quarta-feira, 22 de setembro de 2010

HERMENÊUTICA DA FÉ: SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOS DISPOSITIVOS DE INTERPRETAÇÃO DO TEXTO BÍBLICO

Joabe Pereira de Freitas; Alexandre Ferreira da Costa



Hermenêutica e fé podem ser situadas, a priori, no mesmo entrecruzamento insolúvel estabelecido por Bakhtin em Para uma filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010). A fé pertenceria ao campo da eventicidade irredutível, enquanto a hermenêutica seria relativa ao discurso religioso como contexto ideológico objetivo. Uma tal relação entre fé  e hermenêutica seria, então, um entremeio do ético e do estético no ato religioso, constituindo-se pela tensão de dispositivos de interpretação nesta polaridade e nos diferentes escopos de refração das denominações religiosas cristãs. Esses dispositivos variam tanto na estabilização interdiscursiva da base textual e dos códigos de leitura do texto bíblico, como na sua mobilização em práticas e eventos religiosos.
O princípio mais rudimentar de constituição do discurso cristão é a organização do compêndio de textos sagrados, condição primeira do empreendimento hermenêutico. Seu movimento inicial, fartamente reconhecido pelos estudos teológicos, é a compilação dos manuscritos do Novo Testamento que circulavam entre as diversas igrejas derivadas dentro do cristianismo primitivo. A canonização desses textos culminará no processo de institucionalização da Igreja Católica Apostólica, configurando a primeira grande estabilização hermenêutica, produzida pela legitimação e pelo expurgo dos textos sagrados fundadores. Se este processo de seleção iniciava a formação da tradição cristã, sua tradução do grego para o latim – a Vulgata – produziria uma segunda etapa de estabilização, transferindo essa tradição helenista para o mundo latino. O terceiro grande movimento de estabilização textual só ocorreria, muito mais tarde, com o advento da Reforma Protestante no século XVI e por meio da mobilização de ambos os processos já referidos, a exclusão e a tradução. Na Reforma, tem-se a exclusão dos livros apócrifos, assim como a rejeição das versões da Vulgata e da Septuaginta[1] na tradução para as línguas vernáculas, por meio do recurso aos textos considerados originais em grego e hebraico. Finalmente, a última grande mudança dessa ordem ocorreria com o Concílio de Trento, logo após a Reforma Protestante, que recusará legitimidade a essas traduções protestantes que já circulavam no meio católico, reconhecendo apenas a tradução latina anterior – a já referida Vulgata, de Jerônimo. Novamente, seleção e tradução sobrepõem-se, sobretudo se o segundo processo for considerado como um mecanismo do primeiro. Em linhas gerais, esse seria o percurso de estabilização da base textual dos discursos cristãos fundamentais, resultando nas esferas católica e protestante; suas implicações recíprocas, no entanto, não deixarão de se multiplicar e de se reverter como veremos a seguir .
A divisão do cristianismo nestas duas esferas também foi constituída por um outro tipo de movimento hermenêutico: a estabilização de códigos de leitura. Se até o advento da Reforma Protestante a interpretação de Agostinho era hegemônica para os cristãos, os católicos, a partir do Concílio de Trento, passam a adotar o código de Tomás de Aquino, em reação à releitura de Agostinho pelos protestantes. Os principais elementos dessa cisão, que não deixarão de se refratar no desenvolvimento dos dois campos doutrinários, dizem respeito à salvação. Enquanto os protestantes vão afirmar que ela se dá apenas pela fé, os católicos vão relacioná-la à fé e às obras. Além disso, estes vão vincular a interpretação bíblica à Razão, enquanto aqueles vão reduzi-la à iluminação espiritual. A maior diferenciação hermenêutica desta etapa, no entanto, é a assunção por parte dos reformadores do sacerdócio universal: a interpretação bíblica é acessível a todo e qualquer fiel.
Na reafirmação de Agostinho, os protestantes expurgaram quase todo tipo de imagem e fetiche, recursos hermenêuticos que, curiosamente, se tornariam imprescindíveis para pentecostais e neopentecostais. Os pentecostais vão reafirmar uma leitura dita mais literal do texto bíblico, na qual as marcas da santidade devem aparecer inscritas na exterioridade da fé: o corpo do crente[2]. Os neopentecostais vão recuperar toda ordem de fetiche por meio de sua mobilização cultual permanente. São campanhas que incorporam figuras exóticas como a “fogueira santa de Israel”, a “chave da prosperidade”, “os elementos da Santíssima Trindade”, sempre materializadas em espécies de relíquias de apelo plástico. Já os católicos, por sua vez, vão incorporar a primazia da iluminação no movimento carismático.
Todo este processo de estabilização dos códigos de leitura, no entanto, foi marcado por uma herança da tradição religiosa judaica: a alegorização. A intermediação do plano figurativo dos textos sagrados já era uma demanda hermenêutica do judaísmo e continuou a sê-lo no cristianismo. Essa questão, que seria aparentemente simples ou até fútil, é na verdade do grau de complexidade que se pode encontrar no cruzamento do verdadeiro, do verídico e do verossímil. Toda e qualquer denominação cristã, em qualquer tempo, teve de encontrar um espaço para a verdade da fé de seus seguidores no equilíbrio da consideração do texto bíblico como factual e verídico ou como figurativo e verossímil. Como já foi indicado, a fé, a rigor, estaria além do factual e do figurativo, restringindo-se esses dois processos apenas a hermenêutica do discurso religioso. O conflito entre a consideração veridiccional ou verossímil da objetivação religiosa, no entanto, é fundamental para o gerenciamento dos contornos fenomenológicos da fé.
