sábado, 18 de setembro de 2010

Algumas considerações sobre os conceitos de identidade e alteridade



Lilian Juana Levenbach de Gamburgo


“... o ato singular ou a realização da minha singularidade é também algo que completa o ser do outro” (Amorim, 2009).

           
            O estudo dos textos de Bakhtin e dos estudiosos que se debruçam sobre seu pensamento e sua obra representa um exercício constante de discussão, compreensão e interpretação de conceitos e discursos de grande complexidade, que podem originar diálogos plenos de polêmicas e debates. Um desses conceitos é, a meu ver, o de identidade.

            Movida pelo desejo de me aprofundar na compreensão do pensamento bakhtiniano e de instaurar diálogos e contribuir para a cadeia de enunciados, exponho aqui uma inquietação provocada pela aparente oposição identidade/alteridade que é possível inferir a partir da leitura dos alguns textos, mencionados a seguir.

            Ao falar sobre a identidade européia na atualidade, Ponzio (2009) fala da formação de pequenos e grandes espaços de identidade, referindo-se especificamente à unidade econômica e cultural representada pela Comunidade Européia. A formação desta unidade tem conseqüências positivas e negativas, “... como ocorre em toda forma de unificação quando se cria uma identidade (seja uma identidade pessoal, de um grupo, de uma classe, de uma associação, de um partido político, de uma nação ou de uma língua)” (idem, p 17). 

            O conceito de identidade assim descrito – a identidade européia – está relacionado a essa união de países, cuja ideologia se fundamenta na categoria de identidade e adota formas de ação corporativas. Esse corporativismo “... parte do interesse de se confirmar e reforçar a própria esfera de identidade” (p. 20) como uma forma de defesa de seus interesses materiais e econômicos setoriais e privados.

            O bloco europeu, segundo Ponzio (2009), faz predominar a identidade sobre a alteridade e acrescenta: “quando a identidade domina, existe sempre um inimigo externo contra o qual unir-se e contra quem lutar” (p. 22). Para se proteger, a identidade européia paga o preço de eliminar a alteridade. Esta faz referência a todos os que são rotulados de “extracomunitários”, estereótipo duplamente negativo (por ser racista e nacionalista), aplicado aos imigrantes africanos, asiáticos, não-europeus, que vêm trabalhar e são elementos estranhos ao grupo dominante, que sofrem a rejeição e a falta de reconhecimento dos seus direitos.

            O conceito de identidade assim delineado parece ser tratado em oposição ao de alteridade, como se identidade fosse uma forma de qualificar negativamente os interesses privados, capitalistas, dominantes na Europa, em oposição aos interesses da alteridade, ou seja, dos não-europeus, dos “extracomunitários”.

            Considerando agora a identidade como o conjunto de características e circunstâncias que fazem de cada indivíduo um ser singular, portanto único, irrepetível, cito o seguinte trecho de Sobral (2005, p 11): “O agir humano se define em termos de atos singulares”. Atos de um sujeito situado, que é responsável e responde pelos seus atos (responsibilidade), o que envolve um compromisso ético. 

“O ato “responsível” e participativo resulta de um pensamento não-indiferente [...] o ato responsível envolve o conteúdo do ato, seu processo e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito a seu próprio ato, vinculada com o pensamento participativo...” (idem, p 21).

            Assim, segundo Sobral, Bakhtin concebe “... um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de inserção da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional/responsivo que lhe dá sentido” (idem, p. 22). Vistos deste modo, os conceitos de identidade e alteridade são simultâneos e mutuamente indispensáveis para se compreender a constituição do eu.

            Esta outra forma de tratar a identidade não a coloca em oposição à alteridade, pois o sujeito, seu agir – e sua identidade - se definem a partir do outro – da alteridade – e também o definem. “Só me torno eu entre outros eus [...] o sujeito, ainda que se defina a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o “outro” do outro, eis o não acabamento constitutivo do Ser” (idem, ibidem). O agir do sujeito singular, a realização da sua singularidade completa o ser do outro (Amorim, 2009).

            Assim, a alteridade é constitutiva do eu, é constitutiva da identidade do eu. E o eu só existe dialogicamente, num contexto social e histórico concreto.

            Vivemos numa cultura pós-moderna, “... uma cultura de ação e não de ato [...] a ação não é responsável, não tem assinatura, ao contrário, nela posso justamente visar apagar minha singularidade [...]” (Amorim, 2005, p 40). O sujeito pós-moderno sofre a perda gradual da unicidade do seu ser. Porém, continua sendo uma necessidade do homem pertencer a, continuar vendo-se como um ser singular e único, para quem o evento da sua experiência de vida, o evento único da sua ação continue a permitir-lhe assumir a sua responsabilidade moral, sem álibis, da qual não pode nem deve abdicar.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Marilia. “Para uma filosofia do ato: ‘válido e inserido no contexto’”. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto. 2009.

PONZIO, Augusto. A Revolução Bakhtiniana. São Paulo: Contexto. 2009       

SOBRAL, Adail. “Ato/atividade e evento”. In: BRAIT, B (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

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