terça-feira, 21 de setembro de 2010

O DISCURSO MIDIÁTICO EM CAPA DA REVISTA VEJA: UMA INCURSÃO PELA TEORIA BAKHTINIANA

Heloísa Helena Arneiro Lourenço Barbosa

O tema BAKHTIN E A ATIVIDADE ESTÉTICA – NOVOS CAMINHOS PARA A ÉTICA, que norteia o evento Rodas de Conversa Bakhtiniana 2010, apresenta-se como um instigante desafio, uma vez que abordar a questão da ética e da estética em Bakhtin “é evocar o que se pode considerar a base de tudo quanto ele – e seu Círculo – desenvolveu ao longo da vida.” (Sobral, 2006, p. 103).  
O teórico russo, ressignificando a concepção kantiana, apresenta a ética como conjunto de deveres, generalizáveis, mas não capazes de transformar o sujeito em objetos, frutos de leis abstratas. (SOBRAL, 2006). A estética é concebida a partir da ação exotópica do autor-criador, (o que engendra a obra). Para M. Bakhtin, o autor-criador é constituinte do objeto estético, o que sustenta a unidade do todo esteticamente consumado. Ele não apresenta os eventos da vida de forma passiva; organiza-os de forma recortada e selecionada de acordo com o viés valorativo do autor-pessoa. Assim, os eventos da vida são representados esteticamente pelo autor-criador, que é uma voz social refratada esteticamente.
A partir dessa perspectiva é que trago um recorte de meu trabalho que, ancorado nos pressupostos de Bakthin, analisa o discurso midiático presente em uma capa da revista Veja sobre o caso Isabella Nardoni. O texto seguinte traz apenas alguns aspectos da análise empreendida, os quais podem servir à discussão das questões da ética e da estética no discurso da mídia, uma vez que, ao se analisar discursivamente um texto jornalístico, sob a luz da teoria baktiniana, importa o olhar extraposto, aquele que considera o excedente de visão como parte da significação do signo. Afinal, a “extraposição é condição ética, que levou Bakhtin a olhar as manifestações criativas da linguagem, sistematizando-as em sua estética geral.” (Machado, 2005, p.131).

1. Introdução
O crescente poder dos meios de comunicação, enredado ao célere desenvolvimento tecnológico e ao ideal capitalista do lucro, faz com que a informação receba um tratamento radicalmente distinto em nossa sociedade. O papel de primazia atribuído à informação exige um rigor de análise que permita perceber seu conteúdo (objetos, fatos e acontecimentos) a partir de uma lógica por vezes subordinada aos interesses de mercado. Impulsionados pelo signo da velocidade e disputa pela preferência dos leitores, setores da mídia responsáveis pela veiculação da informação acabam por tomar alguns acontecimentos como espetáculo.
O que se vê é uma indistinção entre o “real” e o que é veiculado pelo jornalismo.  Parece que esse quid pro quo conceitual entre realidade e ficção tem sua origem em um discurso midiático consolidado pelo fortalecimento do capitalismo e da globalização. Assim, na divulgação de alguns acontecimentos, o que se pode ver é o discurso midiático colocado em funcionamento para fazer determinados produtos se tornarem vendáveis.
Partindo dessas observações, é que se procedeu à análise da capa da revista VejaFORAM ELES – sobre o caso Isabella Nardoni. Foram investigados mecanismos e estratégias linguístico-discursivos que possibilitaram a espetacularização do fato. O objetivo principal do estudo não é uma abordagem da espetacularização da informação em si, mas uma análise de como se dá discursivamente este fenômeno. Interessa saber em que mecanismos linguístico-discursivos se apoia a mídia para a produção de um discurso “verdadeiro” e “vendável”.

