varia profundamente conforme a esfera da comunicação’ (p.300). É o que ele denomina de tratamento exaustivo do objeto de sentido, que aliado aoquerer dizer do locutor e às formas típicas de estruturação dos gêneros discursivos possibilitam o acabamento do enunciado e, portanto, a possibilidade da réplica. Tanto em sujeitos com alterações linguísticas como em crianças no processo de desenvolvimento de linguagem, o intuito discursivo e a exaustividade do objeto de sentido estão mais atreladas ao discurso do outro, fazendo com que o inacabamento constituinte da interlocução verbal também dependa mais do interlocutor.
Desta forma, nos processos terapêuticos, um caminho para o papel do interlocutor talvez seja construir com tais sujeitos objetos de sentidos atrelados aos intuitos discursivos. Em um estudo que fiz sobre narrativas dessas crianças, as mesmas demonstraram seus quereres dizer pelas escolhas dos eventos e narrativas que selecionaram. Verifiquei nos episódios analisados que tais escolhas foram dialogicamente construídas e eram dependentes das sugestões e possibilidades dadas pelo adulto. Assim, identifico estar aqui implícita a questão Ética apontada por Bakhtin (1921/2009) e a importância do posicionamento do locutor em relação a seus Atos, o não-álibi da existência. Desta forma, argumento que os terapeutas dessas crianças, ao assumir esse posicionamento, qual seja, o de tentar possibilitar a manifestação do querer-dizer das mesmas, estão se colocando eticamente diante de tal questão.
A responsabilidade, então, é a fundação de ação moral, o modo pelo qual nós superamos a culpa da cisão entre nossas palavras e nossas ações, mesmo que não tenhamos um álibi na existência – de fato porque não temos tal álibi: ‘É apenas o meu não álibi no Ser que transforma uma possibilidade vazia em um ato ou ação responsável e real (p. 44)’. (1921/2009, PREFÁCIO DE MICHAEL HOLQUIST, p. 9).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Para uma Filosofia do Ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Texto em PDF, sem revisão, somente para fins acadêmicos, 1921/2009.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes Editora Ltda, 1997.
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