sexta-feira, 17 de setembro de 2010

BAKHTIN E FREINET A educação sob um olhar estético


Tânia Regina Laurindo[1]
João Wanderley Geraldi[2]

A realização de projetos humanos transmuta o deserto do espaço em um jardim do tempo.
(Clark e Holquist, com base na Filosofia do Ato)

Introdução

            Aproximar dois autores que nunca se encontraram, e entre si um desconhecido do outro, pois nenhum faz referência à obra do outro, é produto da leitura de terceiros, neste diálogo infindável em que as idéias são retomadas, reagrupadas e reorientadas na construção de compreensões dos fenômenos sobre que nos debruçamos. Assim, a mesa para qual se convida o leitor será posta por nós, porque colocaremos num mesmo espaço pensamentos oriundos de condições históricas distintas.
            O objetivo é extrair dos estudos de estética de Bakhtin elementos de compreensão dos processos educacionais e, ao fazer isso, encontrar nas práticas que constituem a pedagogia Freinet caminhos de construção de um ensino que, para além de seu compromisso ético, seja capaz de incluir a estética como forma de lidar com o campo da cognição nos processos educacionais escolares.
            Para fazer isso, faremos um trajeto mais ou menos simples:
1. inicialmente tentaremos recompor um breve quadro do período de produção dos dois autores, em que a distância geográfica e cultural é ultrapassada por partilha de concepções amplas de sociedade;
2. depois selecionaremos conceitos da estética bakhtiniana com que podemos construir uma compreensão da educação e de seus processos com aparentes acabamentos;
3. a seguir, descreveremos algumas técnicas de Freinet para os processos das dinâmicas de sala de aula;
4. e por fim poremos em relevo os pontos de contato que tornam compagináveis os pensamentos do filósofo russo e do educador francês.

1. Crise e efervescência cultural

            O fato que motivou a tentativa de aproximar estes dois autores diz respeito à coincidência temporal de suas produções – o momento mais fértil de elaboração de seus pensamentos é o período de entre guerras, ainda que seus países estivessem passando por momentos políticos distintos.
            Celestin Freinet foi um professor primário, que nasceu em 15 de outubro de 1896, no sul da França. Ainda jovem ele foi chamado a lutar na 1º guerra Mundial e isto o impediu de terminar o curso normal. Gravemente ferido em uma batalha, perdeu grande parte de sua capacidade pulmonar. Embora pudesse receber uma aposentadoria por invalidez, teimou em exercer a profissão para qual se formara: o magistério.
            Foi na dureza do conflito que Freinet se deu conta do paradoxo educacional: a formação daqueles que, agora soldados matavam outros soldados, também estes trabalhadores escolarizados, mostrava que compartilhar conhecimentos não faz do ser humano mais humano e mais solidário.
            Sua pergunta incômoda: que formação é esta que faz dos sujeitos inimigos de outros sujeitos? Uma pergunta que aparece sob um fundo pressuposto: o da possibilidade de construção de uma solidariedade internacional. Não é por acaso, pois, que Freinet, retornado da guerra, filia-se ao Partido Comunista Francês e põe sob suspeição todo o processo escolar incapaz de uma formação humana mais ampla. Há nessa educação como transmissão de conhecimentos algo de incompatível: se o conhecimento é universal, objetivo e pode ser ensinado a diferentes culturas, quer para os jovens alemães, quer para os jovens franceses, por que os sujeitos que o aprendem se fazem inimigos dos outros que estão do outro lado dos limites nem sempre explícitos impostos pelas demarcações de fronteiras?
            A reconstituição da vida, depois de uma experiência sempre traumática como é a guerra, não poderá deixar de lado a preocupação com este dilema educacional – como fazer com que a educação não só seja para todos, mas que também respeite a todos? Como construir sujeitos sociais capazes de uma solidariedade que vá além das fronteiras?      
            Bakhtin é envolvido pela Revolução de Outubro, e o período que se segue é de uma efervescência cultural e produtiva na Rússia. É difícil imaginar o que pode ter significado, por exemplo, o movimento de Gorki reunindo padeiros e outros trabalhadores em oficinas de produção literária! Nenhum setor da vida russa deixou de ser deslocado e re-focado pela revolução. Tanto assim que as condições sociais revolucionárias, alterando as estruturas político-estatais, interferiam na vida das pessoas e até mesmo em seus direitos existenciais: havia fome na Rússia pós-revolucionária[3]. Tudo isso levou intelectuais como Bakhtin a constantes mudanças de cidade: Petrogrado, Nevel, Vitebsk, retorno a Petrogrado, então denominada Leningrado. E nem sempre estas mudanças foram ‘voluntárias’. E em todas estas cidades Bakhtin foi um intelectual ativo, participando de diferentes círculos de estudos, incluindo também estudos sobre religião[4] que provavelmente lhe valeram o período de quase 6 anos como deportado, quando deu aulas para pecuaristas e trabalhadores ao mesmo tempo em que era contador em Kustanai (Cazaquistão).
            Mas não é somente o simples fato de terem vivido tais períodos históricos de seus países que faz aproximá-los. Há algo em comum entre eles. E este algo em comum é o terreno do marxismo, ponto de ancoragem de ambos. Freinet não foi um estudioso de Marx: ele abraçou o Marx político, o Marx do Manifesto Comunista. Filia-se ao PCF (Partido Comunista Francês) e a ideologia da igualdade, do socialismo, do internacionalismo que fará o professor rever suas práticas de ensino e elaborar processos de ensino em que a construção do novo se sobreporá à transmissão do conhecido. Bakhtin, ainda que alguns estudiosos apontem sua explícita referência à fenomenologia, também professa um marxismo difuso por várias referências a obra de Marx em seus trabalhos (incluindo os trabalhos sobre Dostoiévski e Rabelais). E em sua história de vida não se encontram manifestações contrárias à ideologia marxista (ainda que não assine ficha no Partido num momento em que isso poderia ser vantajoso!). Aproximar fenomenologia e marxismo, humanismo e marxismo, cultura e marxismo fazia parte do contexto da época.  
           
