terça-feira, 21 de setembro de 2010

ESTÉTICA E ÉTICA BAKHTINIANA NA (FALSA) IMPARCIALIDADE JORNALISTICA


ESTÉTICA E ÉTICA BAKHTINIANA NA (FALSA) IMPARCIALIDADE JORNALISTICA

Welington da Costa Pinheiro
Luiz Carlos Neves da Fonseca
(Universidade Federal do Pará)

   
Na área das ciências da linguagem, os estudos bakhtinianos tornaram-se importantes por contribuírem para mostrar toda a complexidade que subjaz o processo de comunicação, desconstruindo os esquemas que concebiam a linguagem como um processo simplificado em que somente um indivíduo (emissor) é tido como relevando no ato de se comunicar. Ao ouvinte cabia apenas receber uma mensagem, sendo mero coadjuvante nessa relação unidirecional.
Bakhtin (1997) propôs, assim, uma concepção de comunicação em que falante e ouvinte participam de forma conjunta para a construção de sentido. Isto é, o indivíduo não ouve o que lhe é dito passivamente, mas sim assume uma postura no ato da interação comunicativa, a qual é denominada de compreensão responsiva ativa.
Dessa postura assumida pelo ouvinte, depreende-se um dos conceitos mais caros da obra bakhtiniana: o dialogismo, que é concebido como princípio constitutivo da linguagem. E que se estabelece a partir da interação dos sujeitos envolvidos no processo de comunicação – eu e o Outro/ eu e os Outros, o que possibilita compreender a linguagem como ideológica, histórica e social, que é construída pelo entrelaçamento de várias vozes discursivas. A noção de dialogismo é um dos pilares de vários escritos bakhtinianos, entender esse conceito permite a compreensão de grande parte das temáticas discutidas por Bakhtin, dentre estas a ideia de estética e ética. 
De acordo com os escritos bakhtinianos, o momento primeiro da atividade estética consiste na identificação do sujeito com o Outro, em outras palavras, na ação de perceber o mundo por meio do conjunto de valores deste. O Outro na perspectiva bakhtiniana, então, contribui para que o sujeito se reconheça e se situe no mundo que está em sua volta. Para Bakhtin (1992, p. 46),

Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. Quando tenho diante de mim um homem que está sofrendo, o horizonte da sua consciência se enche com o que lhe causa a dor e com o que ele tem diante dos olhos; o tom emotivo-volitivo que impregna esse mundo das coisas é o da dor. Meu ato estético consiste em vivenciá-lo e proporcionar-lhe o acabamento (os atos éticos — ajudar, socorrer, consolar — não estão em questão aqui).

Toda atividade estética em Bakhtin, portanto, é dialógica, uma vez que envolve uma relação entre consciências e é pensada e elaborada para dizer algo a alguém que vai apreciá-la.  A estética, deste modo, consiste na percepção do Outro, no olhar do Outro a partir de uma posição externa de um sujeito a respeito de determinado objeto, com a finalidade de dar-lhe acabamento. Nesse sentido, pode-se depreender que

A atividade estética propriamente dita começa justamente quando estamos de volta a nos mesmos, quando estamos no nosso próprio lugar, fora da pessoa que sofre, quando damos forma e acabamento ao material recolhido mediante a nossa identificação com o outro, quando o completamos com o que é transcendente à consciência que a pessoa que sofre tem do mundo das coisas, um mundo que desde então se dota de uma nova função, não mais de informação, mas de acabamento: a postura do corpo que nos transmitia a sua dor tornou-se um valor puramente plástico, uma expressão que encarna e acaba a dor expressa e num tom emotivo-volitivo que já não é o da dor; o céu azul que o emoldura tornou-se um componente pictural que traz solução à dor. (BAKHTIN, 1992, p.47).
O conceito de estética concebido pela teoria bakhtiniana vai além da percepção exclusivamente artística, sendo aplicado em vários contextos da atividade humana. Mas do que a ação de contemplar, a estética assume uma dimensão de responsabilidade do sujeito, ou seja, perpassa por entender o dever do “eu” com relação ao objeto estético, “[...] isto é, compreendê-lo em relação a mim mesmo no Ser-evento único, e isso pressupõem minha participação responsável, e não uma abstração de si mesmo.” (BAKHTIN, 1993, p.35).  
            Ao tratar de ética, Bakhtin entende o viver humano como repleto de atos indissociáveis da dimensão do ético, visto que ao agir o sujeito torna-se responsável por aquilo que ele fez ou deixou de fazer. Desta maneira, pode-se observar que todo discurso é respondível, partindo do princípio dialógico do discurso, o sujeito, então, ao se utilizar da linguagem assume uma responsabilidade ao falar e/ou ouvir, compromete-se com o que é enunciado. Sobral (2008, p. 231) afirma que “Para Bakhtin, ser ‘responsível’ supõe mostrar-se diante do outro como alguém que assume necessariamente a responsabilidade por aquilo que fala/faz, e nesse plano o sujeito “assina” aquilo que diz/faz.”
            Desse modo, compreende-se que agir de forma ética, com base na concepção bakhtiniana, significa assumir atitudes de forma responsável pelo que se faz, por mais simples que seja a ação. É assumir a responsabilidade com e para o Outro em prol de um bem coletivo, comprometer-se de forma ativa enquanto sujeito participante e presente no mundo, pois