2. Conceitos Norteadores

2.1 Os gêneros discursivos
Contrária à análise mecanicista da linguagem, a abordagem de Bakhtin sobre os gêneros do discurso pode parecer um tanto contraditória, quando o autor busca definir gênero como organizações mais ou menos estáveis quanto à forma em que se apresentam. Poder-se-ia pensar que há aí a ideia de que os gêneros possuem formas determinadas e repetíveis. No entanto, para Bakhtin (2003) a concepção de gênero não existe fora do dialogismo. O que a teoria dos Gêneros Discursivos propõe e permite é uma organização dos discursos em seus aspectos temáticos, composicionais e estilísticos.
A organização dos enunciados em gêneros faz com que o discurso seja “moldado”, construído de acordo com determinada situação comunicativa, ou que um discurso seja entendido em dado evento comunicativo. Isso não equivale dizer que haja formas extremamente rígidas na composição de um gênero. Bakhtin (2003) apresenta o gênero sustentado por uma base de relatividade, ou seja, os gêneros são tipos de enunciados mais ou menos estáveis. A organização dos gêneros em seus aspectos temáticos, composicionais e estilísticos permite a constituição de sentido entre o sujeito e o discurso, ao mesmo tempo em que abriga o pensamento de que o gênero é um tipo de enunciado de dimensão comunicativa, interativa, avaliativa, que vai além do estritamente linguístico. Os gêneros discursivos dependem mais do contexto e propósito comunicativo e da cultura do que propriamente da palavra. Não se trata exclusivamente de uma forma linguística, mas principalmente de uma forma enunciativa.
Na perspectiva bakhtiniana, “os gêneros do discurso estão ligados a determinados campos de utilização da língua.” (BAKHTIN, 2003, p.262). É imensa a diversidade dos gêneros discursivos porque as possibilidades das atividades humanas são inesgotáveis. (BAKHTIN, 2003).
Assim, em suas formulações, Bakhtin apresenta a necessidade de se entender um gênero discursivo por sua relação com o grande tempo da cultura, uma vez que “a obra é um elo na cadeia da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p.279). Os gêneros discursivos não devem ser entendidos, então, sem sua imersão ao cronotopo. São correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. (BAKHTIN, 2003).

2.1.1 O gênero discursivo capa de revista
Embora os estudos de Bakhtin e seu Círculo tenham se ocupado exclusivamente dos enunciados orais ou escritos, sua teoria aborda o enunciado numa dimensão maior, pois “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira.” (BAKHTIN, 1929/2006, p.33). Fica evidente, então, sob essa ótica, a possibilidade de se estender o conceito de gênero discursivo para as novas produções – verbais ou não-verbais - que vão surgindo.
Partindo do pensamento de que “todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929/2006, p.38), pode-se afirmar que uma capa de revista composta por elementos verbo-visuais é um gênero do discurso.
Especificamente quanto ao projeto verbo-visual do gênero discursivo capa de revista, há um propósito comunicativo que é o de atrair seu leitor para comprar a revista. As capas participam, assim, de duas esferas de atividade humana, a jornalística e a publicitária (PUZZO, 2009). Nesse movimento, o leitor, presumido pelo enunciador, é colocado diante de um discurso com o qual ele pode ou não concordar. Dessa forma, o enunciatário é “convocado” a uma atitude responsiva.
Entendida como unidade comunicativa, assim como os outros gêneros discursivos, uma capa de revista é um tipo relativamente estável de enunciado, que se compõe pelos três elementos essenciais que caracterizam o gênero: conteúdo temático, estilo genérico e individual e forma composicional.

3. Corpus da pesquisa
A capa da revista Veja selecionada para análise é a que se refere à morte da menina Isabella Nardoni, ocorrida em 29/03/2008, episódio de grande repercussão nacional. A edição que serviu como objeto de análise é a de número 2057, publicada no dia 23/04/2008. A capa tem como chamada principal a frase FORAM ELES. O fato era muito recente, e, apesar de o pai e a madrasta estarem presos, a investigação policial ainda estava no início.

