terça-feira, 21 de setembro de 2010

O eu e o outro – Um encontro com o nós

Mirian Silva Santos da Costa



O homem é um ser social e, como tal, sente a necessidade de se relacionar, de interagir com o outro, de se dizer e dizer ao outro o que sente, o que pensa. Sente a necessidade de expressar sua expectativa diante dos detalhes da vida de modo geral. Também, sente a necessidade de ouvir o outro nessa mesma dimensão.
Até mesmo a narrativa bíblica da criação afirma:
Não é bom que o homem esteja só. (Gên. 2.18)
Para realizar essa interação, utiliza a linguagem nas suas várias manifestações, a qual vai tecendo os sujeitos, entrelaçando-os de modo que não se consegue separar sujeitos de linguagem. Daí, a linguagem se tornar elemento fundamental para essa interação. Ela se torna o espaço comum do encontro do eu com o outro, resultando no encontro com o nós.
Para Bakhtin (2003), todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Por isso, pode-se considerá-la como essencial para a própria existência humana. Alguém já parou para imaginar a vida sem a linguagem? Até mesmo na narrativa bíblica da criação, por exemplo, percebe-se a linguagem como gênese da existência. Foi necessário se dizer algo para que tudo começasse a existir. O narrador não encontrou outro meio de falar desse começo sem relacioná-lo à linguagem.  Em “Gênesis”, primeiro livro da Bíblia, o narrador repete este enunciado várias vezes em seu discurso: “E disse Deus...” Assim, o dizer, ou seja, a linguagem se tornou indispensável para a própria vida. Mas, em que momento isso acontece?
A ciência já provou que a criança, ainda no ventre materno, começa o seu processo de interação que resultará na sua constituição enquanto ser humano. Inicia esse processo na relação com a mãe, primeiramente, partindo daí para outras experiências, outras interações com outros sujeitos após seu nascimento. Por isso, cada choro, cada expressão fisionômica, cada gesto são linguagens com as quais começa a se comunicar com o outro. Outro esse que se torna parte do seu eu em busca do nós através da interação linguístico-discursiva.
Assim, o sujeito vai se inserindo e sendo inserido num contexto linguístico de interação, criando e recriando discursos que se relacionam, se entrelaçam num processo dialógico, resultando, assim, numa interdiscursividade.
Essa linguagem que se confunde com a própria vida se materializa no discurso, o qual é composto de enunciados que trazem em si um caráter polifônico e dialógico.
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo: ele os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subtende-se como conhecido, de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2003  p. 297)
Sendo assim, cada enunciado construído pelo eu é uma resposta ao outro. No pensamento bakhtiniano, a palavra procede de alguém e se dirige a alguém. É produto da interação entre os sujeitos.
Esse caráter dialógico e polifônico do discurso está relacionado à multiplicidade de vozes explícitas ou implícitas. Para Bakhtin, todo e qualquer enunciado tem natureza polifônica, pois o que é dito hoje tem relação com vozes do passado e do futuro e vice-versa.
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte  se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subseqüente resposta em voz real alta. (BAKHTIN, 2003, p.271)
             Dentro desse processo de interação linguístico-discursiva, o homem vai caminhando em busca do outro, abrindo espaço para a alteridade como fator fundamental a fim de encontrar o nós. Daí, a necessidade de se perceber a importância do outro para a constituição do sujeito. Afinal, o eu solitário perde o seu significado nesse contexto, considerando que o eu se constitui na relação com o outro. O meu falar, o meu olhar, o meu agir etc. dependem da minha interação com esse outro. Isso é o que acontece no espaço da interação linguístico-discursiva, o espaço da estética.
           No entanto, como fazer valer tudo isso no espaço concreto da ética que deve ser construída e valorizada na relação entre sujeitos que dividem um mesmo espaço neste universo, que sonham, que se angustiam, que trocam experiências? Como manter uma relação saudável, tão próxima  do outro na sociedade hodierna, onde se percebe que as relações estão se coisificando  e os sujeitos estão se tornando objetos?
         Esses são questionamentos que causam inquietações e que precisam ser discutidos no espaço acadêmico também.
A interação humana é a mãe da história, não há como colocá-la a parte de toda ou qualquer discussão científica, que busque seu propositivo lugar na melhoria do bem-estar dos seres humanos em comunhão com o globo. Chegamos, então, a um tempo de necessárias ressurreições teóricas, como de alguns direcionamentos marxicistas, os quais dizem que: “ para chegar aos homens em carne e osso, parte-se dos homens, da sua atividade real”, para que não saiamos por um viés científico fechado em seu academicismo tautológico. Em outras palavras, o olho necessita ser humanizado pela humanidade do objeto, é preciso haver uma inversão da pergunta. O academicismo colocou o objeto no foco, distanciando-se das relações sociais e humanas, porém o objeto sempre nos lembrará que somos sujeitos frente a ele. O que humaniza o olho não é simplesmente a humanidade do objeto, é a leitura humana e subjetiva que fazemos do material interposto, a cada momento de interação. O que coloca humanidade no objeto é nossa fecunda capacidade narcísea, de vermo-nos sempre em relação com o material percebido, também seria isto, que potencializa suas aplicações imensuráveis à vida humana. (MIOTELLO, 2006 p. 8 e 9)
         Há muito tempo, o filósofo Thomas Hobes, refletindo a respeito da relação entre os homens, chegou a conclusão de que o homem é lobo do próprio homem. Analisando as relações entre os sujeitos na sociedade hodierna, pergunta-se: Será que essa afirmação se concretiza entre os homens? É algo a se refletir.
            Diante dessa realidade, quando se percebe a necessidade do encontro harmonioso do eu com o outro em busca do nós, construindo relacionamentos interativos e saudáveis, criando diálogos entre a estética e a ética, as reflexões bakhtinianas podem contribuir de forma significativa para essa discussão.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos (SP): Pedro & João Editores, 2010
MIOTELLO, Valdemir (org.). Veredas bakhtinianas: de objetos a sujeitos. São Carlos (SP): Pedro & João Editores, 2006

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