Maria Tereza Scotton
Nas Ilhas Salomão, quando os nativos querem parte da floresta para a agricultura, eles não cortam as árvores. Eles simplesmente se juntam ao redor delas, e gritam xingamentos e dizem coisas ruins. Em alguns dias a árvore seca e morre. Ela morre sozinha.
O texto apresenta uma leitura do filme indiano TAARE ZAMEEN PAR: EVERY CHILD, divulgado no Brasil com o título COMO ESTRELAS NA TERRA: TODA CRIANÇA É ESPECIAL, lançado em 2007 sob a direção de Aamir Khan.
Busca estabelecer um diálogo entre a obra e a abordagem dos aspectos ético e estético considerados por Bakhtin na atividade criadora. Se nos dias atuais, a proliferação de imagens pode ser considerada fator de empobrecimento da linguagem, por outro lado pode se reconhecer produções que fazem uso da imagem de maneira expressiva primorosa, oportunizando experiências estéticas significativas. O filme de Aamir Khan é uma dessas produções, situada no campo da arte.
O cinema é uma arte. E, em que pese seu caráter industrial e comercial, sua instauração estética pode ser constatada através de grandes obras-primas produzidas na curta vida do cinema. De simples reprodução do real, tornou-se linguagem. O cinema é linguagem porque não opera com os próprios objetos mas sim com a imagem deles. As imagens dos objetos, dos seres e das coisas são arranjadas a partir de uma intenção narrativa que os transformam em enunciados (MARTIN, 2003).
Esteticamente, a imagem fílmica é capaz de atuar intensamente sobre os indivíduos, graças ao tratamento dado pela câmera ao real bruto. Por conseguinte, no documento fílmico a imagem irá reproduzir o real de forma a afetar nossos sentimentos, o que está estreitamente relacionado à concepção de mundo, de vida, de sociedade do diretor, isto é, seu posicionamento ético, considera Martin (2003), ao analisar a linguagem cinematográfica.
Também Bakhtin (1993) acredita que a obra de arte não pode ser compreendida somente pelo material que a compõe, mas em sua relação com o mundo do conhecimento e da assunção de uma posição axiológica da realidade. O conhecido se articula à consciência de uma tomada de posição para que se constitua a obra de arte. Portanto, a arte se vincula à vida, como também o ato ético, constituindo uma totalidade.
O filme COMO ESTRELAS NA TERRA: TODA CRIANÇA É ESPECIAL toma como inspiração a realidade concreta, isto é, a história de Ishaan Awasthi, um menino de 9 anos, que vive com seus pais e o irmão mais velho, e que não consegue aprender a ler e escrever. Sofrendo cobranças da família e da escola diante de seus fracassos, é matriculado em um colégio interno por decisão do pai, que acredita que um ambiente fortemente disciplinador “consertará” o filho que, para ele, é rebelde e displicente. Incompreendido pelos pais e pelas escolas pelas quais passa, e sentindo a solidão do colégio interno, Ishaan vai definhando, isolando-se de tudo. E então chega ao colégio um professor para substituir o professor de Artes. Sensibilizado pela situação de alheamento de Ishaan, o professor vai em busca da história de vida do menino. Descobre seu grande talento para o desenho e a pintura e compreende que Ishaan é dislexo, daí sua dificuldade para ler e escrever. A mediação desse professor é decisiva para o reencontro do menino consigo mesmo.
A obra se posiciona contrária ao projeto vigente de sociedade que impõe padrões a serem seguidos por todos, negligenciando as singularidades, as diferenças, depreciando-as e considerando-as impedimento para o sucesso na vida e, pior ainda, ignorando que dislexos como Einstein, Leonardo da Vinci, Pablo Picasso, Thomas Edison, Walt Disney e Agatha Cristie maravilharam o mundo. Dessa forma, relativiza o prestígio que a escola confere à escrita, apresentando a riqueza e a importância de outras atividades humanas, de outras modalidades de linguagem.
Mostra a necessidade do espaço escolar considerar a dimensão criadora e estética da vida humana que dialoga com os diversos campos do conhecimento. Apresenta assim uma concepção de educação escolar que leva em conta a atividade estética como compromisso ético. Negligenciar o ato criador e a experiência estética na vida dos alunos é afastar-se de um proceder ético.
Os fatos e as interpretações feitas acima estão apoiadas principalmente nas imagens mostradas no filme, mais especificamente nos clipes que aparecem no desenrolar da história. A bela trilha sonora conjuga-se a imagens que sugerem ou confirmam o sentido das letras das músicas, que não servem para adorno, mas formam uma cadeia de enunciados. O cotidiano da família aparece através de imagens rápidas, que sugerem a submissão de seus membros aos horários e atividades rotineiras, repetitivas e mecânicas: da mãe, que levanta cedo, prepara o café da manhã, acorda os filhos para a ida à escola, auxilia o marido que se veste, se alimenta, olha o relógio, ajeita a gravata, pega a pasta que leva para o trabalho; o filho mais velho estudando, comendo, enfim, imagens de pessoas que se submetem a um estilo de vida massacrante e limitada, tal como diz na letra da música que, junto com as imagens, compõe o clipe:
Amarre os sapatos, aperte o cinto
Prepare-se para a batalha
Carregue seu fardo
Com pastas em mão e decisão firme
Dominaremos o mundo
Manteremo-nos firmes
Assim funciona o mundo, continue
Seu destino te espera
Siga em frente
Eles dormem com um olho aberto
Ficar pra trás não é uma opção
Trabalhe o máximo que puder
Do jeito que lhe dizem
Eles vivem de omeletes, vitaminas e tônicos
Um regime restrito de trabalho e descanso
Esforçando-se, dando duro, abra caminho
Assim funciona o mundo, continue
Seu destino te espera, siga em frente
Em seguida o clipe mostra imagens de Ishaan acordando... sem correrias, espreguiçando, sorrindo. A melodia agitada cede seu lugar a um ritmo delicado, sugerindo que a vida pode ser diferente porque certas pessoas pensam diferente:
Mas aqui chegamos a outro assunto...
o de acordar com as músicas de um sonho.
quando o tempo pára,
a fantasia se liberta.
Eles sempre se perguntam:
Por que o lema do mundo é “continue assim”?
Por que essa luta maluca para chegar a um destino?
Eles não são escravos do tempo...
São livres...
Têm reuniões com as borboletas...
E debates com as árvores.
Passam seu tempo brincando com o vento
E contando histórias às gotas de chuva...
Enquanto pintam um novo mundo na tela do céu..
Um outro clipe apresenta as horas vividas pelo menino que “mata” aula para fugir da cobrança pela qual passaria na aula de Matemática. Andando só pelas ruas movimentadas da cidade, o olhar do menino se volta para observar o mundo fora da escola. A princípio, aparecem imagens mostrando os perigos que a criança corre – no trânsito, por exemplo. Mas, em seguida, imagens que nos passam despercebidas no cotidiano são realçadas na tela, ganhando enorme beleza: o operário escalando os andares de uma construção; o “milagre” de uma escavadeira remover a terra e poupar trabalho ao homem,; a fabricação de sorvetes pelo dono da barraquinha, que os molda com as próprias mãos, e a calda colorida que utiliza para tornar o sorvete mais saboroso e atraente aos olhos; um pai que coloca o filho sobre os ombros e sai andando. Imagens que encantam o personagem e que pode sensibilizar o interlocutor porque são contundentes ao mostrar que há um mundo em que a vida acontece à revelia da imposição das instituições ou apesar delas. Imagens que mostram o mundo fora da escola e que, com ele, muito se aprende também.
Mas, como a árvore das Ilhas Salomão, de tanto ouvir palavras depreciativas, Ishaan vai secando, murchando, se encolhendo. A câmera dá o tratamento devido ao processo de sofrimento pelo qual o menino vai passando, realçando o excelente desempenho do pequeno ator, como se vê na imagem que se segue:
O resgate do menino, que se dá pela intervenção do professor substituto de Artes, não só recupera o pequeno heroi, como também o interlocutor, que compartilha com o professor a constatação de que o menino dislexo é demasiadamente talentoso. A imagem contribui para a sensibilização que se opera naqueles que vêem o filme:
No final do filme, as palavras agressivas que se combinavam à imagem melancólica do menino em cenários escuros, tão bem representada pelo pequeno ator, são substituídas por outras encorajadoras que se associam a imagens mais claras e coloridas, oportunizando uma experiência estética rara para aqueles que têm acesso ao filme. A experiência de enxergar estrelas que brilham na Terra, a experiência de um novo olhar para aqueles que desconstroem imagens padronizadas.
O filme, em sua totalidade, pode ser considerado um bom exemplo das considerações de Faraco (2005, p. 39) sobre a criação artística:
No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (isolados) de sua eventicidade, são organizados de um modo novo, subordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem autocontida e acabada. E é o autor-criador – materializado como uma certa posição axiológica frente a uma certa realidade vivida e valorada – que realiza essa transposição de um plano de valores para outro plano de valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentando essa nova unidade.
Aamir Khan realiza com sucesso a transposição de um plano de valores para outro no filme que produziu, considerado uma obra-prima.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1996.
FARACO, C. A. Autor e autoria. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
KHAN, A.; RAO, B. S.; RAO, K. Como estrelas na Terra: toda criança é especial. [Filme – DVD]. Produção de Aamir Khan, B. Shrinivas Rao, Kiran Rao, direção de Aamir Khan.Índia, Aamir Khan Productions, 2007. 1 DVD, 165 min color. Son.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.
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