Isaura Maria de Carvalho Monteiro
Essa breve reflexão tem como objetivo apontar a estética da criação de uma charge do Amarildo[1] à luz do pensamento bakhtiniano e sua filosofia do ato responsável.
Primeiramente, faz-se importante tentar compreender a dimensão do “ato” para Bakhtin. O termo russo postupok usado pelo autor exprime uma ideia de ato concretamente em realização, o que vai gerar um sentido ativo e durativo, em vez de simplesmente akt, termo também russo que se refere a um momento da historicidade de maneira abstrata. Para Bakhtin, o ato só é verdadeiramente real na sua totalidade, isto é, no confrontamento de dois mundos, o da cultura e o da vida.
Portanto, o que interessa à proposta de análise é o postupok, que vem destacar um caráter intencional à ação, praticada por alguém situado, colocando em evidência a participação do agente. Eis a charge:
O Polvo Profeta e Lula
Como esclarecer essa disposição arquitetônica do mundo da visão estética de Amarildo? Em primeiro lugar, é preciso atentar para os personagens: dois conhecidos candidatos à presidência, Dilma e Serra; o atual presidente, Lula; o polvo-profeta.
Antes de prosseguir com o pensamento da análise, passa-se à etapa de comentar os contextos de valores dos personagens. Dilma e Serra estão no mesmo patamar, em relação a seus objetivos: ambos estão envoltos pelo contexto unificante da candidatura à presidência. Lula afirma-se sobre um outro plano de valor: ele é o presidente, que será substituído, provavelmente, por um dos dois, que são os candidatos mais cotados nas pesquisas e Dilma é a candidata do seu partido. Já o polvo-profeta é um caso à parte, cenário mundial em tempo de copa de futebol: o oceanário Sea Life, na cidade alemã de Oberhausen, foi quem teve a ideia de fazer o molusco Paul apontar o vencedor de jogos da Copa do Mundo, mas ninguém por lá imaginava que a brincadeira fosse parar tão longe e fazer do pequeno polvo uma celebridade mundial.
Celebridades à parte, impossível não refletir sobre o signo “polvo”, pois, no centro de sentido da charge, ele vai estar ligado por um elo semântico com o nome do presidente. Cabe aqui lembrar os escritos de Bakhtin sobre o signo, elemento chave de todas as práticas significativas, em Marxismo e Filosofia da Linguagem. Ao citar o mito Jano[2], aponta duas direções, que estão inseridas no sentido da charge – a diferença e a complementaridade, um antes e um depois, o interior e o exterior, a favor e contra:
Na realidade, todo signo ideológico tem, como Jano, duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social a de comoção revolucionária [...] (Bakhtin, 1995, p. 47)
É possível perceber, então, que o autor-criador da charge aproveitou-se da condição especial do tempo histórico-social Copa do Mundo e eleições presidenciais, tempo esse em que as contradições ocultas em todo signo ideológico se mostram mais facilmente do que nas condições habituais da vida social. O autor-criador, ao tecer sua arquitetônica na charge, valeu-se da plurivalência social do signo ideológico, transformando-o em arena (palavra tão ao gosto bakhtiniano) de luta dos índices sociais de valor – Lula e o polvo, cada um fazendo suas escolhas e predições.
Assim se mostra esteticamente a charge, definida pelo ato de contemplação de seu criador, revelando uma ação responsável, não um produto abstrato, mas tornando-se um objeto compreendido no interior da participação de seu criador e, consequentemente, permitindo a compreensão da função de cada participante. Na confrontação desses dois mundos, o da cultura e o da vida, o criador encontra a unidade de uma responsabilidade bidirecional (Bakhtin refere-se à Jano pela primeira vez, em um de seus primeiros escritos):
[...] o ato de atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas: para a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a singularidade irrepetível da vida que se vive [...] (BAKHTIN, 2010, p.43)
Dessa forma, o autor-criador mostra-se um “sujeito situado”, “responsivamente ativo”, definindo-se na relação com os outros, tanto na sociedade quanto na história. Importante também fazer algumas observações sobre o gênero charge. O termo charge é um galicismo, empréstimo da língua francesa. O seu significado “carga” pretende mostrar um exagero nos traços do caráter de alguém ou de algo para torná-lo burlesco. A realidade é reapresentada com o auxílio de imagens e palavras. O gênero pode articular harmoniosamente as duas linguagens, a verbal e a não-verbal. Nos dias de hoje, em diversas vezes, a charge vem acompanhada de algum enunciado verbal para facilitar o envolvimento do leitor na proposta de sentido da criação, especialmente se veiculado em jornal, que abrange um público diferenciado culturalmente. No caso em análise, o autor não usou desse recurso. Apostou na relação entre arte e vida, apostou na “responsibilidade” que garantiu a unidade interior dos elementos da sua arquitetônica. O termo “responsibilidade”, quem o caracteriza é Sobral (2005, p.20):
Trata-se de um neologismo em língua portuguesa que proponho com o objetivo de traduzir o termo russo, não neológico, otvetsvennost, que une responsabilidade, o responder pelos próprios atos, a responsividade, o responder a alguém ou a alguma coisa. O objetivo é designar por meio de uma só palavra tanto o aspecto responsivo como o da assunção de responsabilidade do agente pelo seu ato, um responder responsável que envolve necessariamente um compromisso ético do agente.
Este é, então, o modo pelo qual o autor produziu seu ato estético, um gesto ético no qual se arriscou e se responsabilizou pelo seu pensamento. Olhando a imagem de Lula e de Dilma no quadro, o leitor poderá notar claramente traços de um “sorriso amarelo”, de quem é pego em flagrante por um delito, o que o levará a muitos outros questionamentos, direcionados pela “assinatura” do autor, com “firma reconhecida”.
Para finalizar, como analista de discurso e também como leitora, “inserida no contexto” (AMORIM, 2009), é possível afirmar que só o tempo dirá se Lula é tão eficiente na sua “profetização” sobre a vitória nas eleições quanto o foi o polvo Paul durante a Copa.
Referências
AMORIM, M. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. In Bakhtin dialogismo e polifonia, Beth Brait (org). São Paulo: Editora Contexto, 2009.
BAKHTIN, M Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Lahud e Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
__________ Para uma filosofia do ato responsável Trad. Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
SCHMIDT, J. Dicionário de mitologia grega e romana. Lisboa: edições 70, 1994. ISBN 972-44-0894-9, p.159.
SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In: Bakhtin: conceitos-chave. BRAIT, B. São Paulo: Contexto, 2005.
[1] Amarildo Lima – 46 anos – É capixaba e trabalha há 22 anos no Jornal A Gazeta do Espírito Santo como chargista e editor de ilustração.
[2] Considerado um dos maiores deuses do Panteão romano, exibindo até uma certa preeminência sobre Júpiter, o deus supremo, Jano teria abordado a Itália com uma frota e ter-se-ia estabelecido no Lácio, onde terá fundado uma cidade que tornou dele o nome de Janículo, teria reinado sobre o Lácio e acolhido Saturno, expulso pelos deuses. Para lhe agradecer, Saturno teria dado a Jano o dom da dupla ciência, a do passado e a do futuro, mito que os Romanos manifestaram representando Jano com duas faces voltadas em sentido contrário. (SCHMIDT, 1994)
Nenhum comentário:
Postar um comentário