sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O cinema e Bakhtin: notas acerca da contribuição de Robert Stam

Arthur Autran

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Introdução 


É sabida a enorme contribuição de Mikhail Bakhtin para os estudos da linguagem, da literatura e da lingüística. Certamente também para os estudos de cinema o aporte teórico de Bakhtin pode ser muito valioso, mas devemos atentar para o fato de que ele em suas obras nunca se referiu a esta forma de expressão.
Destarte, faz-se necessário para uma adequada utilização dos conceitos bakhtinianos aplicados ao cinema guardar distância em relação às diferenças fundamentais desta forma de expressão quando comparada à literatura, por exemplo. Apenas para citar o que é mais óbvio devemos recordar que: A) Enquanto a literatura constitui-se através da linguagem verbal, o cinema constitui-se através de imagens, da linguagem verbal (falada e escrita), de música e da ruidagem. B) Conforme demonstrou Christian Metz não é direta a correspondência entre a linguagem verbal e a linguagem cinematográfica, a menor unidade de significado da primeira - a palavra – não tem correspondente na segunda; cuja menor unidade de significado – o plano – é bem mais complexo[1].


A fim de iniciarmos a discussão em torno das possibilidades da contribuição do pensamento de Bakhtin para os estudos do campo do cinema acreditamos ser necessário contar com a intermediação de um teórico que já vem trabalhando nesta direção há vários anos. Neste sentido, propomos compreender como Bakhtin pode abrir veredas para o entendimento do(s) fenômeno(s) da linguagem cinematográfica por meio da obra de Robert Stam.


Robert Stam é professor há muitos anos no Depto. de Estudos de Cinema da Universidade de Nova Iorque, mas lecionou também na França e no Brasil. Sua obra é bastante vasta e seu campo de pesquisa inclui desde o estudo da representação racial no cinema, passando pela teoria do cinema até a investigação das relações entre cinema e literatura com destaque para o campo das adaptações cinematográficas.


Dentre seus principais livros podemos destacar: O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação, Crítica da imagem eurocêntrica (co-autoria de Ella Shoat), Multiculturalismo tropical: uma história comparativa de raça na cultura e no cinema brasileiros, Introdução à teoria do cinema, A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação, New vocabularies in film semiotics (co-autoria de Robert Burgoyne e Sandy Flitterman-Lewis), Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa e Subversive pleasures: Bakhtin, cultural criticism and film. Co-organizou com Randal Johnson o livro Brazilian cinema, um dos melhores compêndios em inglês dedicados ao cinema brasileiro.



- O Carnaval e a “Carnavalização”


A noção de “carnavalização” na obra de Bakhtin estrutura-se muito especialmente no seu livro Rabelais e a cultura popular da Idade Média. Para Bakhtin, no final da Idade Média o carnaval teve um papel fundamental ao permitir que do ponto de vista simbólico as pessoas experimentassem por alguns dias a liberdade utópica e a subversão da ordem estabelecida, servindo de escape à opressão da Igreja Católica e da aristocracia, bem como ao pavor da fome e das pestes. Segundo Robert Stam, Bakhtin interpreta o carnaval da seguinte forma:


O princípio carnavalesco abole as hierarquias, nivela as classes sociais e cria outra vida, livre das regras e restrições convencionais. Durante o carnaval, tudo o que é marginalizado e excluído, o insano, o escandaloso, o aleatório se apropria do centro, numa explosão libertadora. O princípio corpóreo material – fome, sede, defecação, copulação – torna-se uma força positivamente corrosiva, e o riso festivo celebra uma vitória simbólica sobre a morte, sobre tudo o que é considerado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe.[2]


Robert Stam afirma que o carnaval tem um papel fundamental para o artista brasileiro, pois este tem consciência “do universo cultural do carnaval enquanto repertório onipresente de gestos, símbolos e metáforas, um reservatório de imagens ao mesmo tempo popular e erudito”[3].