2. “Eu respondo ao presente projetando o futuro”

            Não há educação sem projeto de futuro. Mas um projeto de futuro não pode ser encapsulado, limitado e definido já que o tempo que está por vir não é dominado e fechado pelo tempo em que se vive. Antes pelo contrário, a abertura das limitações do presente é conseqüência das ações que visam um futuro vislumbrado e re-compreendido a todo instante.
            É esta relação com o futuro, que define ações do presente, que permite aproximar a educação da estética bakhtiniana. Ou melhor, compreender a relação educativa com base em categorias da estética bakhtiniana amplia os sentidos do projeto de futuro que ilumina as práticas pedagógicas. Utilizaremos quatro conceitos elaborados no contexto da estética de Bakhtin: (a) o excedente de visão; (b) o acabamento espaço-temporal do herói e (c) a polifonia como encontro de vozes de consciências autônomas, equivalentes e equipolentes.
           
2.1. O excedente de visão: o outro e a completude inatingível
            O autor, relativamente a sua personagem, ocupa um lugar exotópico e por isso tem da personagem um todo que a própria personagem, ‘vivendo’ o seu tempo no romance, não dispõe, porque não dispõe de um todo integrado. No mundo da vida ética, o outro que ocupa relativamente a mim um lugar exotópico é autor de uma ‘definição’ que dá a si próprio de mim, definições provisórias, situadas, datadas. Eu sou visto com base nessa autoria do outro: com ela eu me encontro e me defronto, ainda que eu mesmo não me construa como o outro me constrói e reconstrói constantemente. Mas sou também aquilo com que me encontro e com que me defronto, pois enquanto homem tenho
uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria; a memória estética é produtiva, cria pela primeira vez o homem exterior em um novo plano de existência. (Bakhtin, 2003: 33)
            Na relação pedagógica, professor e aluno ocupam, um relativamente ao outro, uma posição exotópica fundamental: reconhecer estas diferentes posições e deslocar-se de uma para outra para compreender pontos de vistas formados a partir do posto em que cada um se encontra é o primeiro passo para qualquer mediação triádica entre professor/aluno/conhecimentos e saberes.
            É o conhecimento de mim por aquele que está à minha frente que lhe dá um excedente de visão, capaz de fornecer ao ‘eu’ uma completude provisória. Se o professor dispõe de um “excedente” em termos de conhecimento, precisa reconhecer que o aluno dispõe de outro excedente, aquele de suas práticas e de sua vivencialidade. Sem este reconhecimento, a relação pedagógica se esvai.
           
