Marina Haber de Figueiredo
Os textos aqui utilizados são especificamente pertencentes a uma escrita estética (literária), porque, como afirma Bakhtin
O livro, isto é, o ato de fala de fala impresso, constitui igualmente um elemento de comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogos e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado. (...) discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação ininterrupta ( concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.). (BAKHTIN, 2006, p.127-128).
Em outras palavras, o discurso literário, abordado como discurso estético, representa o mundo de maneira elaborada e também é uma forma de expressão social. Por isso, passível e importante de ser estudado, pois carregado de valores e ideologias.
Os estudos bakhtinianos sobre estética recaem sobre a concepção arquitetônica, entendida como a relação entre a arte e a vida/realidade e sobre a responsabilidade (responsabilidade por responsividade ). Portanto, para se falar do estético é necessário falar do ético, porque o ético está no estético, assim como, de uma certa, forma o estético está no ético.
A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um elemento estranho afetando outro, mas de uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, s/data, p.2).
A preocupação com a questão ética/estética permeia vários textos e estudos realizados por Bakhtin e por outros participantes do Círculo de Bakhtin, como pode ser visto em Para uma Filosofia do Ato, Arte e Responsabilidade, O Autor e o Herói na Atividade Estética, O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma e do Conteúdo( in Questões de Literatura e Estética), Problemas da Poética de Dostoiévsk, Cultura Popular na Idade Média, Discurso na Vida e Discurso na Arte (também atribuído a Volochinov) e em O Método Formal nos Estudos Literários: Uma Introdução crítica da Poética Sociológica.
De acordo com Sobral (2007), o agir do sujeito se refere aos planos ético, estético e teórico. O ato ético é entendido como o processo do agir no mundo, que se liga diretamente à realidade, e, o estético é uma reflexão elaborada, portanto, com acabamento, mas, não necessariamente acabada, acerca da ação ética realizada pelo sujeito. Esses dois elementos ligam-se às concepções de responsabilidade e responsividade, estudadas por Bakhtin. Nesse diálogo entre ético e estético com a relação responsabilidade e responsividade é que se justificam as reflexões aqui presentes sobre a construção do contradiscurso das memórias da infância de Manoel de Barros.
No campo da estética bakhtiniana, a arquitetônica é a construção ou estruturação do discurso, que une e integra o conteúdo, o material e a forma. O conteúdo, para Faraco (2009, p.103), “é o modo como são ordenados pelo autor–criador os constituintes éticos e cognitivos recortados (isolados), transpostos para o plano estético e consumados numa nova unidade de sentidos e valores”. O material é o elemento utilizado pelo autor-criador para construir o conteúdo (ideológico) do objeto estético dentro de uma determinada forma, com que o autor-criador trabalha o material; a forma pode ser entendida como os momentos de uma atividade que engloba o conteúdo a partir do exterior, determinados pela atividade do autor orientada sobre o conteúdo. Vale ressaltar que a forma penetra o conteúdo e lhe dá uma forma esteticamente acabada (BAKHTIN, 1998).
De acordo com Bakhtin (op.cit.), a arquitetônica da visão artística organiza tanto o espaço e o tempo como o sentido. Afinal, a obra (produto final, acabado/inacabado, mas com acabamento) estética resulta da articulação desses vários elementos e não pode vir-a-existir sem eles. Cada texto aqui estudado pode ser entendido como um todo arquitetônico que articula e interrelaciona o conteúdo, a forma e o material em uma relação espaço-temporal que possui um acabamento estético. A ideia do inacabado se refere à circulação destes textos frente a seus leitores, pois a cada leitura surgem novas formas de compreensão e valoração destes objetos estéticos. Uma obra artística rompe as barreiras da pequena temporalidade singular da vida humana e alça voos para o que Bakhtin denomina de a grande temporalidade ou o grande tempo da cultura.