4. Análises Possíveis

A capa FORAM ELES: além das aparências
 Capa FORAM ELES – Veja, SP, Ed. Abril, 2057, 23/04/2008.

Essa primeira página traz os mesmos elementos que constroem composicionalmente todas as capas da revista Veja: o nome da revista; a logomarca da Editora Abril;  o número da edição; ano; site da revista; manchete principal; manchetes secundárias; imagem destacada , enfim há um formato genérico que faz com que ela seja reconhecida por seus leitores.
Como é padrão das capas de Veja, nesta capa, o nome da revista é grafado em tipos de letras bastão minúsculas, em fonte Franklin Heavy. A cor que preenche o nome Veja é o cinza, com um contorno branco, que dá destaque à palavra Veja. O maior destaque é o fundo de cor preta, que preenche quase todo o espaço, com uma incidência de um clarão sobre os rostos de Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni. Esse contraste é o grande diferencial visual da capa em relação a outras edições de Veja.
A assinatura da revista também é destacada por esse plano de fundo preto. No extremo direito da página, encontram-se as referências à empresa responsável por sua publicação, Editora Abril, com as indicações de edição, ano e número, além da data de veiculação e o preço unitário, na fonte arial em tamanho bem reduzido. Neste exemplar, o logotipo da empresa aparece no topo esquerdo da página.
A chamada principal FORAM ELES aparece no pé da página e tem as letras em caixa alta, escritas em tamanho grande, as quais são preenchidas pela cor branca, que acabam sendo destacadas pelo contraste com o plano de fundo preto. Acima da oração FORAM ELES, está o subtítulo (ou o início da chamada principal): PARA A POLÍCIA, NÃO HÁ MAIS DÚVIDAS SOBRE A MORTE DE ISABELLA. Este subtítulo é grafado em letras menores, preenchidas pela cor amarela.
Há um elemento verbal que merece a atenção do leitor: o uso da forma verbal “FORAM” para compor o título da manchete principal. O verbo ser aparece conjugado no modo indicativo, no tempo verbal pretérito perfeito, o que, segundo a gramática normativa[1], indica uma ação pontual, que realmente aconteceu, o que leva a produção de um sentido de verdade incontestável. Se o período fosse construído por um tempo verbal condicional que denotasse a dúvida, a incerteza, como é o futuro do pretérito do indicativo, (“Seriam eles”), certamente o tom de acusação estaria um tanto menos explicitado.
Na frase FORAM ELES, não há destaque para quem emite tal afirmação (o autor da afirmação: [Para] a polícia vem marcado num subtítulo com letras bem menores). É como se buscasse, com essa estratégia, um distanciamento da voz da polícia, uma vez que ela, quase que ocultada pela impressão em letras menores, permite que um outro assuma a voz de acusação: FORAM ELES. Há uma acusação dissimulada por parte do enunciador.
No título FORAM ELES, a entonação expressiva está presente nessa escolha frasal, pois ela é um recurso utilizado pelo autor para expressar a relação emotivo-valorativa com o objeto do discurso. A frase carregada desse “colorido emocional” se relaciona com o todo do enunciado, não tendo a mesma significação fora do enunciado concreto. Há um tom acusativo/ avaliativo. Com toda essa arquitetônica, Veja imputou ao pai e à madrasta uma condenação sumária.