No caso específico do cinema brasileiro deve-se salientar que um dos gêneros de maior apelo popular ao longo da história foi a chanchada, comédias cujos entrechos eram marcados pelos sambas de sucesso no momento e que em muitos casos a própria trama envolvia o carnaval, bastando lembrar títulos como Alô, alô, carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), Carnaval no fogo (Watson Macedo, 1949), Carnaval Atlântida (José Carlos Burle, 1952) e até Carnaval em Marte (Watson Macedo, 1955). O gênero, cujas origens remontam ao teatro de revista em termos formais e que depois teve como herdeiro programas de televisão tais como A praça da alegria, dialogou intensamente com o rádio na divulgação de sambas e do humor escrachado das ruas do Rio de Janeiro. 


Se alguns destes filmes possuem interesse mais historiográfico e sociológico do que em termos estéticos ou de crítica social, seria um erro desconsiderá-los em conjunto. Há paródias que subvertem a força do cinema dominante de Hollywood para criticá-lo e ao mesmo tempo imitá-lo como é o caso de Matar ou correr (Carlos Manga, 1954). Outras fitas como Nem Sansão nem Dalila (Carlos Manga, 1954) parodiam o cinema americano e ainda fazem uma crítica excepcional do populismo como base da política brasileira nos anos 1950 via o personagem de Oscarito. O já mencionado Carnaval Atlântida merece destaque pela força com que parodia o cinema americano e ainda comenta o conflito entre diferentes concepções da época sobre o cinema brasileiro (um cinema de poucos recursos voltado para o público popular e que compartilhava com este determinados valores culturais como o samba e o carnaval versus um tipo de cinema com grande padrão técnico, caro em termos de orçamento e pretensamente mais ligado à alta cultura tal como pretendia a Vera Cruz). Segundo Robert Stam:


O tema de Carnaval Atlântida é o próprio cinema e, mais exatamente, a inadequação das superproduções de estilo hollywoodiano enquanto paradigma para a produção de filmes no Brasil. [...] Carnaval Atlântida exemplifica literalmente a idéia de carnavalização de Bakhtin, não só através de seu título, como também por meio de seus procedimentos e alusões fundamentais.[4]


Como exemplo de carnavalização Stam relembra a seqüência na qual se confrontam os modos como o produtor Cecílio B. de Milho imagina o seu filme Helena de Tróia e como os dois malandros empregados do estúdio fariam a fita. Ou ainda, acrescentamos nós, a forma como a cultura “culta” representada no filme pelo professor de História da Grécia – interpretado por Oscarito – vai sendo deixada de lado em prol da cultura popular, através da sedução em todos os sentidos do professor pela sobrinha de Cecílio, a qual adora “bailar”.


Mas o carnaval também está presente em diversos filmes autorais do cinema brasileiro, tais como A idade da terra (Glauber Rocha, 1980), no qual há uma brilhante contraposição do Cristo Branco – interpretado por Tarcísio Meira – ao povo em meio ao desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro. Ou ainda filmes como Ladrões de cinema (Fernando Cony Campos, 1977) e Natal da Portela (Paulo César Saraceni, 1988), nos quais o carnaval é símbolo da resistência cultural & política do povo pobre brasileiro. 


Obviamente a “carnavalização” não se faz presente apenas no cinema brasileiro. Robert Stam observa que vários filmes de Luis Buñuel constroem formas de transgressão que remetem à “carnavalização”, especialmente nos seus ataques à Igreja Católica e à burguesia. Isto desde momentos fortes como o banquete de Viridiana (1961) o qual imageticamente remete à pintura de Leonardo da Vinci, mas que ao longo da cena descamba para uma orgia grotesca; ou em O anjo exterminador (1962) a progressiva perda da etiqueta e das boas maneiras num jantar burguês marcado pelo estranho fato de que ninguém consegue sair da sala[5].

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Dialogismo e Cinema 


Para Bakhtin a linguagem está em toda parte e sempre marcada pelas formas de poder. Em Bakhtin “o embate ideológico localiza-se no centro vivo do discurso, seja na forma de um texto artístico, seja como intercâmbio cotidiano de linguagem”, ademais os enunciados, as palavras situam-se num contexto específico sendo direcionadas para determinada(s) pessoa(s), em uma situação dada[6]. Daí que para além das palavras proferidas por quem fala, também é importante analisar a entonação da fala, a expressão do rosto, a pronúncia, etc. 


