Ludmila Thomé de Andrade
A ação de pesquisa
Quero me apresentar em boa companhia, sem desejar significar unanimidade. Está sempre presente neste grupo de pesquisa o desejo de escrever, imaginado como o de jogar mais uma linha, de conectar-nos em alguma comunicação possível, mas tendo em vista (e não desanimando por isto) que este gesto significará apenas um fio de voz, que canta um tom abaixo do que deveria para ser ouvido. O nosso trabalho no grupo de pesquisa é fruto da vontade de aumentar um coro, pois tenho constatado que no meio de tantas vozes no cenário atual de discussões sobre alfabetização e ensino da língua escrita na escola, os galos que têm lançado os fios dos cantos sobre a inserção na cultura escrita e o letramento em contextos da nossa sociedade brasileira têm ainda muito mais o que dizer. Precisamos engrossar o coro, pois não se disse ainda tudo que poderia ser dito, mas isto não nos desanima, ao contrário, faz-nos estar vivos sentindo-nos necessários como atores nesta história.
O que se almeja é que no final (do capítulo) da história, afinal, todos se relacionem tanto melhor com a nossa língua: aquela que nos diz. Isto equivalerá a nos relacionar de modo mais familiar com a língua escrita, que é um lugar institucional, de encontro sempre coletivo, sempre mais amplo do que o alcance da oralidade. Nossas produções orais, textos de interações in loco a ser produzidos, são conectadas diretamente, interdiscursivamente, com as escritas que as precederam e que resultarão destes momentos enunciativos. Escrevi em um outro momento de pontuação deste grupo de pesquisa:
Comunicação é responsividade e assinatura, que é responsabilidade. A responsabilidade de nossos ditos, inscritos em nosso dizer, é a cada vez uma assinatura, que em inglês coincide significantemente (pelo seu significante) com a palavra signo (sign em inglês é verbo e substantivo). Os signos ideológicos que andamos fazendo circular por aí em nossas falas, escritos, aulas, discussões. Cada palavra nossa vale, vale em todo o seu sentido. Entre nós, para outros, vamos nos marcando pelas pistas deixadas. Assinar embaixo da teoria discursiva da linguagem é considerar que tudo que se diz importa. Cada discussão, comentário, intervenção, cochicho, troca de confidência, exclamação mais espontânea, remonta ao que adotamos como coerência teórica, o pano de fundo de nossos temas.
Os gêneros primários e secundários, íntimo-familiares ou público-comunicáveis, entre nós, são o que somos. Representam-nos. Somos o que está à margem, o que sobra de nós, quando não estamos (aparentemente) controlando-nos. A Análise do Discurso esbarra na psicanálise e é ideologia. Somos o que podemos, dentro das coerções. Somos o que somos, no púlpito do conferencista ou debaixo do chuveiro, nus. O comentário cansado sobre uma aula ou uma palestra é de nossa responsabilidade. A leitura que se faz de textos infantis junto a nossos filhos à noite, para dormirem (e nós também dormimos) ou com sobrinhos é de nossa responsabilidade. As expressões mais emocionadas dos momentos de aprovação em concursos que são feitas por escolha de certas palavras (afetivas, religiosas, de baixo calão) são nossa responsabilidade. Os silêncios são nossa responsabilidade.
A esperança é de mudança política, de reverter os jogos, para que possamos ser diferentes, quando conseguirmos reverberar idéias que construímos em plena realidade da educação. Modos novos de compreender o ensino, a aprendizagem, as próprias crianças, os novos jovens, os jovens, os adultos alunos, os professores, os gestores e por aí, et allii. Novas e velhas pessoas, que venham os tempos gordos de letras, carregadas de sons, de música, de imagens! Que muitos outros tons se teçam nos outros outros, nas notas em tantos planos, nas dobras que desenham curvas e inflexões, fundos e pontos de fuga. Que os tantos desejos de escrever-nos, entendermo-nos, sejam por fim realizados ! Estes os votos.
Para realizá-los, o trabalho deste grupo de pesquisa é o de apresentar propostas, sob forma de princípios, que vêm sido discutidas há alguns anos, no coletivo que vem se formando no espaço do LEDUC, na Faculdade de Educação da UFRJ, em que estudamos questões de linguagem que supomos implicadas nas relações de educação. Desde a Educação Infantil, até a Universidade (incluindo Pós-graduação), a análise da língua merece ser o viés, o chão comum em que pisam os atores, nas cenas enunciativas. O espaço em que atuamos é este.