4.1. As capas de revista e o contexto sócio-histórico

Como enunciado concreto, a capa de Veja está relacionada a um contexto histórico imediato que envolve leitores presumidos e aqueles cuja construção de sentidos o enunciador nem sempre consegue prever.
O contexto sócio-histórico que abriga a produção dessa capa é o da rapidez da informação, que é veiculada em abundância para todos, o que acirra ainda mais a competição entre os vários veículos de comunicação de massa. A mídia passa a ser orientada sob o signo da velocidade, não importando se o que será lido ou visto será entendido pelos leitores ou telespectadores. (ARBEX-JÚNIOR, 2005).
O sujeito-leitor de capas da revista Veja, independente de suas características específicas, é o homem de uma época em que se percebe, cada vez mais, a fugacidade do tempo presente. O paradoxo dessa época se instala quando o capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que instiga o indivíduo ao consumismo, torna esse mesmo sujeito inseguro por ter que encontrar os meios de atender aos apelos dessa ideologia do consumo. Há um enfraquecimento da estabilidade da identidade do sujeito contemporâneo. Uma das consequências dessa instabilidade é a perda, ou enfraquecimento, da capacidade de interlocução. (ARBEX-JUNIOR, 2005). E é nesse contexto que estão inseridos os leitores de Veja.

5. Considerações (in) acabadas
No percurso das análises, o que se pôde observar é que a capa de Veja, ao menos no episódio da morte da menina Isabella Nardoni, descortinou um tom valorativo, distanciado da objetividade que deveria marcar a capa de uma revista informativa. Essa posição axiológica do enunciador é sugerida por elementos que se enredam por meio de “fios ideológicos”, na provável tentativa de se deslocar o enunciatário de sua capacidade de resposta ativa. Uma proposta de leitura mais atenta tem o papel de desfazer essa trama.
Na capa analisada, evidenciam-se estratégias linguístico-discursivas definidas para que o acontecimento fosse informado de modo “espetaculoso”. Essas estratégias da dramatização da informação tendem a “construir uma visão obsessiva e dramatizante do espaço público, a ponto de não se saber mais se estamos diante de um mundo real ou de ficção.” (CHARAUDEAU, 2007, p.261). O leitor pode gozar com o espetáculo da dor por ver projetados, na publicação de Veja, os seus próprios medos, anseios, desejos, ódios, sejam eles conscientes ou não.
Os recursos linguístico-discursivos utilizados significam ao leitor de Veja porque estão prenhes de simbologia, a qual ele consegue, muitas vezes, decodificar, mas nem sempre entender. Em segurança, os leitores podem vivenciar seus melhores e piores sentimentos por alguns instantes sem realmente se expor. Após esse momento catártico, é inteiramente provável a passividade que interessa a alguns, pois a manipulação de determinados interesses é, assim, facilitada.
Apesar de seu caráter de inacabamento, as análises e as considerações apresentadas neste trabalho apontam para a necessidade de se discutir continuamente as questões relacionadas à leitura crítica do discurso midiático, para que, assim, o leitor perceba, também nesse discurso, a linguagem como elemento articulador entre o eu e o outro – duas consciências de dois sujeitos.

REFERÊNCIAS

ARBEX JÚNIOR, J. Showrnalismo: A notícia como espetáculo. 4.ed. São Paulo: Casa Amarela, 2001.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. (Trad. do francês- Paulo Bezerra). 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. (VOLOCHÍNOV) Marxismo e filosofia da linguagem. ( Prefácio de
Roman Jakobson, Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira)12ª ed., São Paulo:
Hucitec, 2006. (Original russo – 1929 )
CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. (Trad. Ângela S. M. Correa). São Paulo: Contexto, 2007.
MACHADO, I. Os Gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2.ed. rev. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p.131-148.
PUZZO, M.B. As capas de revista: relações dialógicas. Revista do GEL, São Paulo, v.6, n.1, p.135-150, 2009.
SOBRAL, A. Ato, atividade e evento. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.11-36.
______. Ver o texto com os olhos do gênero: uma proposta de análise. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v.1. n. 1, p.85 -103, 2009.

Revista

Veja. São Paulo: Editora Abril, Edição 2057, 23 abr.2008.




[1]  “O pretérito perfeito indica um ato que já se realizou completa, pura e simplesmente. O futuro do pretérito pode também indicar aproximação, imprecisão, uma suposição, uma hipótese”. (ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica de língua portuguesa. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.228-231.

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