Esta relação entre linguagem e poder é perceptível de maneira clara no caso dos países em que a língua oficial oprime as línguas não reconhecidas pelas autoridades, como na Espanha da época de general Franco quando o basco chegou a ser proscrito, ou na Bolívia onde os idiomas indígenas apenas muito recentemente foram reconhecidos legalmente. Mas tais relações de poder através da linguagem também se dão no cotidiano de uma mesma língua, isto a tal ponto que uma mesma palavra empregada por diferentes categorias sociais terá modificações no seu significado.


Para Bakhtin, a realidade da fala-linguagem não é o sistema abstrato das formas lingüísticas, não é o enunciado monológico isolado, mas o evento social da interação verbal. A palavra orienta-se para um destinatário e este destinatário existe numa relação social clara com o sujeito falante. Nosso interlocutor pertence a uma geração, um gênero e uma classe específicos, é alguém com mais ou menos poder do que nós mesmos, alguém mais ou menos afastado de nós. [...]


Bakhtin, caracteristicamente, estende o sentido de interação verbal, que é apenas outra denominação para “diálogo”, no sentido primário de discurso entre duas pessoas a outros domínios até mesmo metafóricos. Qualquer texto literário, enquanto desempenho verbal impresso, constitui uma forma de ação verbal, calculada para leitura ativa e respostas internas, e para reação impressa por parte de críticos, e pastiche ou paródia por outros escritores.[7]

Para resumir é possível definir o dialogismo, a partir das próprias palavras de Bakhtin, como “a relação necessária de qualquer expressão com outras expressões”[8].


A partir da noção de dialogismo, Julia Kristeva elaborou o conceito de intertextualidade, o qual se refere à relação que todo o texto artístico tem com outros textos artísticos e com o seu público[9]


Mais especificamente quanto à produção artística, Robert Stam entende que: 


O conceito de dialogismo sugere que todo e qualquer texto constitui uma interseção de superfícies textuais. [...] Em seu sentido mais amplo o dialogismo intertextual se refere às possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto das práticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no interior da qual se localiza o texto artístico, e que alcançam o texto não apenas por meio de influências identificáveis, mas também por um sutil processo de disseminação. O cinema, nesse sentido, herda (e transforma) séculos de tradição artística.[10]


No campo do cinema é possível pensar o dialogismo para muito além do diálogo entre os personagens de determinado filme. Entre outros exemplos citados por Stam, podemos analisar dialogicamente o cinema a partir do diálogo de um filme com os seus predecessores – em termos nacionais, de gênero, do mesmo diretor, etc. –, o diálogo das vozes no interior de um filme – a dos personagens em relação à locução –, ou ainda às diferentes trilhas que constituem o filme – entre música e imagem, por exemplo. Além do mais, é possível relacionar dialogicamente o filme com outras expressões culturais – literatura, artes plásticas, arquitetura, etc. –, os processos de produção e o próprio público implícito na sua realização[11]. Seguem alguns exemplos de análises possíveis com base no dialogismo.


Como demonstrou Jean-Claude Bernardet, documentários da estirpe de Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) e Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) constroem um sistema de informação no qual a voz do locutor fala o português culto, de maneira cadenciada e clara, além de prover informações científicas a respeito das figuras populares que vemos nestes filmes de maneira a promover generalizações, já tais figuras falam um português que não é o das gramáticas, de maneira entrecortada e pouco clara, além de falar unicamente de si mesmos sem conseguir estabelecer nenhuma relação mais geral[12]. Tal orquestração de vozes construída pelo filme referenda uma perspectiva social elitista, apesar de os diretores declaradamente possuírem intenções progressistas, pela qual o popular para ter sua experiência exposta socialmente precisa sempre da intermediação do intelectual ou do cientista ou da grande mídia.


