Nívea Rohling da Silva
A leitura de Bakhtin, e de seu comentadores mais profícuos, me permitiu retornar aos temas literários a partir de um outro lugar, assumindo uma outra postura. Não mais a de quem “ensina” e sabe determinado conteúdo literário (tom professoral), de alguém que vai aos textos buscando suas marcas, suas características para dele fazer um objeto de crítica ou de ensino, mas sim de um lugar de problematizador, que percebe os textos literários como dizeres sócio e historicamente construídos. Assim, surgiram algumas perguntas no ato-evento de minhas leituras. É sobre isso que traço aqui alguns eixos gerais de uma reflexão que ainda está em constituição.
Podemos olhar os objetos literários a partir de duas perspectivas distintas, uma num plano linear e historicista (formalista) e outra numa perspectiva dialógica - no plano do discurso. Na primeira acepção, que se dá no plano da progressão temporal, designada pela teoria literária como evolução literária - (Cf. os Formalistas Russos); busca-se observar os traços estéticos de uma época (escolas, movimentos, correntes literárias) de determinado conjunto de textos. A segunda, em uma via crítica, olha-se os textos, e seu diálogo com outros textos, em relação às atividades humanas que constituem tais discursos, tomando-se o texto literário como um discurso (enunciado) vivo na cadeia da comunicação discursiva.
Optar pela segunda via significa perscrutar a historicidade dos discursos que se dá na relação entre o mundo vivido e o mundo dado. Nesse caminho, ensinou-nos primeiro (a despeito dos que dizem o contrário) as análises empreendidas por Bakhtin sobre o Romance. Em uma época em que o discurso romanesco era considerado menor em relação ao discurso poético. Bakhtin, em Questões de Literatura e Estética (1988), elaborou sua teoria do romance alicerçada em uma busca profunda na historicidade desse gênero. Ao traçar os limites e traços constitutivos da prosa romanesca, Bakhtin investigou desde a sátira Minipéia (gênero cômico-sério da Antiguidade Clássica) e seu movimento no espaço-tempo da estética e percebeu que o romance não era, em sua origem, considerado um gênero literário de primeira ordem. O romance vem de “baixo”, da “plebe” e só depois de muito tempo é que entra no “palácio”, num movimento de legitimidade que parte do mundo da vida. Isso acontece também com a poesia dos primeiros trovadores.
Nesse contexto relacional - mundo ético e mundo estético - lanço uma discussão sobre o ponto de encontro entre esses mundos. A pergunta que me provocou tal questionamento é de motivação puramente reflexiva, ou seja, do ponto de vista do pragmatismo pós-moderno, este texto não serve a nada e a ninguém. Mas no plano teórico, busco resposta a essa questão de forma responsável, na acepção bakhtiniana do termo - responsável e respondente. Foi possível pensar essa relação a partir de uma leitura primorosa do texto português Cartas Portuguesas (ALCOFORADO, 1997). Então, fui provocada a problematizar o diálogo entre o ético e o estético nas Cartas da Freira Mariana Alcoforado.
A questão que se coloca é: de que maneira uma estética brota não de um conjunto de traços estéticos do texto conjugado no plano da estilística formalista, mas das ações e das relações do humano no plano da vida, tendo como artefato linguístico, discursivo, literário as cartas de Maria Alcoforado, escritas no período seiscentista, mais conhecidas como Lettres portugaises (1669). Nesse sentido, a base problematizadora é em que medida esse discurso literário se relaciona com os elementos-práticas da vida e em que base se dá tal relação? Pergunta difícil a qual proponho nessas poucas linhas a fazer um resgate do que vem do plano da vida e que depois é entendido-aceito como estético.
Bakhtin esboça, em Para uma filosofia do ato (PFA) (1993, 2010 [1920-1924]), sua filosofia moral sob a égide da relação dicotômica, constituída na história filosófica, que separa o mundo estético do mundo estético (das ações do vivido); a separação entre conteúdo das ações e o próprio evento, ou seja, procura-se uma síntese entre sensibilidade (ato vivido, ação individual responsável) e a razão (sistemas discursivos descrevendo, dando significado ao ato) (HOLQUIST, 1993, p. 8). O mundo ético corresponde ao mundo das ações, onde nascemos, vivemos ou morremos nossas vidas, criamos, contemplamos, o mundo em que os atos de nossas atividades são objetificados, onde esses atos realmente são realizados uma e única vez (atos irrepetíveis, únicos) (BAKHTIN, 1993, p. 20). O mundo estético, a seu turno, corresponde ao da abstração do conteúdo, dos domínios objetivos: ciência, arte, história. Nesse sentido, Bakhtin combate a cisão entre dois mundos, o mundo da cultura (estético) e o mundo da vida (ético). Esses mundos foram filosoficamente confrontados, tornaram-se impenetráveis, separados pela não comunicação de ato-atividade e conteúdo do vivido (BAKHTIN, 1993). Em Bakhtin, essa não-interpenetração entre cultura e vida deveria ser superada, uma vez que esses mundos (ético e da cultura) estão unidos pelo evento único de nossas ações, de nossa experiência de vida (PONZIO, 2008).
Sob essa perspectiva, na tentativa de olhar os textos literários concebendo-os não como um artefato estético imutável, mas como um discurso vivo na caldeia da comunicação discursiva, temos como intuito, neste texto, discutir o lugar das Cartas Portuguesas no que diz respeito às pontes de intersecção entre o mundo ético e estético. Nesse debate, provocam-me questões como: Qual o ponto de convergência e implicação entre mundo ético e mundo estético nas cartas? O que o tornou um objeto estético? De que forma as ações do vivido se mostram no discurso literário de tal enunciado ou, ainda, como o estético se constitui a partir do vivido?