Cada pensamento meu, junto com o seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo – meu próprio ato ou ação individualmente responsável [postupok]. É um de todos aqueles atos que fazem da minha vida única inteira um realizar ininterrupto de atos [postuplenier]. Porque minha vida inteira como um todo pode ser considerado um complexo ato ou ação singular que eu realizo: eu realizo, Isto é, executo atos com toda a minha vida, e cada ato particular e experiência vivida é um momento constituinte da minha vida da continua - realização de atos [postuplenier]. (BAKHTIN, 1993, p.21).

            Para exemplificar a aplicação dos conceitos acima discutidos, optou-se por selecionar um exemplar do gênero jornalístico reportagem impressa, um dos gêneros discursivos mais conhecidos pelo grande público, tornando a posição social do jornalista que o elabora relevante enquanto agente responsável por aquilo que enuncia. É situado como pertencente à esfera dos gêneros informativos (MELO, 1995), logo, uma produção teoricamente imparcial. No entanto, ao produzir uma reportagem o autor assume a responsabilidade ética de um sujeito que age pela linguagem, já que é quase impossível apresentar um fato desconsiderando a consciência crítica, as crenças, o conhecimento de mundo, pois como afirma Charadeau (2006), todo e qualquer procedimento de análise exige tomada de decisões.  
            Partindo de uma abordagem estética, nota-se que as reportagens são elaboras a partir de muitos recursos visuais que chamam e prendem a atenção do leitor. As imagens, as gravuras, as cores e as letras não são meramente ilustrativas, são intencionalmente escolhidas para dialogar com o conteúdo abordado de forma a contribuir para o estabelecimento de sentido, despertando no leitor as mais variadas percepções estéticas.
A reportagem selecionada para subsidiar as análises aqui realizadas tem a autoria de Laura Diniz e Leonardo Coutinho e foi publicada no dia 25 de março, do ano de 2009, pela revista de circulação nacional Veja. Sua seleção reside no fato de apresentar evidências implícitas e explícitas em vários momentos que revelam o comprometimento ético/estético dos autores a respeito da temática do abuso sexual de crianças e adolescentes, por meio de estratégias verbais e não-verbais que corroboram para influenciar o ponto de vista dos leitores a favor do bem coletivo.  
A partir da ótica do Código Penal Brasileiro[1], crimes contra crianças e adolescentes são considerados crimes sexuais contra vulneráveis, atos como estupro de vulnerável (conjunção carnal ou a prática de atos libidinosos), corrupção de menores (indução de um menor a satisfazer a concupiscência de outrem) e exploração sexual (indução, facilitação ou atração à prostituição ou qualquer modalidade de exploração sexual), são tidos como práticas que prejudicam física e/ou moralmente crianças e adolescentes, divergindo dos princípios legais, éticos e morais da sociedade. 
Iniciando as análises pelo enunciado do título: “FERIDAS E VIOLADAS. DENTRO DE CASA”, da referida reportagem, já se verifica indícios bem evidentes da posição contrária dos autores perante o abuso de crianças, pois consideram que isso acarreta danos, fere e viola os indivíduos que vivenciaram essa experiência.
Tal posicionamento é reforçado no subtítulo “A maioria dos molestadores sexuais de crianças tem a confiança das vítimas: são seus pais, padrastos ou parentes.” (p. 87), em que os termos “maioria”, “molestadores”, “confiança”, “pais”, “padrastos”, “parentes”, imprimem um sentido de horror e gravidade, porque evidencia que o ambiente no qual as crianças deveriam ter segurança, tornou-se perigoso para muitas delas.
A imagem que acompanha o título e o subtítulo contribui para o Outro perceber a gravidade do tema, ao mostrar uma boneca, que simboliza a infância, o brincar e a ingenuidade, sem vestes, sentada, acuada, com as mãos na face como se estivesse com medo e/ou chorando. Construindo uma representação imagética com a capacidade de assustar e comover em face de toda a representação habitual que se tem desse objeto na sociedade.


