Ana Beatriz Ferreira Dias[1]
“Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos” (BAKHTIN)
Neste pequeno texto, propomos uma discussão ética acerca de relações sociais prejudicadas por uma ofensa, tomando como base elementos do pensamento do Círculo de Bakhtin. Mais especificamente, interessa-nos discutir à luz dos estudos bakhtinianos algumas dimensões das atividades propostas pela justiça reconstrutiva[2], chamada por alguns de justiça restaurativa, quanto aos encontros entre as partes envolvidas em uma ofensa. Adquirindo visibilidade, em muitas partes do mundo, desde a década de 90, a justiça restaurativa pode ser compreendida como uma visão de mundo relativamente recente que surge como uma resposta contrária às relações sociais altamente punitivas e violentas particulares de nosso paradigma atual (denominado por alguns estudiosos de retributivo). Uma das expressões dessa visão de justiça, certamente aquela pela qual vem se tornando conhecida, é a forma como ela concebe as relações sociais prejudicadas por uma ofensa.
Ainda que as experiências contemporâneas de justiça construtiva sejam bastante heterogêneas entre si, podemos afirmar que elas promovem, de forma um tanto contextualizada e específica, encontro entre vítima, ofensor e suas respectivas comunidades de apoio como uma alternativa para “reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto”, buscando “transformar dilaceramentos em ocasiões para construir um novo futuro”, como afirma Garapon (2001, p. 251).
Para iniciarmos nossas reflexões, lembremos uma das propriedades da palavra dadas por Bakhtin/Voloshinov (1990), em Marxismo e Filosofia da Linguagem, sua ubiquidade social. Nessa perspectiva, a palavra incorpora-se em todos os eventos da vida humana, desde aqueles encontros mais corriqueiros do dia a dia até aqueles de caráter político, de modo que acaba a remeter aos mais diversos meios sociais e, consequentemente, às diferentes posições ideológicas. Assim, “cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória” (Ibid., p. 66).
Levar isso em consideração implica reconhecermos aqui que, em encontros efetivos entre vítimas, ofensores e suas respectivas comunidades de apoio, tal como vêm sendo propostos por instâncias ligadas à justiça restaurativa, promove-se um espaço de tensão marcado potencialmente por diferentes pontos de vista e crenças, onde a palavra é a base da interação entre esses sujeitos. Esse confronto, esse embate entre diferentes pontos de vista principalmente entre vítimas e ofensores parece ser um meio para a construção de sentidos sobre o acontecimento que gerou um dano, como forma de reparar os danos emocionais, materiais e morais decorrentes da ofensa, como sugerem estudiosos da área de justiça restaurativa, como Zehr (2008).
As relações muitas vezes tensas e conflituosas resultantes do encontro entre diferentes posições e, portanto de diferentes enunciados, se dá em qualquer esfera da comunicação discursiva, não unicamente em atividades ligadas à justiça. Isso porque os enunciados se relacionam mutuamente e se reconhecem uns aos outros – esta é sua natureza:
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade de comunicação discursiva [...]. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2003, p. 297).
E aqui nos aproximamos de dois elementos-chave dos estudos bakhtinianos: a alteridade e o diálogo, os quais são, segundo Geraldi (2007, p. 42), os dois “pilares” que mantêm o pensamento de Bakhtin. Tentemos articular, a partir de nossa compreensão, essas duas noções no quadro do encontro de justiça restaurativa, focando a relação entre ofensor e vítima, para, assim, desenvolvermos a ideia de excedente de visão.
A relação com o outro - seja esse outro a vítima para o ofensor, seja esse outro o ofensor para vítima - parece ser uma condição que contribui para a construção da identidade desse eu. A alteridade aparece como condição de identidade. Nesse sentido, a ideia de “excedente da visão estética” dada por Bakhtin, e atualizada neste trabalho, torna-se bastante útil para pensarmos essas questões. Pensando na relação entre um eu e um tu, neste caso, materializada na relação entre vítima e ofensor e vice-versa em um procedimento restaurativo, há sempre algo que o eu, de seu lugar único, verá e saberá do tu, o qual, de sua posição, não enxergará.
Vítima e ofensor possuem um em relação ao outro uma espécie de excedente de visão que pode construir uma relação mais humana, o que não equivale a dizer que essa relação harmônica. É justamente o excedente de visão que um indivíduo tem sobre o outro que condiciona um certo ativismo, no sentido de abrir um horizonte de possibilidades de agir do eu em relação a esse outro, afinal do lugar singular que eu ocupo em relação ao outro, há coisas que eu apenas eu, e ninguém mais, consegue ver sobre ele:
O excedente de minha visão em relação ao outro indivíduo condiciona certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o outro justamente naqueles momentos em que ele não pode completar-se (BAKHTIN, 2006, p. 23)
Para garantir esse ativismo em relação ao outro, vítima e ofensor precisam estar em conexão, colocando-se, primeiramente, um no lugar do outro. Deve haver uma “compenetração” entre as posições de vítima e ofensor. Os sofrimentos da vítima devem ser vivenciados pelo ofensor e vice-versa. A vítima precisa ver axiologicamente o mundo que o ofensor vê e vice-versa. Depois disso, cada um deve voltar ao seu lugar e completar o outro com o excedente de visão que tem dele.
No âmbito da estética, Bakhtin (2003) define esse processo nos seguintes termos:
Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois, de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN, 2003, p. 23).
Talvez a ideia de excedente de visão possa contribuir para construção de procedimentos de justiça que colocam no centro a relação social e não um indivíduo infrator de leis, como busca a justiça restaurativa. Nessas práticas de justiça restaurativa, certamente a diversidade é constantemente presente e ela pode ser um elemento fundamental para criar sentidos sobre os acontecimentos e instituir relações sociais menos violentas e punitivas e também menos monológicas. Contudo, para isso, é preciso uma diferença não-indiferente entre os sujeitos. E isso se aproxima de uma “atenção amorosamente interessada”, que trata Bakhtin (2010), em Para uma filosofia do ato responsável. Apenas essa atenção pode “desenvolver uma força muita intensa para abraçar e manter a diversidade concreta do existir”, enquanto que uma “reação que empobrece e desintegra o objeto: passa longe do objeto em toda a sua diversidade, o ignora e o supera” (Ibid., p. 128). São, então, esses alguns desafios da realidade contemporâneos que podemos tentar enfrentar com lentes bakhtinianas e construtivas.
Referências
BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GARAPON, A. A justiça reconstrutiva. In: GARAPON et al. Punir em Democracia. Tradução Jorge Pinheiro. Instituto Piaget: Lisboa, 2001.
GERALDI, J. W. A diferença identidade. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção estética e estética. In: FREITAS, M. T. et al (Orgs.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-56.
ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.
[1] Aluna de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista FAPESP e integrante do GEGe. ana.bdias@hotmail.com
[2] Neste trabalho, tomamos como sinônimos as terminologias justiça reconstrutiva e justiça restaurativa. Ainda que “restaurar” possa sugerir a ideia de volta ao idêntico, é importante termos em vista que esse não é objetivo dessa nova justiça, como sustenta Garapon (2001). Uma vez que, no Brasil, a forma mais conhecida é justiça restaurativa, mantemos também essa forma para melhor identificarmos esse movimento social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário