segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Da ordem do reconhecimento: Sobre a permanência da escuta como inscrição Escritos iniciais



        Por Gyannini Jácomo Cândido do Prado – UFG

            Falar é reconstituir a memória e não o é por excelência, é por um processo memorialístico, é um fenômeno, um desejo, da vontade de lembrar daquilo que forma o sujeito como interlocutor de si em relação ao paradigma de escrita e pensamento. Memória, portanto, é um lugar que guarda as coisas estabelecidas através do discurso sendo ele oriundo da fala, do texto (gramatical) ou da imagem, pois estes consistindo em lugares de aproximação com o real e, portanto, capazes de representar, o mais próximo, aquilo que conhecemos, entretanto, ainda, é necessário acrescentar mais um tipo neste ambiente, o fenômeno da escuta.
            Escutar, nesta responsividade, é ter condições mais concretas de objetivar e significar os sentidos e o mundo e desta maneira é mais um lugar da inscrição do significado e não menos importante, do significante, pois é necessário dar forma ao pensamento para novamente ter novo significado e cada vez que se sintetiza o axioma mais abstrato ele se torna. Chamar de mesa a coisa que chamamos de mesa é torná-la ideia de mesa e depois fazê-la mesa novamente e assim sucessivamente até o ponto de se tornar mais e mais complexos os modos de se chegar tanto ao objeto quanto a ideia do objeto e assim se sucedendo tornar a ideia o objeto e o objeto ideia do próprio objeto.
            A criança não sabe ler nem escrever, mas sua condição de escuta lhe permite simbolizar os discursos apresentados a ela e quando a posteriori entrar em contato com outros níveis de representação como, por exemplo, a escrita, poderá, arbitrariamente, traduzir estas inscrições do inconsciente em texto gramatical e estabelecer lexicalmente suas representações (Lacan, 1955-1956). Isso não está dicotomicamente inverso com a produção, ao contrário, essa capacidade simbólica de aprendizagem através dos jogos iniciais (infância) nos coloca na condição de sujeitos coletivos, mesmo que nos pareça o ponto de vista algo autoral[1], mas autoria poder – se – ia considerar o nome final no texto, pois todos os recursos utilizados são resultados de cadeias produtivas. E nos parece, depois do Romantismo e a necessidade de afirmação de sujeito, que para a existência humana só se pode realizar a partir do eu privatizado, do eu interno ao ponto do apagamento, ou tentativa disto, do outro. O referente[2] parece estar esvaziado de sentido e por isso mesmo não poder se realizar enquanto mecanismo de afirmação do sujeito – tornando-o, realizando-o, existindo-o, obrigando ao sujeito à sua condição de não provedor, ou de não realizador do lugar em que vive. E é importante considerar o referente para o sujeito, para este saber e reconhecer que não há inaugurações na ordem simbólica (Jamenson, 2004), mas processos em contradição e dialógicos de afirmação e negação do mesmo objeto e assim se postular mais isso ou mais aquilo. Querer ser é a condição inicial e fundamental do processo, pois querer é marca da consciência que por seu papel é registro e não elaboração da ordem da expressão, mas isto está em algum lugar da escuta provendo o sujeito de desejo e forças da ordem do significado que o impele ao tempo em que se realiza qualquer tipo de produção. Então, para afirmar – Cada tempo tem sua própria maneira de estabelecer as convenções necessárias ao aparecimento e desaparecimento, ou no limite de emergência, de gêneros do discurso que devem representar à época apreciada.
            É neste ambiente, do qual a relação dialética de tese, antítese e síntese, aprimorada por Karl Marx numa vertente materialista e não romântica e por assim dizer, pois o romantismo é privatização do imaginário e sem poder libertar – se o sujeito fica sem instrumentais de compreensão de mundo solidário, e ao contrário da regra coletiva, sem aperfeiçoar – se nas pretensões sociais. Ele se aprisiona mais e mais e se põe num tipo de discurso desprovido de sensibilidade coletiva por que para esta nova maneira de significar o mundo. O indivíduo em seu significante posto superior à sua composição social deriva as condições de apropriação, seria de dizer, de coletivização do produto exercido mediante ao ferramental apresentado (fala, escrita, escuta), que se estabelecem para originar o que nos comove no ato de dar sentido às experienciações humanas, portanto, exercitar de maneira objetiva (abstrata) o ATO da FALA.






Falar de Memorial

            Quando Machado de Assis escreve, Memórias Póstumas de Brás Cubas estabelece uma relação memorial com ele mesmo na condição biografêmica, ou seja, coloca na obra parte da sua própria vida, e que para Bakthin é mais que biografia, pois não está na ordem do suposto, ao contrário está na ordem do real, do material, e é exatamente deste material que o sujeito se torna simbólico, é quando este sujeito se põe no lugar do outro, alteriza – se. Mas não pára por aí. Ele, o sujeito Machado de Assis, na condição de escrita se empresta de um sistema-histórico da vida e coloca na condição sistêmica-histórica da língua, obrigando – nos a pensar sobre a coisa dita naquele discurso. Todos sabem que a narrativa de Assis começa com sua personagem-defunta contando a história de como era em vida. Esse deslocamento temporal e espacial (dêiticos) estabelece uma ideia onírica (onde se pode deslocar no tempo e espaço de todas as maneiras imagináveis) de possibilidades reais. Um defunto não poderia, a rigor, contar histórias, pois é da ordem da natureza morto não falar nem pensar menos ainda promover narrativas, mas Brás Cubas é sujeito inventor de sua narrativa e sabe – se que personagem encarna vida real, dialoga, sofre e ama.
            Machado rememora toda a vida de sua personagem, e este personagem toma forma de gente viva que vai fazer dele amado e querido, detestado e acarinhado, refletimos com ele e nos tornamos mais humanos ao reconhecer nele a nossa própria realização de inscrição[3].
            Em outro livro do mesmo Machado ele o faz também desta maneira, não na história da personagem-morta, mas contando uma história de um senhor que via o mundo passar, já que havia vivido toda a sua longa história, em Memorial de Aires. Haroldo Maranhão também constrói seu livro com esse gênero, o memorial, mas este constitui outro tipo de narrativa. Em Memorial do Fim, Haroldo constitui um memorial ficcional entrecortado com a realidade e onde depois não se sabe o que é histórico ou ficção. Mas isto não é o mais intrigante, o mais danado é que ele faz um memorial de uma outra pessoa – o que em tese deveria se chamar biografia, mas não é. Ele narra os últimos dias de vida de Machado de Assis. Então temos três dimensões do mesmo gênero. O primeiro, a história de um falecido narrando; o segundo, alguém que viu sua vida passar e agora rememora; e um terceiro que constitui a sua narrativa a partir do outro, a sua história é a história de Machado de Assis.
           