                     
                                                                                        

                                                                        
Nota-se desde o primeiro parágrafo da reportagem, assim como no seu transcorrer, por meio de palavras e expressões fortes na acepção semântica do termo, marcas explícitas do posicionamento repulsivo por parte dos autores com relação ao abuso de menores, quando, por exemplo, denominam de “abjeto” o abuso sexual de crianças, ao  utilizarem da expressão “Para nosso horror” ao mencionar que tal prática é mais comum do que se pensa (p. 82), ao classificar os pedófilos como “os predadores” e “agressores” e a ação destes como “hábitos monstruosos” (p. 83), “desejos bestiais” e “uma vergonha” (p. 84).
Na reportagem, várias são as vozes trazidas para o texto, como forma de fundamentar o posicionamento de indignação dos jornalistas, entre as quais se pode destacar a presença de relatos de sujeitos que vivenciaram na pele abusos sexuais; são falas que ecoam sofrimento, traumas, impotência e revolta, contribuindo para trazer maior veracidade para a reportagem, como se pode notar no trecho  a seguir, que mostra uma figura pública, a conhecida nadadora Joana Maranhão assumindo sua experiência traumática:

Lembro do cheiro do protetor solar que ele usava. Não suporto senti-lo até hoje. Eu tinha 9 anos e treinava natação com ele. Ele passava a mão e o pênis no meu corpo, depois tremia, e eu achava que estava nervoso – não sabia que era uma ejaculação. Demorei a entender o que tinha acontecido, mas aquilo me afetou de várias maneiras (...). Tive síndrome do pânico, tomo antidepressivos e tenho medo do escuro até hoje, porque em uma das vezes ele me molestou num quarto escuro. No ano passado, quando o reencontrei no fórum, senti um medo tão grande que não conseguia parar de chorar. Se eu dissesse que é um assunto resolvido, estaria mentindo. Acho que nunca vou superar. É como se fosse uma cicatriz na minha alma. Joana Maranhão, 21 anos, nadadora (Recife-PE). (VEJA, 2009, p.84)

Percebe-se, ainda, que os jornalistas trazem para o texto exemplos concretos de situações que envolvem essa temática. Dentre os presentes nessa reportagem, chama atenção que os autores procuram evidenciar o crime contra menores como algo presente em vários contextos sociais, seja em comunidades ribeirinhas da Amazônia como é citado, seja em grandes cidades como é expresso no fragmento abaixo. Convém ressaltar que o trecho a seguir já inicia com o juízo de valor por partes dos autores

Vergonha é também a palavra exata para definir o que aconteceu em Catanduva, em São Paulo, o estado mais desenvolvido da federação. Em dezembro passado, a polícia e o Ministério Público da cidade receberam denúncias de mães afirmando que seus filhos foram abusados pelo borracheiro José Barra Nova de Mello, de 46 anos, conhecido como Zé da Pipa. As crianças ouvidas pela polícia relataram que eram obrigadas a assistir a filmes pornográficos e vê-lo nu. Algumas sofreram abusos corporais. (VEJA, 2009: 84-85). [Grifo nosso]

 A reportagem apresenta, também, enquanto exemplo um fato que causou grande repercussão nacional, no qual uma menina de 9 anos foi molestada pelo padrasto, ficando grávida de gêmeos e que foi autorizada pela mãe a ser submetida a um aborto. A imagem que foi selecionada para ilustrar esse crime é capaz de provocar no Outro a sensação de perplexidade ao mostrar um sujeito frágil, de corpo pequeno, amparado por um adulto, trajando vestimentas simples e infantis e de característica tão “diminuta” (p.83) como é descrito na legenda da imagem, o que pode comover, chocar, sensibilizar, assustar o leitor perante essa problemática.  


Por fim, vale destacar que os autores no final da reportagem procuraram inserir desenhos feitos por crianças que sofreram abusos, contribuindo para criar uma percepção imagética com o poder de provocar nos leitores sensações ruins, pois são desenhos de traços mal acabados, rabiscados, sem cor, monótonos, bem diferente dos desenhos infantis costumeiros, o que pode expressar tristeza, dor e sofrimento, como se pode constatar no exemplar abaixo:


A partir da breve análise dessa reportagem, pôde-se observar que embora teoricamente se conceba a instância jornalística como neutra, dificilmente, seja de forma velada ou não, o jornalista deixa de se “mostrar” conforme suas concepções éticas, “assinando” responsivamente as informações veiculadas para o grande público, visto que os textos jornalísticos são elaborados esteticamente para dialogar com os Outros. Neste sentido, convém salientar que assim como os gêneros jornalísticos podem ser eticamente importantes para o bem da sociedade, alertando, informando, esclarecendo e conscientizando, como foi o caso da reportagem discutida acima, pode assumir uma dimensão negativa, tendenciosa e manipuladora, já que a esfera jornalística não é totalmente imparcial. Por isso, é essencial na sociedade contemporânea, na qual as informações eclodem quase que de forma instantânea, saber interagir com esses textos de forma consciente e crítica, não os tomando como verdades absolutas e inquestionáveis.


Referências:

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.
___________________. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

___________________Para uma filosofa do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza de Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.


CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. Trad. Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006.

DINIZ, L; COUTINHO, L. Feridas e violadas. Dentro de casa. Veja. São Paulo: Abril. Ed. 2105, p. 82-88, Mar. 2009.

 MELO, J. M. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1995.

SOBRAL, A. O Ato “Responsível”, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente. Signum: Estudos Linguisticos, Londrina, n. 11/1, p. 219-235, jul. 2008.




[1] Disponível em http://www.codigopenal.adv.br/

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