Paulo César Machado
Para os propósitos desta nota, o que segue são algumas reflexões sobre a linguagem e a língua de sinais no ensino formal (escolarizado) inspiradas na arquitetura bakhtiniana no espaço indissociável da ética e estética. Sem ignorar que Bakhtin nada falou sobre a “linguagem de sinais”, uma vez que em sua época os sistemas de sinais utilizados pelos surdos eram considerados e, portanto, nomeados “mímica” ou “sistema mímico”, tentarei, em função do ato de pensar algumas problematizações, identificar relações com alguns pressupostos de tal arquitetura teórica.
Por um lado, a arquitetura dessa obra tem como fio condutor a concepção dialógica da linguagem, que faz interagir antagonismos, diferenças e oposições no interior da palavra, sempre perpassada pela palavra do outro. O autor é sempre (in)completo[1], alterna a sistematicidade de um discurso científico com a espontaneidade das práticas culturais e comunicacionais da vida cotidiana. Estamos na vida sem um álibi, em eterno vir-a-ser. Todo ato contém uma ética e uma estética, revela uma cognição, um modo de ver o mundo.
Por outro, aponta uma reflexão ampla acerca da linguagem, levando a cabo uma reflexão dialógica acerca da natureza interdiscursiva, heterogênica, interativa e, sobretudo, social, como condição própria dessa linguagem. Como reflete Bakhtin/Voloshinov (1929/1990:123):
A verdadeira sustância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social de interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade da língua (Grifos no original).
O núcleo constitutivo da linguagem é, por excelência, o ato dialógico em seu acontecimento concreto. São as respostas que damos no mundo da vida que concretizam o mundo da cultura. Pelo conceito de "memória do futuro", o passado está à minha frente, o futuro está dentro de mim, é o que está a se realizar (devir).
Para Bakhtin, a história de qualquer língua tem o mesmo núcleo gerador de um enunciado particular, tem seu início nas interações sociais. Propõe uma teoria acerca da linguagem vinculada à constituição da subjetividade e da consciência humana, opondo-se a correntes vigentes[2] na sua época: o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista. Seus estudos trazem à tona uma noção da relação dialética entre ideologia e psiquismo, mostrando, assim, que o indivíduo é formado a partir do contexto ideológico ao qual está exposto: “os signos só emergem, decididamente, no processo de interação entre uma consciência individual e uma outra [...] A consciência só se torna consciência quando impregnada de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente pelo processo de interação social” (BAKHTIN/VOLOSHINOV 1929/1990:34).
Sinteticamente, pode-se dizer que o autor faz o seguinte percurso: concebe o diálogo como unidade real da linguagem, entretanto, o diálogo é o produto da relação de alteridade existente entre duas consciências socialmente organizadas. Trata-se, de um diálogo incluso que constitui a vida humana, nesse sentido, de uma ética sem concessões. Na decisão que tomo, tenho responsabilidade frente a um horizonte de possibilidades (faço, não faço). Esse Ser da contemplação, portanto, numa filosofia do esteticismo, sou eu mesmo e não sou eu. Devo compreender o objeto em relação ao meu ser (evento único).
Assim, para que o locutor se apresente como tal é necessário que já seja uma consciência que se reconhece no outro: “aquele que aprende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores” (BAKHTIN/VOLOSHINOV 1929/1990:147).
O pensamento bakhtiniano se apóia em dois alicerces: a alteridade, que pressupõe a existência de um “outro” reconhecido pelo “eu”, e ambos – eu e outro – dentro de um espaço político e social historicamente determinado; e o dialogismo, que rege as relações entre ambos os sujeitos, não necessariamente harmoniosas e desprovidas de conflito (GERALDI, 2003). A relevância desses alicerces reside no mérito de centralizar no acontecimento lingüístico o germe da consciência. Desde o nascimento, o sujeito é incluído em redes enunciativas e convocado a falar, conferindo-se a ele um lugar nessas teias; suas ações são interpretadas, significadas, demandam dele respostas engatadas em construções sociais de uma determinada época, materializadas pela linguagem.
O sujeito constitui sua identidade ao participar desses embates, quer dizer, ao ocupar o papel de interlocutor e de locutor em relação a um outro. O processo dessa constituição é dialético em natureza, marcado por fluxos e refluxos, idas e vindas, tomadas e retomadas de pontos de vista etc., onde subjazem a ética e a estética.
Nessa perspectiva, o sujeito está sempre em estado de devir: sua história está em permanente (re)construção e constituição em meio a (e como um) coro de vozes – vozes que, monologizadas, oferecem os fios que tecem a de suas narrativas; narrativas que ao serem escutadas e interpeladas pelo outro permitem não apenas a reconstrução de sua história mas a inserção dela no tecido de narrações coletivas.
O objeto de minha reflexão está no “entre-lugar” das narrativas sinalizadas e oralizadas entre professor e aluno no ensino formal, isto é, as narrativas enunciadas em sinais por sujeitos surdos e ouvintes.
A singular condição lingüística dos surdos, “falantes” de uma língua não oral, sem escrita e não reconhecida, permite que aspectos cruciais relacionados à linguagem, à subjetividade e às práticas sociais emerjam necessariamente e, em geral, de modo dramático, em especial no ensino formal. Esse processo é baseado tão somente em um imenso desconhecimento sobre a realidade dos surdos; das frustrantes e frustradas tentativas desses alunos em acompanhar explicações e conhecimentos em uma língua que desconhecem; enfim, são indicações que apontam para busca de caminhos a percorrer, necessariamente, a partir do reconhecimento das diferenças de linguagem e de cultura, construindo proposições (MACHADO, 2008).