Um filme como Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2003) demonstra a opressão aos indígenas no Brasil através de várias formas de violência, inclusive pelo desaparecimento quase total da língua do personagem central – o qual não fala o português. Esta situação amplifica em muito o isolamento deste personagem e a sua situação trágica.


Em filmes produzidos pela grande indústria cinematográfica internacional a voz do outro de etnia, religião ou língua é no mais das vezes desconsiderada. Como lembra Robert Stam, no caso da trilogia de Steven Spielberg em torno do personagem Indiana Jones, este apesar de saber várias línguas não dialoga efetivamente com os outros personagens de diferentes etnias e culturas, permanecendo sempre superior a eles que são retratados como exóticos, estranhos e violentos[13]. E este tipo de situação pode ser encontrado em diversos outros filmes norte-americanos nos quais o colonizador branco se defronta com índios ou nativos em geral nos mais diferentes quadrantes do mundo.


O dialogismo em termos das obras cinematográficas pode ser encaminhado das formas mais abrangentes. Por exemplo: como O céu de Suely (Karin Aïnouz, 2006) retrabalha a imagem da estrada no final do filme para toda uma tradição do cinema brasileiro que remonta a Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e passa por Brasil, ano 2000 (Walter Lima Jr., 1969) e O anjo nasceu (Júlio Bressane, 1969), entre muitos outros filmes. Ou como Glauber Rocha reconstrói a figura do cangaceiro em Deus e o diabo na terra do sol (1964) a partir de diálogos e recusas em relação a O cangaceiro (Lima Barreto, 1953), à literatura de José Lins do Rego e Guimarães Rosa, bem como à cultura popular do Nordeste. Em O desprezo (Le mépris, Jean-Luc Godard, 1963) há toda uma gama dialógica que perpassa o personagem Fritz Lang interpretado pelo próprio diretor e o produtor Prokosh interpretado por um ator conhecido pelos papéis de vilão como Jack Palance. Ou finalmente como O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) trabalha com elementos os mais díspares tais como referências a Orson Welles, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha, ao mesmo tempo em que dialoga com HQs, o universo do filme B, dos programas radiofônicos e das músicas consideradas bregas, tudo isto sem buscar uma hierarquização mas sim uma mistura que desse conta de pensar nossa extrema diversidade cultural.


Finalmente, o campo das relações entre cinema e literatura são particularmente instigantes no que tange às adaptações. Um primeiro passo para tanto é deixar de lado a idéia de “fidelidade”, a qual não possui sentido pois uma obra que parte de outra sempre será diferente. Ademais como lembra Stam, o filme “ao revelar aspectos do texto-fonte” de maneira a destacá-los diz muito da época em que o filme foi feito. Uma obra literária como As aventuras de Robinson Crusoé - de Daniel Defoe – já mereceu inúmeras adaptações, inclusive algumas como Robinson Crusoé (1952) de Luis Buñuel ou Man Friday (1975) de Jack Gold que ironizam o viés colonialista do personagem central – perspectiva inexistente no livro[14]. De outro lado é possível comparar diferentes adaptações a partir das relações estruturais: Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, já foi adaptado de maneira totalmente linear em termos narrativos por André Klotzel em Memórias póstumas (2001) ou de maneira a retomar as experiências temporais do romance no Brás Cubas (1985) de Julio Bressane. 

[1] METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 136-139.
[2] STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992. p. 43.
[3] Idem. p. 51.
[4] Ibidem. p. 54.
[5] Ibidem. p. 61.
[6] Ibidem. p. 62.
[7] Ibidem. p. 33-34.
[8] Apud STAM, Robert, BURGOYNE, Robert e FLITTERMAN-LEWIS, Sandy. Nuevos conceptos de la teoría del cine. Barcelna: Paidós,1999. p. 232.
[9] STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Op. Cit., p. 34.
[10] STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003. p. 226.
[11] STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Op. Cit., p. 34.
[12] BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
[13] STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Op. Cit., p. 66.
[14] STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 467.

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