Maria Teresa de Assunção Freitas[1]
“A Estética Contemporânea sob o Signo das Imagens” é um dos temas dessa terceira edição do Rodas de Conversas Bakhtinianas. Encontro nesse tema um importante elo com minhas atuais preocupações de pesquisadora da área da Educação. No Grupo de Pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC) coordeno uma pesquisa em desenvolvimento[2] envolvendo a formação de professores que tem o cinema como um de seus sub-projetos. Neste sub-projeto buscamos compreender os modos pelos quais tem sido apropriadas e estudadas as relações entre o cinema e a educação no curso de Pedagogia e Licenciaturas da UFJF, construindo com seus alunos e professores uma experiência formativa com imagens fílmicas no ambiente educativo, visando compreender como se dá a fruição dessas peças fílmicas no processo de aprendizagem.( Freitas,2009)
De que forma as imagens fílmicas circulam pelos conteúdos disciplinares e de que forma são apropriadas como elementos de ligação entre professores e alunos e entre o conhecimento e a vida? Como o cinema enquanto instância estética e simbólica, que se constitui como outra forma de comunicação e expressão, em que as diferenças se amenizam aproximando o erudito e o popular, o tradicional do novo, pode também aproximar o professor do aluno? De que forma a cultura cinematográfica pode servir de meio para novas experiências envolvendo diferentes áreas do conhecimento em atividades escolares? Mesmo não sendo nenhuma novidade, quais as dificuldades da inserção do cinema nas atividades educativas? Como professores e alunos aderem ou resistem ao cinema na sala de aula? Quais as dificuldades de infra-estrutura e de preparo acadêmico para o bom desempenho pedagógico da relação cinema-educação? Estas são questões que emergem e surgem como pistas investigativas que se abrem diante da reconhecida hegemonia da imagem na cultura e na compreensão da realidade, em razão da proximidade que as imagens estabelecem com o público espectador e de como elas satisfazem a necessidade humana de se expressar, de se ver e de interagir.
Somos movidos nesse processo investigativo pela compreensão de que a tarefa da escola e dos processos educativos é o de desenvolver novas formas de ensinar e aprender em razão das exigências postas pela contemporaneidade.
Nosso tempo, como afirma Costa (2005), corre sob o signo de uma verdadeira revolução no ecossistema social com a proliferação dos meios de informação e comunicação e com a profunda reordenação imagética de nosso cotidiano. Nas sociedades atuais as imagens exercem papel de grandes mediadoras entre os indivíduos e a cultura mais ampla, modificando as interações coletivas e re-significando os sujeitos.
A diversidade de dispositivos midiáticos nos coloca diante da necessidade de construção de uma perspectiva ecológica para pensar na relação entre mídia e educação (Fantin,2006), numa concepção integrada de fazer educação com todos os meios e tecnologias disponíveis – computador, internet, fotografia, cinema, TV, vídeo, livro, CD - integrando cada inovação tecnológica na outra
Vivenciamos hoje uma revolução tecnológica que introduz não só uma quantidade enorme de novas máquinas mas principalmente um novo modo de relação entre os processos simbólicos que constituem o cultural. De acordo com Martín-Barbero (2006)
o lugar da cultura na sociedade muda quando a mediação tecnológica da comunicação deixa de ser meramente instrumental para espessar-se, condensar-se e converter-se em estrutural: a tecnologia remete, hoje, não a alguns aparelhos, mas, sim, a novos modos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas ( p.54).
Na rede informacional que nos envolve, misturam-se vários saberes e formas muito diversas de aprender, enquanto nosso sistema educativo ainda se encontra todo organizado em torno da escola e do livro. O que estamos vivendo hoje, segundo Martín-Barbero (2006), é uma transformação nos modos de circulação do saber que, disperso e fragmentado, circula fora dos lugares sagrados que antes o detinham e das figuras sociais que o geriam. Portanto, a escola está deixando de ser o único lugar da legitimação do saber o que se constitui em um enorme desafio para o sistema educativo. Diante desse desafio, muitas vezes os docentes adotam uma posição defensiva e às vezes até negativa no que se refere às mídias e às tecnologias digitais, como se pudessem deter seu impacto e afirmar o lugar da escola e o seu como de detentores do saber.