Quanto à forma de realizar a tarefa, é preciso pontuar que as análises que realizamos neste laboratório de pesquisas da educação não são de discursos, mas de produções de sujeitos, de discurso. Isto significa focalizar em cenas que são contextualizadas, mais especificamente, situadas como atos, de agentes-atores. Os atores atuantes, interpretantes, utilizadores da língua, são captados apenas em pleno ato, senão não interessam à pesquisa que queremos fazer. Perseguimos os atores que atuam, interpretando textos conhecidos, improvisando mais ou menos performaticamente a cada vez, produzindo assim sentidos e sujeitos. Não mergulhamos em seu cognitivo a tal ponto de deixar de lado o que se passa em seu torno, nem atemo-nos ao seu entorno sem registrar suas percepções singulares.
As falas de cada um foram sendo ditas direcionadas ao outro, para conversar entre nós, nos entendermos, a nós, entendendo o outro, cada um, todos nós formando um coletivo, que chamamos de LEDUC. No início, me lembro, delimitamos posições ocupadas: professores de anos iniciais, coordenadores de escolas, tutores de programas de formação inicial e continuada, professores universitários, substitutos, adjuntos, professores de universidades particulares, formadores, coordenadores, de programas, de escolas, alunos, técnicos de secretarias de educação... Tantas posições! Inscrições situadas, em pontos do campo da educação a ser marcados. Depois de fulcradas estas posições, encontramos duplicidades e ambigüidades entre elas, margens de interseção que obnubilavam as identidades, enriquecendo-as. Depois, caleidoscopicamente, entre elas foram se construindo exotopias em redes consteladas, trechos tecidos de relações ganhando espaços, pontas, pés. Andamos assim agora, com palavras alheias identificadas como as nossas, produzindo nossos discursos dialogicamente,
E incluimo-nos: o esforço epistemológico tem sido o de considerar dialogicamente cada ato discursivo, ou seja, o dentro, o entre, o feito. A palavra do outro está sempre em volta, de qualquer palavra. O discurso é o cardume de palavras assim em plena companhia, acompanhando-se e fazendo história: palavras de outros outros, que se reconhecem e se repetem, se despedem e se renovam, retomando-as. Ainda estão precisando ser escritos (e que sejam para ser lidos) estudos que inscrevam a linguagem juntamente com seus sujeitos dela produtores num âmbito coletivo, de instâncias públicas, nos quais caibam tons de vozes simultaneamente entoadas e não somente os textos escritos por solitários escreventes aprendentes, entre carteiras, docente e discentes.
Pouco se tem ouvido uma expectativa que apele a sentidos culturais, tanto da língua, como da criança, ou do ensino, da escola, do professor. Pouco se veem publicados (e menos ainda se leem) estudos empíricos a respeito do letramento na escola, que queiram formular e propor didáticas de ensino da língua dentro destes parâmetros, tomando a língua como discurso radicalmente social, o sistemático da língua sendo relegado ao plano mais raso, que ousam assumir uma língua que antes de ser institucional, ideológica, aquela que todos devem saber usar, faz sua história no familiar e cotidiano linguajar dos iletrados, dos marginais, dos loucos, dos pobres. Do mesmo modo, temos visto pouco investimento de pesquisa que quer propor práticas pedagógicas em que se altere a língua portuguesa por uma abertura à atividade de alunos falantes e escreventes, que assumam seu movimento de dizer que já existe, aquele que está nas feiras, nas praças, no ônibus, nas ruas.
Ao contrário, por demais têm sido ecoadas, alardeadas para ser bem ouvidas, vozes que tomam rumos bem diferentes dos que desejamos, correm soltas em uma direção que nunca se encontra com esta. São estas umas vozes presentes, que apelam à sistematização, da língua, do ensino, da escola. Elas fazem também coro entre si, ganham sua força que reina e vêm com força, numa outra palavra que apela à compreensão do tipo textual, do texto em sua coerência, de descrições e modos de se ensinar a interna coesão dos textos, a que a linguagem pode servir se bem utilizada por escreventes bem instrumentados.
Voltando à concepção defendida neste grupo, estaríamos propondo uma visão parcial se ousássemos falar de ensino da língua escrita sem atentar para as linguagens que vêm constituindo as mudanças da própria língua nos tempos que correm, de internet, de muita imagem e muitos sons, ruídos, barulhos ou músicas.
Entretanto ainda duvidamos. As concepções que adubam as práticas pedagógicas hoje têm podido incluir esta invasão semiótica, de interdiscursividades de linguagens? As concepções de linguagem que vêm sendo comunicadas em diversos programas de formação e que deveriam estar chegando ao professor, de modo mais ou menos indireto, estão interferindo nas transformações que se efetuam no ensino da língua escrita? Ou o ensino está igual a si mesmo há anos, cumprindo a tradição e avesso a qualquer mudança?