Um todo arquitetônico é imbuído da unidade advinda do sentido. “Todo” tem relação com acabamento, relacionado ao excedente de visão como elemento constitutivo basal tanto da interação quanto da atividade autoral. Afinal, a exotopia (ou excedente de visão) é a base do trabalho estético. No caso dos textos barrosianos estudados, o sujeito adulto é o pseudo-autor de sua infância que, de fora e de longe da experiência, descreve, narra o vivido, dando-lhe um acabamento veridictório estético por meio de sua memória, mas completamente individual e subjetivamente concreto. Como pode ser visto em: “Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso” (BARROS, 2003, IX); “Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a criança; dois, os passarinhos; três os andarilhos. A criança me deu a semente da palavra( BARROS, 2008, I)
A totalidade arquitetônica dos textos estudados é verificada por meio da expressividade dos sujeitos estéticos de Barros, pelo modo como seus olhares enxergam o que é e o que não é importante, bem como suas vozes (adultas, expressas com a simplicidade da criança, sujeito não infantil, mas que vivencia a infância – vista como período de nascimento e contemplação – descoberta – do mundo, o desabrochar da vida – inclusive um desabrochar erótico) retratam a beleza encontrada nos restos, no desprezado pelo mundo tecnológico contemporâneo, como pode ser observado nos seguintes dizeres desses sujeitos
uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building (BARROS, 2006, IX), ou ainda: Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo o Albert Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber” (BARROS, 2008, X).
As formas arquitetônicas (visão artística e processo de acabamento) determinam os procedimentos estéticos externos (as formas de composição): a ordem, a disposição, o acabamento. Conforme afirmam Sobral (2007) e Paula (2008), forma arquitetônica é a concepção da obra como objeto estético. Forma composicional, por sua vez, é o modo específico de estruturação da obra externa a partir de sua concepção arquitetônica.
A arquitetônica de uma obra está intimamente relacionada com o estilo e recortes da vida cotidiana feitos pelo autor-criador. A construção de um discurso com valorações ideológicas contrárias e/ou alternativas às que perpassam os dizeres difundidos pela cultura hegemônica são percebidos tanto no conteúdo textual como na sua textualidade (aspectos linguísticos textuais- recursos de coesão, coerência, léxico, sintaxe, entre outros).
Barros imprime seu estilo e uma nova visão de mundo ao transgredir não só os valores veiculados pela seriedade obtusa do veiculada pelo discurso hegemônico, ao privilegiar as vozes que pertencem à infância, aos andarilhos, e aos idosos, mas também pela transgressão lexical e sintática encontradas nos seus textos, pois ao invés de avó, escreve vó e, ao se referir aos dejetos dos pássaros utiliza o verbo cacacar que não consta nos dicionários da língua portuguesa.
A ideia de transgressão se faz presente também pela maneira como os livros que compõem a trilogia barrosiana, “Memórias Inventadas: Infância (2003), Memórias Inventadas: A Segunda Infância (2006), Memórias Inventadas: A Terceira Infância (2008), apresentam-se. Os três livros não são impressos de maneira tradicional; ao contrário, possuem uma textualidade diferente, ao se apresentarem como um livro com folhas soltas, porém com uma ordem de numeração que pode ou não ser seguida pelo leitor, envoltas por um laço de fita de cetim, em caixinhas de papelão duro.
A arquitetônica é um projeto de criação de totalidades de sentido com vistas à realização de um dado projeto enunciativo, que pode seguir assim os mais diversos caminhos, naturalmente nos termos das cristalizações socialmente concretas e conjunturalmente possíveis, mas sempre a partir de uma dada valoração de cunho social e histórico: o universo do sentido é o universo do valor, da avaliação, da atividade autoral, necessariamente dialógico, e portanto de fronteiras instáveis ( SOBRAL, 2006,p. 118)
O momento arquitetônico do objeto estético pode ser comparado à formação do gênero, enquanto que o momento composicional da obra material pode ser pensado como a textualização do gênero concebido, no caso analisado, a literatura e, especificamente, o discurso poético prosaico e prosaico poético de Barros.