Compreendemos, pois que nosso interesse investigativo se encontra numa área de tensão entre uma cultura escolar tradicionalmente centrada no paradigma letrado, e outra, globalizada, multimidiática, imagética, sensorial, aberta à difusão e acessibilidade às tecnologias de informação e comunicação e seus desdobramentos éticos e cognitivos. É preciso que, perante essa nova ordem das coisas, a escola e seus profissionais não se afastem, mas busquem compreender o que se passa e se disponham a interagir com as novas possibilidades. É o que nos aponta Bakhtin ao refletir sobre a necessidade de diálogo entre duas culturas.
A cultura do outro só se revela com plenitude e profundidade [...] aos olhos de outra cultura. Um sentido só revela as suas profundidades encontrando-se e contactando com outro, com o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de diálogo que supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas. Colocamos para a cultura do outro novas questões que ela mesma não se colocava; nela procuramos respostas a essas questões, e a cultura do outro nos responde, revelando-nos seus novos aspectos, novas profundidades de sentido. Sem levantar nossas questões não podemos compreender nada do outro de modo criativo.[...] Neste encontro dialógico de duas culturas elas não se confundem; cada uma mantém a sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem mutuamente (2003,p.366).
É esse o espírito de nossa pesquisa: desejamos que se instaure nos processos formativos dos professores investigados um espaço de reflexão sobre essas questões aqui discutidas que possa levar à construção de uma posição responsável e conseqüente diante das novas formas de conhecer e aprender que marcam a contemporaneidade.
Desejamos observar como são as “experiências” vivenciadas por docentes e discentes de um curso de formação de professores com a fruição de peças fílmicas num ambiente educativo. No limiar entre o uso “escolarizado”, que restringe o cinema a um recurso didático, e o uso do cinema como objeto da experiência estética e expressão da sensibilidade, do conhecimento e das múltiplas linguagens humanas é que se encontra o material para criação de outras possíveis práticas escolares permitindo à escola reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte (Medeiros,2009). Olhar as imagens de dentro, de modo a ir além da posição daquele que coisifica a imagem, apropria-se delas e as interpreta. (Fischer, 2008) Nossa proposta é pensar as imagens por meio de um olhar que se deixe tocar pela experiência do autor, do diretor, da personagem e do espectador.
No dizer de Medeiros (2009), um trabalho sobre e com as imagens, no âmbito da educação, deve mergulhar numa multiplicidade de experiências, por parte de quem investiga, de quem põe o olhar nas imagens cinematográficas e/ou midiáticas ou de quem perscruta as singularidades negadas ou as singularidades meteoricamente ofertadas ao contemplador-espectador. Esse mergulho não é fácil e requer instrumentos variados, teóricos e metodológicos, de sensibilidade e de atenção aos sintomas e aos perigos de nosso tempo.
Diante do exposto até aqui, que sentidos significativos, de estética e ética formulados por Bakhtin, seriam válidos como propostas para pensarmos o cinema em sua relação com a educação na contemporaneidade?
O que nos diz Bakhtin em relação ao vivenciamento estético e ético para trabalharmos o cinema e suas representações da realidade, a cultura visual e a educação como conhecimento de si e do outro e como compreensão da realidade com sua potência criativa e transformadora?
Ética e estética em Bakhtin são elementos inseparáveis em sua arquitetônica. Em um texto pequeno mas muito denso publicado em 1919: Arte e responsabilidade, está posto em síntese o programa de toda sua construção teórica. Nele Bakhtin afirma que “ a ciência, a arte e a vida só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora a sua própria unidade”(2003,p.XXXIII). Com esta afirmação compreendemos que estes três campos da cultura humana podem estar integrados entre si numa relação dialética ou ´permanecerem justapostos em uma relação mecânica, o que lamentavelmente acontece com maior frequência. Nesse caso a arte ou a ciência se mostram auto-suficientes mantendo-se desligadas da vida. Assim, a arte não reponde pela vida e a vida não se projeta na arte. Bakhtin indagando como superar essa desintegração entre os elementos responde que isso só será possível pela unidade da responsabilidade. “Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativo”(2003,p.XXXIII-IV)Continuando, Bakhtin diz: “o poeta deve compreender que sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade de suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte” (2003,p.XXXIV).