. Diferenças lingüísticas e culturais entre sujeitos surdos e ouvintes geradas que exemplificam que o mundo ético é fluido e concreto, enquanto que a historicidade do ser em evento, participante, não é. O centro de valores se dá fora do humano em toda a humanidade, considerando-se a natureza como centro irradiador da verdade. A identidade é dada pela alteridade. Fazendo-nos repensar a(s) identidade(s) dos sujeitos sempre em relação.
A partir do princípio que o sujeito bakhtiniano é relacional, e aparece justamente na/da mediação entre o eu-outro dialógico, penso que outras formas de mediação do conhecimento devem, então, ser construídas, inventadas para os sujeitos surdos no ensino formal. Uma das possibilidades está nas possíveis relações das imagens visuais utilizadas na mediação do professor e a experiência visual do surdo no seu processo de aprender, uma vez que o professor, com muita freqüência, na prática pedagógica com alunos surdos, necessita recorrer a imagens visuais no desenvolvimento de sua aula. “A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social [...] A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo” (BAKHTIN/VOLOSHINOV 1929/1990:36).
Com base nas reflexões de Bakhtin sobre linguagem que não privilegiam nem o sistema nem a “modalidade fisiológica da recepção e expressão”, inspiro-me em pensar outras posturas pedagógicas, orientando-me para uma concepção de língua(gem) e suas relações ética e estética; o seu uso e lugar de construção lingüística na realidade bilíngüe (Português /Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS)
Nesse sentido, o ato responsável de escrever e ler se justifica porque temos falado demais, e na oralidade as palavras voam depressa demais, sentimo-nos fora de nós mesmos, nossas palavras nos atacam. Dizemos as palavras e, por vezes, as perdemos. O tema é provocativo entre tantos outros no exercício da alteridade entre os interlocutores do ensino formal. Algumas das perguntas que surgem são: Que relações éticas e estéticas nos apresentam esse contexto bilíngüe (Português /Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS)? Falamos em ética no ensino formal ancorados em que epistemologia? Como posicionar-se pela ética bakhtiniana nesse tempo e espaço e “entre- lugares” lingüísticos no contexto do ensino formal de nosso país? Como analisar do ponto de vista da estética o ato de ensinar e aprender na abordagem educacional bilíngüe (Português /Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS)? Como lidar com a imagem, será que essa imagem permanece subjugada à língua oral e escrita? Seria a imagem um “texto visual” ou uma ilustração do texto escrito?
Assim sendo, retomo à discussão inicialmente proposta acerca da natureza dialógica da linguagem, na teoria de Bakhtin. Acredito, como Souza (1998: 49-50), ser legítimo valer-se dela mesmo quando referida a LIBRAS. Como diz a autora:
No caso dos surdos, é o olho, e não o ouvido, que tem a pretensão de ver a palavra; são as mãos, e não as cordas vocais que articulam. No fluxo da comunicação por signos sinalizados mescla-se com sons, movimentos articulatórios, gestos, etc., evolui com eles e é deles indissociada. Se isso ocorre é porque essa pluralidade e entrelaçamento de modos comunicativos são imanentes da linguagem. (Grifos no original)
.
Nessa direção, interpretam-se as questões “das dificuldades dos sujeitos surdos” como intimamente relacionadas à concepção de linguagem que norteia o ensino formal. Que ética é essa? Independentemente da língua (LIBRAS, Português ou outra qualquer), se esse processo estiver centrado em técnicas e exercícios de memorização de regras gramaticais e/ou de itens lexicais, conservadoras da palavra em sinal, seu resultado será sem efeito (SOUZA, 1998).
Bakhtin vê “tudo em constante comunicação – a comunicação como fundamento de toda a cultura e, mais ainda, da própria vida” (CLARK e HOLQUIST, 1998: 12). Transformada em situação comunicacional, a vida dialógica das enunciações é a unidade fundamental não mais do estudo da língua (sistema), mas da comunicação (processo) como um todo, que se dá no e pelo social, manifestando-se com a linguagem, através dos sistemas de signos – aqui considerando o sistema dos signos sinalizados.
Nessa linha de raciocínio, pode-se incluir a análise de situações de comunicação entre sujeitos surdos e ouvintes bilíngües, necessárias no ensino formal, utilizando-se essas categorias construídas por Bakhtin.
Referências
BAKHTIN, Mikhail & VOLOSHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1990 (orignal de 1929).
CLARK, Katherina e HOLQUIST, Michel. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
GEGE. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
GERALDI, J. W. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In: FREITAS, T.M. et al. (Orgs.) Ciências humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Baktin.. São Paulo: Cortez, 2003.
JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamim. Campinas, SP: Papirus, 2005.
MACHADO, P.C. A política de integração/inclusão e a aprendizagem dos surdos: um olhar do egresso surdo sobre a escola regular. Florianópolis, Ed. da UFSC, 2008.
SOUZA, R. M. de. Que palavra te falta? Lingüística, educação e surdez. São Paulo: Martins Fontes,1998.
[1] Busca o novo; o que está aberto ao devir; o que está incompleto. Por ser incompleto, completa-se no outro.
[2] O autor submete essas correntes a uma crítica epistemológica, demonstrando que o objeto lingüístico de cada uma delas, ao reduzir a linguagem ou a um sistema abstrato de formas (objetivismo abstrato) ou à enunciação monológica isolada (subjetivismo idealista), constitui, por si só, um obstáculo à apreensão da natureza da linguagem como código ideológico (JOBIM E SOUZA, 2005).
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