Do ponto de vista das ações do mundo da vida, as cartas de Mariana Alcoforado são produtos de sua paixão pelo oficial da cavalaria francesa, o Capitão Noël Bouton, futuro conde de Saint-Léger, mais tarde marquês de Chamilly. Trata-se de uma freira, nascida em Beja, foi criada em um convento franciscano desde os onze anos de idade. Com a chegada de um regimento francês que vinha a Portugal para ajudá-los no conflito contra a Espanha, Mariana conheceu o capitão Noël Bouton, por quem nutriu uma paixão avassaladoura que a fez introduzi-lo secretamente na sua cela durante várias noites seguidas. Vindo a tona a notícia dessa relação rapidamente se difundiu causando escândalo e o oficial foi mandado de volta à França. Mariana passou a lhe escrever, sem resposta, cartas extraordinariamente belas e apaixonadas. Sua correspondência, destinada ao capitão, ficaram conhecidas pelo nome de Lettres portugaises (1669), um conjunto de cinco cartas, foram publicadas em Paris[i].
O quanto dessa história é verdadeira? Não sabemos. Sobre as questões de autoria, pairam dúvidas. Há outra atribuição de autoria das cartas, alegando que tudo não passou de uma manobra, comum à época, para fins editoriais e que a autoria seria de que Guilleragues, a quem a edição de 1669 atribui a tradução das Cartas, este seria então o “verdadeiro” autor. Atualmente a autoria é atribuída à Mariana Alcoforado, segundo algumas pesquisas posteriores, observou-se indícios de que de fato houve de fato em Beja, Portugal, no convento de Nossa Senhora da Conceição, uma freira de nome Mariana Alcoforado, nascida em 22 de abril de 1640 e com registro de morte em 22 de julho de 1723. Essa freira teria vivido uma intensa paixão por um oficial francês que servia em terras portuguesas. Após a partida de seu amado, Mariana teria escrito cartas arrebatadas de amor, paixão e desilusão.
Sobre a autoria, penso que é melhor aceitar a de Alcoforado, por ser infinitamente mais bela e porque corrobora nessa reflexão sobre o ponto de encontro entre o mundo ético e mundo estético. Ao conceber a autoria como o ato de se responsabilizar eticamente por um dizer, é possível afirmar que Mariana Alcoforado escreve suas cartas, dirigindo-se a um sujeito situado-empírico, partindo de questões inerentes ao seu amor, paixão e desejo – sobre suas memórias de afeto – sentimentos que afloraram do vivido e não pensado em termos estéticos. Não se trata de uma autoria da ordem do “escritor” que integra um conjunto de textos-discursos pensado desde seu início no estatuto do estético.
Do ponto de vista estético, que elementos fazem com as cartas sejam tomadas como artefatos literários? Poderíamos logo lançar os louros à linguagem, já que a ela é dado, há muito, o poder de dizer o que é literário ou não. Nas cartas há um acentuado tom confessional própria de uma prática diarista, ao mesmo tempo em que fala ao outro - o seu interlocutor direto - a autora fala a si em um movimento de relembrar e “sentir” novamente o que foi compartilhado, enfim retoma, ou melhor, traz à tona, as cenas de um amor vivido e os sentimentos que a rondam no espaço-tempo da sua escrita em que aflora a decepção amorosa. Esse movimento se desvela em alguns trechos das cartas: “Ai, como sou digna de piedade por não partilhar contigo as minhas mágoas, e ser só minha a desventura! Esta idéia mata-me, e morro de terror ao pensar que nunca te houvesses entregado completamente aos nossos prazeres. Sim, reconheço agora a falsidade do teu arrebatamento. Enganaste-me sempre que falaste do encantamento que sentias quando eslavas a sós comigo.”
Mas para além da linguagem lírica e de emotividade, é preciso ressaltar que é o olhar de uma época sobre dado discurso que o conforma como tal. É o horizonte apreciativo de um grupo social que é autorizado a proclamar o que é ou não literário, o que tem valor estético ou não. No caso das Cartas Portuguesas, o conteúdo temático traz em seu bojo sentimentos que dialogam com a busca de exarcebação amorosa muito presente no lirismo do povo português, um lirismo que circunda a literatura portuguesa e alcança um nível elevado no pensar romântico do século XVII. Digo aqui pensar romântico, não como uma “escola” fechada em características estanques, mas como uma grande profusão de arte, de pensares filosóficos que movimentaram um discurso de constituição de um “eu” criador.
Em resumo, o processo de pensar o quão intima é essa relação entre o ético e o estético nessas lindas cartas de amor, o que as diferem e as fizeram ter estatuto de texto literário ainda está em vias de construção. Esse trabalho demanda uma pesquisa meticulosa de cunho histórico e discursivo, que está ainda se fazendo. Penso que análises como essas podem alargar a discussão sobre ético e estético na mediada que nos fazem refletir sobre os limites e convergências entre o que vem do vivido e o que é do plano do estético e, sobretudo, o diálogo que se instaura nos pontos de intersecção desses planos.
REFERÊNCIAS
ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 1997.
BAKHTIN, Mikhail M. (1975). Questões de literatura e de estética - a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: UNESP; Hucitec, 1988.
_____. (1920-1924). Para uma filosofia do ato. Tradução inédita [para fins didáticos] de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza da edição americana Toward a Philosophy of the Act (Autin: University of Texas Press, 1993).
_____. (1920-1924). Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
HOLQUIST, M. Prefácio de Para uma filosofia do ato. Tradução inédita [para fins didáticos] de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza da edição americana Toward a Philosophy of the Act (Autin: University of Texas Press, 1993).
PONZIO, A. (1998). A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coordenação de tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
[i] As informações sobre a obra e a biografia da autora foram extraídas de http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/MariAlco.html.
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