quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Breve reflexão: perspectivas ideológicas, dialógicas, éticas e estéticas numa tira de humor


Nanci Moreira Branco**/UFSCAR

“Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos” (2006a, p. 21)


     Nesse quadro de Quino[1], temos a dimensão do encontro de mundos em conflito. Os detalhes milimétricos da gravura do artista constroem o tal “mundo quadrado” de que ele nos fala e ao qual se opõe o desenho circular do filho, motivo do confronto. A bronca do pai simboliza isso, bem como o apoio “silencioso” da mãe.
     Nesse embate, revela-se o princípio geral do dialogismo que nos é apresentado por Bakhtin: “só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir-a-ser, do indivíduo e do sentido, está fundado na diferença” (Sobral, 2008, p.106). Olhar essa diferença nos faz entender a reação do pai ao desenho do filho, o qual quebra os padrões estabelecidos, bem como entender que a ação do filho é uma contrapalavra ao contexto que o cerca. E, assim, cada interlocutor avalia a situação apresentada de acordo com os valores éticos do contexto em que está inserido. Nessas ações responsivas, vemos “a avaliação responsável que o sujeito faz ao agir, com base na identidade que veio a formar e nas coerções de suas relações sociais” (idem, p. 107).
     Nós, sujeitos, quando nos deparamos com essa tira de humor, temos o nosso olhar da realidade. Além disso, percebemos o olhar do autor, que procura socializar o seu sentimento individual a fim de que este possa ser apreendido pelo seu interlocutor. Tem o autor, em ralação à sua obra, uma posição exotópica, na qual ele vê o mundo de um distanciamento para, assim, poder representá-lo na construção estética da sua obra. Dessa forma, podemos ver o mundo que o quadrinista nos apresenta: um mundo conservador que reprime as posições contrárias às suas concepções. Tal mundo desconsidera que a “pluralidade dos homens encontra seu sentido não numa multiplicação quantitativa dos ‘eus’, mas naquilo em que cada um é o complemento necessário do outro” (Todorov in Bakhtin, 2006). Afinal, somos seres dialógicos, como ressalta o poeta Manoel de Barros: A maior riqueza de um homem é a sua incompletude (Barros, 2010, p.374).
      Quem nega essa pluralidade busca a repreensão, que é a arma dos querem dominar com um discurso monológico. A construção da monovalência é representada pela própria distribuição da gravura: o quadrado toma conta do cenário e das pessoas. É este o discurso que quer abafar as diferenças e conferir “ao signo ideológico um caráter intangível”, torná-lo “monovalente” e, com isso, “valorizar a verdade de ontem” como sendo válida para sempre (Bakhtin, 2006b, p.48). É interessante ver como o menino encontra a sua forma de oposição a tal discurso monovalente. Tem razão o poeta: liberdade caça jeito[2].
     Por essa ação-responsiva do menino, também podemos ver o “mundo quadrado” como aquele que não conhecia a diferença, que ainda não tinha sido exposto a contrariedades. Por isso, a repreensão, já que essa é a reação de quem não costuma ser contrariado. É este um mundo ainda fechado ao diálogo. Talvez, pode ser a ousadia do menino a abertura para a interação das diferenças. Afinal, o autoritarismo só é combatido a partir do momento em que alguém ousa enfrentá-lo.
     Aqui estamos diante da representação da realidade e isso se dá pela lente do artista e pelo nosso excedente de visão que concebe essa representação estética. Nela, se encontram valores éticos em confronto. Assim, como dialogam nessa representação, as concepções de várias vozes: o autor, o interlocutor e os personagens ali representados e cada um com seu olhar. Isso me faz entender que a “arte me dá a possibilidade de vivenciar, em vez de uma, várias vidas, e assim enriquecer a experiência de minha vida real, comungar de dentro com outra vida em prol desta, em prol de sua significação vital” (Bakhtin, 2006a, pp.73-74). E ainda remetendo a Bakhtin
A criação estética não pode ser explicada e assimilada como imanente a uma única consciência, o acontecimento estético não pode ter apenas um participante que vivencia a vida e externa seu vivenciamento em forma artisticamente significativa, o sujeito da vida e o sujeito do ativismo estético, que enforma essa vida, por princípio não podem coincidir. Há acontecimentos que, em essência, não podem desenvolver-se no plano de uma só e única consciência com outra consciência precisamente como outra – e assim são todos os acontecimentos criativamente produtivos, que veiculam o novo, são únicos e irreversíveis. (Bakhtin, 2006a, p.79)
     Esse quadro nos dá, assim, a oportunidade de refletir a ética – esta, a reflexão da moral (regras) – e nos defrontarmos com os valores que estão inseridos em nossa sociedade. Colocamo-nos nesse lugar privilegiado da arte, onde o ético e o estético se encontram.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
____________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006b
BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
SOBRAL, A. In Brait, B. (org) Bakhtin conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.
TODOROV, T. Introdução In BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.



*Quadro disponível no site http://abrigonanet.wordpress.com/2008/10/21/quino-mundo-quadrado/, pesquisado em 19/09/2010.
** Mestranda no Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos e membro do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGE /UFSCAR
[1]  Joaquín Salvador Lavado (Quino), quadrinista argentino, autor de Mafalda, uma das mais conhecidas tiras de humor. Ver mais em http://www.quino.com.ar/portugues/quino_bio30.htm, site oficial.
[2]Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito” (Barros, 2010, p.156)

Nenhum comentário:

Postar um comentário