Viviane Luiz
“Impossível restituir o sentido do discurso tal como ele produz na situação de campo” (Bakhthin).
É lamentável o fato de que em uma dissertação não consigamos exprimir os sons, ruídos, cheiros, entonações, a musicalidade e o ritmo do jeito ou dos jeitos de ser e falar quilombola.
Gostaria de poder trazer para o papel, ou para o corpo desse texto, o cheiro da fumacinha da téipa que se espalha pelo terreiro e envolve as conversas nos momentos de refeições, o aquecimento de nossa pele com o fogo que aquece do frio e protege da picada dos insetos.
Não dá para trazer para o texto a intensidade de uma coceira nervosa causada pelas picadas dos insetos que nos rançam sangue.
Gostaria também de remeter ao corpo do texto a entonação de voz, própria das famílias de Ivaporunduva que acentuam o volume de voz no final das frases e baixam nas palavras anteriores sendo difícil em um primeiro momento, a compreensão completa de tudo o que dizem.
O ritmo, o som e a musicalidade que se ouvem durante a ação de uma trabalhadora e de um trabalhador da roça ao socar café no pilão; e do neto perto no terreiro, passando a cana pela moenda fazendo guarapa, o som da guarapa caindo no balde; durante a ação de uma senhora, maestrina no corte das fibras da bananeira, com a faca corta os quatro tipo de fibras utilizadas para fazer o artesanato e o corte de cada fibra emite um som, uma música; a ação da fabricação tradicional e caseira no tráfigu que é de uma musicalidade incrível e de um trabalho artesanal que agrega a família nas etapas de sua fabricação que compreende desde o corte de uma considerável quantia de mandioca, depois passá-la pela roda, depois pela prensa onde espremida solta um líquido branco, que ao cair faz música. Com esse líquido depois de assentado no fundo da vasilha origina-se a goma ou o polvilho com os quais Dona Cacilda faz bolo de roda, pressada[1] e outros pratos tradicionais local, para nós, talvez seja mais conhecido a tapioca, depois de prensada então, ela é coada, peneirada e por último é levada ao forno, resultando assim na farinha de mandioca.
Descrevi esse processo, mas ele perde a vida ao ser descrito, pois meu leitor não vê a dona Cacilda fazendo tudo isso com o seu Aparício e seus filhos e netos, Laudineis e Willian, não vêem a família trabalhando junta, tampouco a realização desta ao comé-la e ao me oferecerem orgulhosos o fruto de seu trabalho, que dizem ser incomparavelmente melhor que a distribuída na cesta básica.
Minha intenção é que apesar das limitações por conta da formalidade exigida pela academia, não falte nesse texto, famílias, pessoas, anciãs, jovens e crianças, não falte Eric, Valdir, Sabrina, Camila, Ademar, Senhorinha, Maria, o cotidiano destas, a vida destas, e sobretudo, elas mesmas, e eu nelas, na convicção que o Eu e o Outro pesquisado se constituem.
[1] Embora na gramática normativa seja escrito garapa (e não guarapa), taipa (e não téipa), casa de farinha (e não tráfigu), preferi manter nesse texto o jeito de falar da forma pela qual ouvi. Já que não posso transmitir ao meu leitor a musicalidade, a entonação, o cheiro, as pausas e os sons pretendidos, ao menos quero manter os termos da forma pelos quais ouvi, o mesmo ocorre com o termo pressada, que só ouvi lá, designando um prato típico feito pelas mulheres da comunidade. A roda e a prensa, são componentes do tráfigu (casa de farinha), fazem parte do processo de produção da farinha de mandioca
Nenhum comentário:
Postar um comentário