2.2. O acabamento espaço-temporal do herói: o fim como abertura de sentidos
            É da estética da relação autor/herói que extraímos o conceito de acabamento. O autor, como consciência de outra consciência, a da personagem, tem desta um acabamento, pode dar-lhe uma definição (isto é, ditar-lhe um fim). Enquanto uma obra estética tem um fim, é dada por pronta, na vida vivemos sempre o ainda por vir, há sempre um futuro. Bakhtin usa o conceito de ‘acabamento’ e não de ‘fechamento’, precisamente porque o acabamento é produto de um gesto, de uma ação do autor, mas uma vez completada obra, seus sentidos se abrem para a cadeia infinita de enunciados de que passa a participar. Os leitores, os expectadores, e suas contrapalavras darão vida nova à obra, abrindo-lhe seus sentidos. Dialeticamente, o acabamento é responsável pela possibilidade da abertura.
            Na relação pedagógica, podemos dizer que uma educação vista esteticamente está sempre produzindo acabamentos – os objetivos a que se quer chegar, que são ditados como nossa resposta ao presente pelo que projetamos como futuro. É este futuro a ser alcançado, o que está por vir, que funciona como horizonte de chegada, e o educador transita com educandos para esta direção. Sem direção no horizonte não é possível pensar qualquer educação (formal ou informal) e é precisamente o horizonte futuro que define do que é passado aquilo que pode se transformar no presente em instrumento de construção do porvir. Mas é preciso explicitar: se este porvir tem um acabamento, não tem um fechamento! Por isso a idéia de portos: lugares de chegadas que são também de partidas.  

2.3. Polifonia: encontro de vozes, consciências autônomas e equivalentes
            É no estudo sobre Dostoievski que encontramos o conceito de romance polifônico, onde a relação entre autor e herói se faz em nível de igualdade de condições de consciência. Isto não quer dizer que não é o autor que dá o acabamento à obra, mas quer dizer que no processo de tempo e espaço de vida da personagem, esta se faz autônoma em relação ao autor, de modo que, em certo sentido, uma vez criada, a criatura passa a ter vida independente do criador: também ela conduz o enredo, os diálogos e força o autor a lhe permitir consistência própria.
            Mais uma vez, trazendo o conceito para o âmbito das relações pedagógicas, é a autonomia de consciência do educando que faz dele um parceiro equivalente no processo do ensino e da aprendizagem. Um aluno que repete o professor e re-afirma a  palavra da escola é uma aluno domesticado, no sentido que dá a esta expressão a pedagogia freireana.