Tendo em vista estas preocupações, reconhecemos uma figura nova, inserida plenamente neste contexto, a grande responsável por muitos acontecimentos: o formador. Hoje, está situado num espaço que já foi balizado. Como a fama e a cama desta nova identidade (ainda em plena constituição) foi arrumada, hoje podemos sonhar com projetos de formação docente. Em outros tempos, não podíamos ter sonhado, pois não havia esta designação, por não haver esta função formadora de docentes. Hoje temos muitas formações por aí por este Brasil sendo traçadas, executadas, realizadas, solicitadas, vendidas etc. e consequentemente dando sua cara a tapa para ser criticadas. Há treze anos atrás, em junho 1997, escrevi um artigo intitulado “Procura-se um formador”, publicado na Revista da ALB Leitura: teoria e prática. Hoje, escrevo alguns resultados de uma pesquisa sobre a hibridização discursiva do que já se apresenta como um campo constituído da formação docente.
Sobretudo a formação continuada de profissionais da educação, ganhou consistência, no espaço entre a universidade e a escola. Muitas linhas foram traçadas, muitas pipas foram lançadas neste céu (e caídas abandonadas sobre os fios), atirados anzóis em pontas de cordéis e barbantes querendo laço, fazendo uns nós ou embolando-se perdidos. Mas também destas linhas um emaranhado foi se embolando, feito das tantas tentativas, produzindo assim um plano, de linhas bordadas costurando um chão que mesmo irregular e confuso, nele já se pode pousar. Um lençol para se embrulhar e sonhar, um novo patamar de visão, um espaço especial, que não é nem escola nem universidade, mas tornou-se efetivamente um outro plano, equilibrando-se entre os dois, provisoriamente, os fios formam a rede para deitarmos, esticada em um outro novo novo campo: a formação docente no Brasil.
É deste lugar, espaço, território, que estamos dispostos a tratar. Escolher se possível, mais especificamente, as cordas (que tecem balanços, pontes, redes, ou brinquedos de se pular ou puxar, ou ainda poderíamos pensar que são cordas vocais) da alfabetização, do ensino inicial da leitura e da escrita na escola do ensino fundamental. Esta escolha deveu-se ao fato de considerar que dentre outros espaços de formação, aí se encontra maior consistência. A alfabetização tem recebido mais atenção que outros ensinos, que a própria letra na educação infantil ou na continuação, após o ciclo inicial destinado a se alfabetizar. Por isto, ganha também mais consistência. Mais interesses para ela fluíram, imantaram-se discussões, preocupações, discordâncias, tornando-a mais rica.
Decidir escrever sobre a leitura, sobre escritores aprendentes deste Brasil, por considerar que estamos precisando de mais reflexão, de mais tentativas de entender este espaço. Mas considerar também que o ponto de observação mais adequado para esta tarefa é mesmo o da formação, situando na figura do formador, agenciadora de saberes e mediadora de linguagens. Na verdade, vice-versa. Entender a alfabetização pela formação é um bom prisma, mas tenho (temos) construído um prisma adequado para a formação por via de uma construção de uma concepção de alfabetização.
A organização dos trabalhos de pesquisa a serem escritos pautam-se em uma constelação de conceitos recolhidos, escolhidos ou construídos, e trabalhados, em um coletivo grupo de pesquisadores. Trabalhamos juntos, fazendo formação, recebendo formação, estudando, orientando-nos coletivamente para orientarmos outros professores. Muitos deles também professores, muitos também em formação, mas falamos do lugar de pesquisadores que se propõem a entender professores e sua formação e que se vêem no ato mesmo deles se entendendo como formadores, num vai e vém de discursos em plena constituição.
Terminamos inacabados, produzindo um provisório discurso que esperamos terá ecos, desdobramentos, amassadas dobras, juntando pontas e meios de modos inesperados, esperamos respostas, que sejam intensas, mais do que automáticas. Esperamos nos juntar ao campo pelotão de professores, ou pelo menos apenas àqueles que querem trabalhar por mudanças, por transformação do que não está fazendo nossos alunos leitores. Nossa fórmula anti-fórmula exige sujeitos, agentes, em atividades-eventos, que signifiquem cada momento, que sintam-se sempre inacabados. Não prometemos o sucesso, mas a felicidade da angústia, a vontade de realizar é mais importante que o resultado de sucesso. A publicação de resultados bem sucedidos significa frequentemente propaganda enganosa, impermeável ao suor do trabalho árduo.
O trabalho de se construir, cotidianamente, espontaneamente no familiar falado, encontrar as letras da língua, na gíria que se quer usar com os amigos no bate-papo mais relaxado encontrar com prazer a palavra mais erudita ou ancestral, na leitura de uma propaganda encontrar a polissemia que trai o propagandista e deixa-me mais feliz por não ser o consumidor almejado...
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