Cristine Gorski Severo
A concepção dialógica de língua adotada por Bakhtin implica que os sujeitos estabelecem com a língua, os interlocutores e a realidade social uma relação dialógica, ou seja, os sujeitos oferecem uma resposta aos enunciados que os interpelam a partir do confronto desses enunciados com seu horizonte valorativo. Essa relação valorativa com outros enunciados e interlocutores produz, como efeito, transformações e expansões semântico-temáticas e ideológicas. É tendo em vista o fundo aperceptivo do seu interlocutor e suas possíveis reações-respostas que os sujeitos elaboram seus enunciados: “o locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua enunciação no território de outrem, sobre o fundo aperceptivo de seu ouvinte” (BAKHTIN, 1934-35:91).
Nesta perspectiva, os enunciados estabelecem com outros enunciados relações de sentido, o que significa que não existem enunciados puros ou originais: as relações entre os enunciados colocam em choque e tensão valorações sociais, pontos de vistas, verdades, ideologias etc. Com isso, os sujeitos, ao selecionarem determinados enunciados para realizarem seu projeto discursivo, selecionam enunciados que já estão impregnados de vozes alheias, submetendo-as a um confronto com suas valorações. E as formas de incorporação dessas palavras se dão, segundo Bakhtin, de duas maneiras: uma impositiva e autoritária em que não há relação de confronto, e outra dialógica e aberta a repovoações ideológicas. Trata-se da palavra autoritária e da palavra internamente persuasiva. Estas duas formas vinculam-se (a) às maneiras pelas quais os sujeitos assimilam, digerem e tornam as palavras circulantes em palavras próprias e (b) ao processo de funcionamento das ideologias e, por tabela, as formas de produção das subjetividades. Note-se que o termo assimilação não implica uma recepção passiva, mas a forma como os enunciados alheios tornam-se enunciados próprios através de uma reacentuação da palavra “conferindo-lhe nova aura, desenvolvendo nela significados potenciais, pondo-a em diálogo com outra voz que ela pode prefigurar como sua antagonista ou distorcendo-a inteiramente” (MORSON e EMERSON, 2008:235). Note-se que o discurso interior, ao ser reacentuado, não implica um apagamento das vozes alheias, mas uma mistura e hibridação de vozes em que as fronteiras que delimitam o “nosso” e o “do outro” são tênues e nebulosas.
As palavras autoritárias e internamente persuasivas não se excluem mutuamente, mas coexistem de forma tensa e conflituosa. Sucintamente, a rigidez da palavra autoritária constitui-se sócio-historicamente e caracteriza-se por: ser impositiva, autoritária e hierárquica, dado que se vincula a situações sócio-históricas hierárquicas; definir e circular pelas esferas oficiais; espelhar as vozes religiosas, morais, científicas, políticas, dos professores, da autoridade, entre outras; aproximar-se dos tabus; ter uma configuração semântica cristalizada, amorfa e monossêmica; ser inerte e resistente às relações dialógicas e, portanto, às reacentuações e à bivocalidade.
Já a palavra internamente persuasiva habita as esferas cotidianas, marginais e informais e caracteriza-se por: não se submeter ao fechamento e à censura; não ter circulação ampla e, por isso, ser livre de coerções legais generalizantes; ser circundada por jogos e disputas semântico-ideológicas e diálogos vivos; desempenhar um papel central nas transformações sociais e ideológicas; ser maleável e aberta a ressignificações e reacentuações; estar diretamente associada às tensões da vida contemporânea e cotidiana. (BAKHTIN, 1934-35).
Estas formas de “assimilação” da palavra alheia vinculam-se aos modos de produção e de circulação dos discursos (e das ideologias) e, por tabela, aos procedimentos de controle e de distribuição desses discursos, às formas de produção das verdades (e daquilo que é excluído) e aos modos de constituição dos sujeitos enquanto inscritos em relações dialógicas com diferentes culturas, grupos sociais, estilos, línguas, enunciados, contextos sociais, etc. Interessa, tendo em vista a proposta das Rodas de 2010, refletir acerca do papel ético do diálogo (dialógico) na promoção de mudanças ideológicas, semânticas, sociais e culturais, o que se evidencia, por exemplo, nos movimentos de transformação do discurso autoritário em discurso internamente persuasivo. Para tanto, compreender a maneira pela qual a transmissão/recepção da palavra alheia se dá, parece ser um importante passo:
o objetivo da assimilação da palavra do outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem (...) a palavra de outrem (...) procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como palavra autoritária e como palavra interiormente persuasiva” (BAKHTIN, 1934-35:142; grifo do autor).
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance (1934-35). In: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. Carlos Vogt e Eni Orlandi. 4a ed. São Paulo: Unesp, 1998 [1988].p. 71-164.
MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Criação de uma prosaística Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
SEVERO, Cristine Gorski; PAULA, Adna Candido de. No mundo da linguagem: Ensaios sobre identidade, alteridade, ética, política e interdisciplinaridade. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
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