Na tradição judaica, a interpretação alegórica encontrava-se associada ao problema da tradução linguística.  Esse é o caso, por exemplo, de Esdras, o primeiro hermeneuta das escrituras (ZUCK, 1994). Sendo escriba, sua função era não só copiar, mas também ensinar o que estava escrito. Esdras voltou com os judeus da Babilônia, que já falavam o aramaico e não o hebraico, e fez-se necessário que a lei fosse traduzida de uma língua para a outra.  Dessa função deriva-se toda a tradição dos chamados parushim, que seriam os fariseus da época de Cristo: em hebraico, parash significa tornar claro, esclarecer, daí interpretar. Essa tradição judaica sofreu, mais tarde, grande influência helenística. Filo (c. 20 a.C – c. 54 d.C) é o judeu-alexandrino mais famoso e considerado o maior representante judaico dos primórdios da filosofia neoplatônica.  Ele entrou para a história por ter tentado a fusão da filosofia grega com a teologia mosaica, criando a filosofia mosaica, contemporânea do cristianismo primitivo. Portanto, ao mesmo tempo em que nascia na Judéia o cristianismo, como um movimento de crenças singelas, já se formava na Alexandria o embasamento racional de sua teologia trinitária, que se incorporaria na fé cristã três séculos depois. A inscrição definitiva do cristianismo no âmbito da filosofia grega, é isso que importa observar aqui, já configurava o quadro geral da tensão entre o objetivo e o fenomenológico que perduraria na modernidade.
É ainda na continuação do processo de helenização da tradição judaica na constituição do cristianismo, que interessa também a referência ao surgimento da hermenêutica antioquina, com destaque para João Crisóstomo. Arcebispo de Constantinopla, ele escreveu mais de seiscentas homilias que consistiam de discursos expositivos com aplicações práticas. Nessa forma de objetivação do discurso religioso, identifica-se, finalmente, a estabilização de outro dispositivo fundamental da hermenêutica cristã: os gêneros kerygmáticos[3]. A homilia e a confissão católicas resultarão em instâncias pragmáticas de interpretação das escrituras, às quais estarão associadas vivências escatológicas que dizem respeito ao exercício da fé, ao já referido contraponto fenomenológico da objetivação religiosa. Do mesmo modo, esse processo foi altamente produtivo no protestantismo, chegando a ocupar o centro do culto nas denominações históricas e quase todo ele nas pentecostais e neopentecostais. Um derradeiro exemplo desse processo, ainda, é o gênero testemunho, presente tanto nas práticas protestantes como nas católicas.
Pregação, confissão e testemunho podem ser analisados apenas como variações da instanciação pragmática da hermenêutica cristã e, nesse sentido, elementos ou dispositivos dessa hermenêutica.  Na medida em que os fiéis têm de traduzir suas questões vivenciais para o campo objetivo da religião – na escuta coletiva, na fala particular e na fala pública – amplifica-se o processo de racionalização por meio da mobilização do discurso canônico.
Por outro lado, como já indicamos, podem ser modos de exercício da fé cuja densidade não resida num campo de sentidos objetivos da religião, mas exatamente na extrapolação disso. Retornaríamos então à assunção das implicações catárticas do princípio da iluminação como sentido fundamental da prática religiosa, fator a ser considerado pelo menos em relação às práticas protestantes neopentecostais e católicas carismáticas.
O exemplo mais atávico desta tensão entre o fenomenológico e o objetivo, entre fé e hermenêutica, é a glossolalia. A extrapolação do sentido objetivo do discurso religioso, configura-se neste caso por um movimento que poderia ser chamado de “destradução”, em referência aos processos hermenêuticos de constituição do cânone textual cristão. Ao se expressar em “línguas estranhas”, de objetivação inacessível, o fiel recobre de sentido fenomenológico o discurso religioso.




Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
FEE, Gordon D. e STUART, Douglas. Entendes o que Lês? Um meio de entender a Bíblia com o auxilio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984.
ZUCK, Roy B. A interpretação Bíblica – Meios de descobrir a verdade da Bíblia.  Trad. Carlos de F. A. Bueno vieira. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994.




[1] A Septuaginta, também chamada de Versão dos Setenta, é uma tradução do texto hebraico para o grego feita no século II a.C.
[2] Dentre essas marcas incluem-se detalhes como o tipo de vestimenta, o corte de cabelo e os adereços, todos relativos a uma formalização estética de seu compromisso ético.
[3] Kerygma significa “pregação” e era o primeiro dos três sacramentos da igreja primitiva.

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