Carlos Alberto Turati
Pergunta-se o jovem angustiado:
Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? (Hamlet)[1]
Responde-lhe outro jovem atribulado:
"Se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido" (Ivã Karamazov) [2]
Observa o tristonho diabo de Florença desejoso de converter-se:
Eu não posso viver sem praticar a virtude, porém não sei como fazê-lo. [...] Não há nada mais terrível do que aspirar apaixonadamente o bem e não saber como ele é. [...] Dê-me regras ou leis.[3]
As angústias de Hamlet e Ivã não são meras expressões individuais de uma subjetividade marcada pela experiência traumática. Suas angústias se mostram antes como expressões individuais de uma sociabilidade determinada pelo conflito da condição humana: ser ao mesmo tempo de ordem natural e de ordem socialmente responsável. Há ainda a expressão do tristonho diabo que ao desejar o bem deixa de ser diabo, humaniza-se e ao humanizar-se é tomado também pelo mesmo conflito da condição humana. Esses três exemplos da bela literatura são daqueles que podemos chamar de universais ou clássicos, pois tocam finamente em pontos fundamentais do sentido da vida humana, a sua própria condição de ser. É sobre isso que quero refletir neste texto, pensar de onde vem tal angústia, em que consiste esse conflito da condição humana. Tomarei como base para minhas reflexões algumas notações de leitura da obra Para uma filosofia do Ato Responsável (Bakhtin, 2010). Incluem-se nestas notações várias manhãs de leitura compartilhada e discutida da referida obra no GEGe[4], além de boas conversas com o Miotello[5]. Espero, portanto, não ter me equivocado em minhas compreensões.
***
Só a natureza pode ser irresponsável, não no sentido de falta, mas unicamente num sentido de não necessidade. A ordem natural não carece de responsabilidade, pois nela não existe o ato, existe apenas o acontecimento imanente. O ato é propriedade do humano do homem, somente este pode agir deliberadamente, ou nos termos de Bakhtin: responsavelmente.
Ao homem não é possível a irresponsabilidade, mas somente a sua falta: a impostura. Ao esquivar-se de sua responsabilidade ética, daquilo que o torna humano, ao negar “a sua própria singularidade obrigatória”, o homem se torna um impostor (Bakhtin, 2010: 99, 109, 112). E não apenas no sentido de alguém que simula sua identidade na situação vivencial – como a pessoa que gosta de representar a si mesma onde a vida se torna um grande palco -, mas impostor também no sentido de alguém que falseia, seja para outrem ou para si próprio, sua condição de ser-evento único (ibidem: 95-96) no conjunto da vida e que busca um álibi para o existir (ibidem:96, 99-100). O homem, enquanto ser apenas do mundo natural, é um animal tanto quanto qualquer outra espécie. Mas ele não se restringe à ordem natural, sua condição humana o determina também como ser social. E aqui é preciso que se entenda social não apenas como simples (fortuita ou causal) agregação, pois isso ainda permanece como sistema natural. Tem-se de entender social no sentido de atividade de interação organizada: esse é um elemento que distingue o homem no conjunto da vida do mundo.
Para entrar na história é pouco nascer fisicamente: assim nasce o animal, mas ele não entra na história. É necessário algo como um segundo nascimento, um nascimento social. O homem não nasce como um organismo biológico abstrato, mas como fazendeiro ou camponês, burguês ou proletário: isto é o principal. Ele nasce como russo ou francês e, por último, nasce em 1800 ou 1900. Só essa localização social e histórica do homem o torna real e lhe determina o conteúdo da criação da vida e da cultura. Todas as tentativas de evitar esse segundo nascimento - o social- e deduzir tudo das premissas biológicas de existência do organismo são irremediáveis e estão condenadas ao fracasso: nenhum ato do homem integral, nenhuma formação ideológica concreta pode ser explicada e entendida sem que se incorporem as condições socioeconômicas. Além do mais, nem as questões específicas da biologia encontrarão solução definitiva sem que se leve plenamente em conta o espaço social do organismo humano em estudo. Porque "a essência humana não é o abstrato inerente ao indivíduo único. É o conjunto das relações sociais em sua efetividade" (Bakhtin, 2007: 11)
O outro elemento que também distingue o homem, determinado por sua condição humana, é a sua capacidade (única entre os seres naturais) de produzir texto ou semioses. Esses dois elementos são inseparáveis no homem, possuem uma ligação indissolúvel. Por nascer socialmente, o homem desenvolve a capacidade semiótica (interação sígnica) a partir do grupo social e essa capacidade lhe permite ao mesmo tempo sua sociabilidade. Esses dois elementos indissoluvelmente ligados é que determinam para a condição humana sua distinção no conjunto da vida: a responsabilidade.
Diferentemente dos animais, o homem não apenas reconhece (como conhecidas ou desconhecidas) as coisas do mundo. O homem tem a capacidade única de compreender e, mais que isso, de interpretar, de ir alem dos limites de uma compreensão. Por isso o ato humano é deliberado, responsável e não apenas um acontecimento imanente da ordem natural. Isso determina que a sua unificação com o mundo também seja responsável. Assim, cada indivíduo, a partir da sua singularidade, ao buscar unificar-se com o mundo, também se torna responsável pela ordem natural do meio em que vive, pois somente essa é que não carece de responsabilidade. Assim o homem unifica sua natureza e sua sociabilidade.