Essas reflexões de Bakhtin constituem-se como um projeto ético para nossa vida na qual devemos responder ao que ela nos apresenta. “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade (2003, p. XXXIV)
.Devemos aqui compreender que responsabilidade para Bakhtin, refere-se à nossa atitude responsiva, à nossa compreensão ativa geradora de uma resposta, de uma ação em relação ao que a vida nos interpela. Assim, a unicidade dos acontecimentos desse mundo é garantida pelo reconhecimento de minha participação única no mundo, pelo meu não–álibi nele. Essa minha participação produz um dever concreto, o dever de realizar a inteira unicidade do ser e isso significa que minha participação transforma cada participação minha (sentimento, desejo, humor, pensamento), em minha própria ação ativamente responsável (Bakhtin, 2010).
Para pensar as imagens do cinema com professores e alunos, a partir das experiências vividas e das formas de olhar as imagens, é que buscamos apoio no pensamento de Mikhail Bakhtin. Percebemos em sua obra uma preocupação com as ciências humanas em uma perspectiva ética e estética. Compreende a especificidade das ciências humanas que tem como objeto o homem ser expressivo e falante e consequentemente o texto como seu ponto de partida. “Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado” (Bakhtin,2003,p.319).
Entendendo texto no sentido amplo, que lhe confere Bakhtin, como qualquer conjunto coerente de signos encontrado na ciência e nas artes, seja na música, nas artes plásticas, pensamos a linguagem imagética do cinema como um texto a ser estudado e compreendido. Encontramos apoio para essa idéia em Stam (1992) e também em Pasolini (1987) que considera o cinema como uma língua escrita da realidade. Portanto, podemos compreender o cinema como uma enunciação diante da qual nos colocamos, em uma perspectiva dialógica, numa situação de resposta. Como espectadores assumimos uma atitude ativa envolvendo-nos com o que contemplamos integrando o plano teórico-conceitual e o afetivo.
Concluindo essas reflexões indago: como a arquitetônica bakhiniana do humano, que integra ética e estética numa unidade indissolúvel contribuerm para um novo olhar diante do cinema, mais ativo e participativo? Em que sentido podemos compreender o cinema na integração de arte, ciência e vida? Até que ponto ele possibilita uma forma outra de conhecimento, uma arte que reflete e refrata a vida, uma vida que se forma e se transforma sob os efeitos de sua linguagem imagética?
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.XXXIII-IV.
______. O problema do texto na lingüística, na filologia e em outras ciências humanas. In Bakhtin, M. Estética da criação verbal. S. Paulo: Martins Fontes, 2003, p.307-336.
______ Para uma filosofia do ato responsável.. São.Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
COSTA, C. Educação, Imagem e Mídias. São Paulo: Cortez; 2005.
FANTIN, M. Mídia-Educação: conceitos, experiências, diálogos Brasil-Itália. Florianópolis: Cidade Futura; 2006.
FISCHER, R.M. B. Imagens da Mídia, Educação e experiência. In GIRARDELLO, G. Liga, Roda, Clica: Estudos em Mídia, Cultura e Infância. Campinas; Papirus; 2008.
FREITAS, M.T. A Computador-internet e cinema como instrumentos culturais de aprendizagem na formação de professores (2010-2013)Projeto de pesquisa aprovado pelo CNPq e FAPEMIG. 2009.
MARTÍN-BARBERO, J. Tecnicidades, identidades, alteridades:mudanças e opacidades da comunicação no novo século In: MORAES, D. Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X,2006, p.51-79
MEDEIROS, S. A. L. Cinema na escola com Walter Benjamin. Trabalho apresentado no GT 16-Comunicação na 32.a. Reunião Anual da ANPED em Caxambu em outubro de 2009.
PASOLINI, P. P. As últimas palavras do herege. Entrevistas com Jean Duflot. S. Paulo: Brasiliense,1983.
STAM, R. Bakhtin: da Teoria Literária à Cultura de Massa. São Paulo: Ática, 1992.
[1] Professora do Programa de Pós –Graduação em Educação da UFJF, Pesquisadora PQ do CNPq e da FAPEMIG-PM, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC) da UFJF
[2] Trata-se da pesquisa: Computador-internet e cinema como instrumentos culturais de aprendizagem na formação de professores (2010-2013) financiada pelo CNPq e FAPEMIG.
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