Memorial como instrumento de ressignificação e entendimento de mundo

            Para Engels a dialética é a:
"grande idéia fundamental segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas, na aparência estáveis, do mesmo modo que os seus reflexos intelectuais no nosso cérebro, as ideias, passam por uma mudança ininterrupta de devir e decadência, em que finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos momentâneos, um desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje". (Dialética da Natureza, Engels, Friederich)
            Ou de outra maneira, as coisas são analisadas na medida do movimento dela mesma e das coisas em volta, pois não há possibilidade de estudar um fenômeno isoladamente e desta maneira as manifestações naturais não são da ordem da assertiva, mas do caótico.
            Para Bakthin esta realização acontece da seguinte maneira:
Mas como se define o locutor? Com efeito, se a palavra não lhe pertence totalmente, uma vez que ela se situa numa espécie de zona fronteiriça, cabe-lhe contudo uma boa metade. Em um determinado momento, o locutor é incontestalvemente o único dono da palavra que é então sua propriedade inalienável. É o instante do ato fisiológico de materialização da palavra. Mas a categoria propriedade não é aplicável a esse ato, na medida em que é puramente fisiológico.”(Bakhtin, 2004).
            São nestes dois contextos teóricos que se apresenta a estabilização da memória oferecida na forma de Memorial na disciplina de Estágio 1 na Universidade Federal de Goiás, sob orientação do Professor Doutor Alexandre Costa, e que para dar conta deste gênero foi preciso antes de qualquer coisa, a disposição de olhar para trás com a vontade de enxergar nele o propósito do presente e poder olhar o devir como lugar de chegada. Toda condição extra temporal nos obriga, necessariamente, a investigação e a uma fala, e neste caso, um olhar de adulto sobre a coisa do menino que se inscrevia nas palavras (como medida estabilizadora e única) para ao mesmo tempo se colocar simbolicamente no mesmo mundo rodeado de imagens, cores, sorrisos, dores, metáforas, metonímias, pai, mãe, escola. Portanto mundo.
            Se por um lado o memorial nos serve como guarda da memória por outro e além de gênero textual é também recurso midiático, pois a reestruturação da retentiva é da ordem da imagem; parece-nos algo ser real aquilo que na medida em que se objetiva, o que em possibilidade, se apresenta como real.
            Quando minha avó se apressou em dizer: que devemos respeitar os mais velhos, as pessoas e o mato, pois é no mato que se guarda as coisas da vida – ensina também a condição primeira do que é formado o mundo. O mundo nos revela a coisa de Poder e de poder dizer qualquer coisa que queremos, mesmo na medida de poder querer dizer outra coisa. Não é possível imaginar o mundo sem saber o que em primeiro lugar vai servir para imaginar as coisas que cercam a ideia de mundo que poderemos ter. Não é fácil, penso, a condição de se inscrever ou escrever o lugar que nascemos. E nascer é colocar no mundo a sua fala[4] que fala de qualquer coisa que já havia sido escutada em qualquer momento. Não foi constituído o personagem, no memorial, a partir do sujeito individualizado, ele é resultado, é claro, é também produtor de sentido, mas é também resultado de sua própria criação e assim o sendo se põe resultado, coletivizado, da sua produção que se chama ponto de vista (Bakhtin, 2004). Então querer dizer de sujeito que se põe na medida, na estrutura, na constituição do sujeito que elabora é também o colocar na condição de elaborado, ou seja, individuo e coletivo são faces do mesmo lado da moeda e quando virar a moeda é colocar – se novamente novo e velho e fazendo outra moeda[5]. Muda moeda e muda as faces. É contra-palavra, é escuta, é resposta imediata ou fora do tempo em que se pede a réplica. Quem em algum momento já não falou sozinho respondendo algo que aconteceu em outro tempo, diferente, da pergunta?
            Lembrar da assertiva da avó é saber que aquilo deveria ser representado gráfica e simbolicamente e se assim o é de fato, e fato é a estabilidade da linguagem, também querer em tempos imemoriais, na condição do esquecimento, se fazer pela primeira vez escrita, mas escrita não é coisa de qualquer um, é preciso estabilizar – se e isso ocorre muitas vezes na apreensão dos dados que fazem a escrita ser compreensível. Escrita é lugar da escola, de pertencimento da autorização, da Lei (Lacan, 1955-1956) que permite a toda gente se colocar em lugar de igualdade, entretanto essa autorização é permitida desde que o sujeito se coloque em concordância com a ideologia vigente. A escrita escolar, portanto serve a reinvenção da ideologia que se agrega às próprias imagens requeridas, postuladas pelo sujeito coletivo. Este sujeito é o lugar da contradição, da dialética, que consegue se estabelecer por que continua a conversar consigo e com o outro, mas que essa fala dele para ele é ainda fala coletiva e a resposta dada é também resultado da fala coletiva que teve, portanto essa fala interna é também falares promotores de alguma produção. Essas polifonias são os sons de vários lugares, de várias gentes, de várias percepções construídas socialmente e internalizadas que só se afirmam ou desistem dependendo da resposta produzida ou assimilada.
            O memorial produzido por este, são resultados em escritas das maneiras de significar, capacitando – o em responsividade, mediando o sujeito que outrora achou – se único e percebe – se agora produto, menos reificado e mais emancipado na sua condição de elaborar o discurso que elimina o outro e o refaz imediatamente para desfazê-lo novamente sucessivamente colocando – se em igualdade outra vez.
            Quando Machado e Haroldo se servem deste gênero para refazer a história de cada um de seus personagens é a maneira de se refazer também. Quando o Memorial Escolar foi produzido este também serviu para compreender a produção como só possível por se fazer pela escrita que é produto do trabalho coletivo, arbitrário, autoritário ou não, mas que constituiu a capacidade do autor em dar sentido a ordem da infância se transportando para o adulto.

Bibliografia
Bakhtin, M. (2004). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec.
Jamenson, F. (2004). Pós-Modernismo, A lógica cultural do capitaismo tardio (2ª ed., Vol. 1). (F. Paixão, Ed., & M. E. Cevasco, Trad.) São Paulo: Ática.
Lacan, J. (1955-1956). O Seminário - livro 3. Paris - França: Jorge Zahar Editor.
Peloggia, A. U. (s.d.). SOBRE A DIALÉTICA E AS PARTICULARIDADES. Acesso em 18, 19 de setembro de 2010, disponível em http://www.unibero.edu.br: http://www.unibero.edu.br/download/revistaeletronica/Mar04_Artigos/Alex%20Pellogia.pdf



[1] E o é quando da produção fim do objeto textual.
[2] Conversa realizada com a Profª Tânia Rezende acerca das questões da simbolização dos jovens em relação com os mecanismos da sexualidade.
[3] Realização de inscrição – termo cunhado pelo autor para designar momento de catarse, ou seja, de reconhecimento de seu estruturante, ou fundante.
[4] Fala é igual a lugar de expressão do sujeito podendo ser desde as primeiras maneiras de dizer algo.
[5] Aqui há um “exagero” no pensamento de Bakhtin, mas não é esquizofrênico, é na verdade um aumentativo da fala Bakhtiniana em relação ao conceito de duas faces em Marxismo e Filosofia da Linguagem, pg.113, Ed. Hucitec.

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