Um pensamento participativo é precisamente a compreensão emotivo‐volitiva do existir como evento na sua singularidade concreta, sob a base do não-álibi no existir. Isto é, é um pensamento que age e se refere a si mesmo como único ator responsável. (idem, 2010: 102)
Quanto à ordem social na condição humana, deve ser tomado em conta que a compreensão e a interpretação, embora possam ser condicionadas ou influenciadas, são atividades únicas, singulares, próprias de cada indivíduo. Isso faz da responsabilidade também propriedade singular. Além disso, há outro ponto que deve ser tomado em conta: a capacidade semiótica (compreensão, interpretação, produção textual) ao passo que é desenvolvida a partir do grupo social, implica que o ato responsável se constitui na interação. É aqui que não se pode compreender o ato humano como algo abstrato, pelo contrário, tem de se compreendê-lo como atividade concreta de um indivíduo em relações com outros indivíduos igualmente concretos, ainda que isso ultrapasse fronteiras de tempo e espaço imediatas. Isso imbui o ato humano de sua propriedade fundamental: a responsividade. Ou seja, o indivíduo, a partir da sua singularidade, além de ser o único responsável pelo seu ato, também deve responder por ele, pois o seu ato responsável, por ser deliberado, sempre se constitui na relação com o outro.
Essa relação também é sempre compreendida e interpretada e isso é de especial importância, pois dado o domínio do signo coincidir com o domínio do ideológico (Bakhtin, 2004: 31-33), pode-se dizer que a capacidade semiótica se dá a partir da atribuição de valores compartilhados. Assim, arrisco dizer que a compreensão e a interpretação estão indissoluvelmente ligadas como agir ético-estético, ainda que a inflexão da experiência encontre na sua expressão exterior uma modelagem ideológica em maior consonância a uma ou outra dessas duas “esferas” do ato.
Nenhum conteúdo seria realizado, nenhum pensamento seria realmente pensado, se não se estabelecesse um vínculo essencial entre o conteúdo e o seu tom emotivo‐volitivo, isto é, o seu valor realmente afirmado por aquele que pensa. Viver uma experiência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de modo algum, indiferente a ele, significa antes afirmá-lo de uma maneira emotivo‐volitiva (idem, 2010: 87).
Eis que finalmente podemos concluir sobre o conflito da condição humana há pouco mencionado. Por um lado temos discursos que nos dizem que a natureza do homem se opõe a sua sociabilidade, que as paixões devem ser contidas pela razão, por outro, vemos que justamente por essa sociabilidade, a singularidade do indivíduo lhe determina ser responsável tanto pelas relações que instaura como ato ético quanto pela sua natureza. Estará o conflito da condição humana então somente nas oposições: natural / social, paixão / razão? Arrisco dizer que é bem mais fácil pensar que sim, que seja isso mesmo; e assim se pode ter o álibi do inconsciente, do instinto, do vício, do desígnio e de outras formas de justificação do ato na sua falta de responsabilidade, a que Bakhtin chamará de impostura. Todavia, isso não é tudo do conflito de que falo. Esse consiste justamente na oposição: assunção da responsabilidade / impostura a partir da condição humana ao mesmo tempo natural e social.
Acho que aqui terminamos nossa digressão teórica e podemos voltar a nossas angústias: Sem imortalidade da alma, sem determinação da virtude tudo é permitido? O que é ser vil? O que é o bem? Desde que se assuma a responsabilidade pelo ato pode-se entregar a toda e qualquer vontade natural, até as mais bestiais da história humana?
Devemos nos resignar a compreender esse conflito da condição humana que se dá pela sua constituição ao mesmo tempo natural e socialmente responsável como tragédia? Ou podemos diferentemente compreender justamente aí a centelha da possibilidade ímpar de nos constituirmos a cada dia pessoas melhores do que somos?
Seria demasiada pretensão que eu quisesse dar resposta a tudo isso aqui. Na minha atividade responsível, por hora só consigo pensar que essas profundas indagações não precisam ser solucionadas, mas, sim, vivenciadas pelas coletividades que responsivelmente possam instaurar relações, e não apenas limites, que busquem, no natural e no social, o melhor ético e o mais bonito estético do humano no homem.
Referências:
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, 11° Ed – São Paulo: Hucitec, 2004.
__________ O freudismo. São Paulo, Perspectiva, 2007.
__________ Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos-SP, Pedro e João Editores, 2010.
[1] SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca.
Domínio público: file:///C|/site/LivrosGrátis/Hamlet.htm
[2] DOSTOIEVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamazov. Abril Cultural, 1970.
[3] ANDREIEV, Leônidas. A conversão do diabo. In: Maravilhas do conto russo. São Paulo, Editora Cultrix.
[4] GEGe – Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso.
[5] Valdemir Miotello. Prof. Dr. da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar e líder do GEGe.
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