A partir dos estudos bakhtinianos, os gêneros e os discursos foram compreendidos como esferas de uso da linguagem verbal ou da comunicação fundada na palavra e mudaram os rumos tomados pelos estudos sobre gêneros que até então nunca recaíam para além das formações poéticas. Para Amorin, “Bakhtin afirma a necessidade de um exame circunstanciado não apenas na retórica, mas, sobretudo, das práticas prosaicas que diferentes usos da linguagem fazem do discurso, oferecendo-o como manifestação da pluralidade” (2007, p. 152). E é a partir daí que o pensamento do Círculo se distancia da teoria clássica e cria um lugar para as manifestações da heteroglossia, das diversas codificações não restrita à palavra.
Enquanto os gêneros poéticos eram entendidos como pertencentes a uma fixa rigidez hierárquica e com a tendência ao purismo, os gêneros da prosa possuem uma contaminação pluriestilística em que se encontram a paródia, a estilização, a linguagem carnavalizada. De uma forma geral, estes são os princípios fundamentais que norteiam e organizam os gêneros prosaicos.
Os textos barrosianos estudados para o desenvolvimento deste estudo, muitas vezes são analisados/compreendidos somente no que se refere à sua forma composicional e como pertencente a um gênero fixo, o poético; assim os textos barrosianos são denominados de poesia e seu autor-criador recebe a alcunha de poeta. Porém, esta denominação talvez incorra em um risco de se reduzir o todo arquitetônico da obra barrosiana a uma mera análise estilística ou conteudística. Os textos barrosianos, possuem uma textualidade prosaica e uma narratividade poética, há um jogo entre as várias textualidades presentes em um gênero, e entre gêneros.
Assim, por meio da arquitetônica de Barros, os sujeitos dos textos aqui mencionados constroem discursos contrários aos que tecem o discurso hegemônico sob a égide de uma economia neoliberal, pois, ao beberem da água de discurso imposto e excludente, os sujeitos dos textos de Barros, refratam os valores presentes na ideologia oficial e os contrapõem com os valores apreendidos na vida cotidiana, na ideologia do cotidiano( Bakhtin), por estes sujeitos na sua infância. Dessa forma os sujeitos estéticos de Barros, propõem uma forma alternativa de se agir valorativamente no mundo.
Bibliografia:
AMORIM, M. Para uma Filosofia do ato: “válido e inserido no contexto” in BRAIT, B. (org). Baktin: Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto, 2009, p.17-43.
___. Cronotopo e exotopia. In BRAIT,B.(org).Bakhtin: Outros Conceitos- Chave. São Paulo: Contexto, 2006,p. 95- 114.
___. Memórias Inventadas: A Infância. São Paulo: Planeta, 2003.
___. Memórias Inventadas: A Segunda Infância. São Paulo: Planeta, 2006
___.Memórias Inventadas: A Terceira Infância. São Paulo: Planeta, 2008.
___. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
BAKHTIN/VOLOSHINOV. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução acadêmica para o português de Carlos Alberto Faraco. (Mimeo, s/ data).
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
___. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira, São Paulo/ Brasília: Hucitec/UnB, 1987.
___.Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
___. Questões de literatura e estética. São Paulo: UNESP, 1998.
___. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FARACO, C.A. O Problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, B.(org). Bakhtin: Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto, 2009,p. 95-111.
PAULA, L. de. “O dizer estético e (anti)ético da mídia: a veridictoriedade à luz da perspectiva bakhtiniana”. In: OSÓRIO, E. M. R. (Org.). Bakhtin na prática: leituras de mundo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.
SOBRAL, A. “Ético e Estético”. In: BRAIT, B(org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2007, pp.101-121.
___.Elementos sobre a formação dos gêneros do discurso: a fase “parasitária” de uma vertente do gênero de autoajuda.Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica, PUC-SP, 2006.
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