3. A dignidade do trabalho: oficinas de produção

Observando a atitude das crianças, Freinet anotava seus interesses e atenção para detalhes: o bichinho que sobre o muro, a pedra redonda do rio, qualquer tampinha de garrafa se torna bola e brinquedo. No entanto, na sala de aula havia total desinteresse pela leitura. Com profundo respeito pela atitude curiosa dos alunos, Freinet tenta resolver o impasse e, como era audacioso, levou as crianças para fora da sala, pois o interesse estava lá. Surge assim a aula passeio, que é um de seus instrumentos de grande valor, pois as crianças estudam sobre determinado assunto nos lugares onde eles acontecem. Quando voltam das aulas passeio as crianças registram tudo o que foi visto. Outro instrumento que Freinet utilizou foi a imprensa[5] para que as crianças pudessem escrever e imprimir para dar aos outros para lerem. Começa assim, a correspondência escolar.
            Surge a aula que se faz em oficinas, onde o trabalho individual e em equipe substitui a exposição; onde o planejamento dos saberes e conhecimentos a serem assimilados é compartilhado e às vezes aparece como acontecimento imprevisto. Com base nas experiências concretas, Freinet escreveu uma série de princípios que chamou de Invariantes Pedagógicas. Para cada princípio Freinet organizou um sistema de avaliação para ser respondido pelos professores de modo que estes pudessem ter um parâmetro para a sua prática pedagógica, baseado no código de trânsito, com as cores vermelha, amarela e verde, significando respectivamente desacordo, benefíciio circunstancial e de acordo com os princípios assumidos.
Dentre as trinta Invariantes Pedagógicas elaboradas por Freinet,  destacamos as que mais chamam a atenção, e que nos fazem ter uma visão da criança como ser humano agindo no mundo e não na espera para atuar no mundo:
A natureza da criança: A criança e o adulto têm a mesma natureza.
As reações das crianças:
Ninguém gosta de fazer determinado trabalho por coerção, mesmo que, em particular, ele não o desagrade. Toda a atitude coerciva é paralisante.
Ninguém gosta de trabalhar sem objetivo, atuar como máquina, sujeitando-se a rotinas nas quais não participa.
As Técnicas Educativas: Não são a observação, a explicação e a demonstração - processos essenciais da escola- as únicas vias normais de aquisição de conhecimento, mas a experiência tateante, que é uma conduta natural e universal.
Fale o menos possível.
Os castigos são sempre um erro. São humilhantes, não conduzem ao fim desejado e não passam de um paliativo.
A democracia de amanhã prepara-se pela democracia na escola. Um regime autoritário na escola não seria capaz de formar cidadãos democratas. (Sampaio, 1989, p.81-99)   
            Como se pode ver nesta indicações sumárias da pedagogia Freinet, o ensino não pode ser pensado sem que haja um produto (da oficina): um acabamento, mesmo que provisório; o aluno é co-partícipe do processo de ensino já que também está presente no planejamento, e por isso é visto como um sujeito capaz e autônomo em relação ao professor. É a constituição deste sujeito polifônico, social, capaz de decisão que visa todo o processo pedagógico proposto por Freinet.  

4. Por fim, o lugar do encontro

            Freinet, ao propor a educação do ser integral, preocupado com a totalidade e não somente com o conhecimento, reafirma uma dupla necessidade só aparentemente paradoxal: a exigência de pontos de chegada no trabalho e a autonomia da cada sujeito no processo de aprendizagem. Paradoxo aparente porque os pontos de chegada devem ser compreendidos como acabamentos e não como fechamentos: todo o conhecimento apreendido abre-se para novos conhecimentos que re-significarão o aprendido de que se parte. Nisto assemelha-se à obra de arte: acabada, abre-se para novos sentidos.
            Bakhtin fornece, com seus conceitos elaborados para a compreensão da criação verbal, caminhos significativos para pensar a educação não como um projeto de ‘instalação’ de um futuro, mas como um projeto de futuro que tem consciência de que o presente por ele expandido é incapaz de prever todos os sentidos possíveis que se abrem após se chegar a um acabamento provisório.
            Assim, e sempre do nosso ponto de vista, ambos os autores ocupam um posto de observação no mesmo campo de pensamento, essencialmente aquele expresso por dois conceitos caros ao marxismo: a preocupação com a totalidade e o relevo ao concreto.


Referências bibliográficas
Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
__________ Problemas da  poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro : Forense, 2008.
Boukharaeva, L.M. Começando o diálogo com Mikhail Mikhailovitch Bakhtin. Ijuí : Editora da Unijuí, 1997.
Clark, K. e Holquist, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
Freinet, C. Ensaio de Psicologia Sensível. Tradução de Cristiane Nascimento e Maria Ermantina G. Pereira.  São Paulo : Martins Fontes, 1998.
Laurindo, T. R. Lorelai. Uma experiência de inclusão. Dissertação de mestrado em Educação, Unicamp, 2003.
Sampaio, R.M.W.F. Freinet. Evolução histórica e atualidades. São Paulo : Scipione, 1989.
        


        



[1] Doutoranda em Educação da UFSCar. Professora das Faculdades Americanas. taniarl@hotmail.com
[2] Professor Titular Aposentado da Unicamp. jwgeraldi@yahoo.com.br
[3] A propósito, ver Boukharaeva (1997)
[4] Boris Schnaiderman, em texto introdutório à obra de Clark e Holquist (1998), escreve: “Outro fato que parece difícil de entender quando se começa a abordar a obra de Bakhtin é a sua condição de homem profundamente religioso que, ao mesmo tempo, é capaz de sólidas abordagens marxistas de uma realidade cultural.”
[5] Hoje estaria usando o computador.

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