segunda-feira, 20 de setembro de 2010

MÚSICA EM (DIS)CURSO: INVESTIGAÇÕES ACERCA DA GERAÇÃO COCA-COLA


Bruna Sant' Anna

O presente texto possui a canção como objeto de estudo e pretende estudá-la e abordá-la fundamentado na análise dialógica do discurso, calcado no Círculo de Bakhtin (especificamente, nas concepções de interdiscursividade e intertextualidade). Pretende-se desenvolver uma pesquisa sobre as bandas do circuito de Brasília, especialmente aquelas surgidas no final da década de 80, influenciadas pelo grupo Aborto Elétrico. O foco do estudo está nas bandas Capital Inicial, Plebe Rude e Legião Urbana, sendo, a última, o centro da pesquisa. O corpus constitui-se pelas canções “Geração Coca-Cola” (1985) e “Música Urbana 2” (1986). Essas canções serão ilustrativas do processo composicional dialógico do rock brasileiro, razão pela qual foram escolhidas: ambas são canções importantes da gênese do movimento “Rock Brasil”. O “BRock”[1] da “Geração Coca Cola”, nascido em Brasília, na década de 80. A partir de então, o rock tornou-se um fenômeno de massa e gerou lucro para as gravadoras. Com ele, a concepção de canção, de produção da música brasileira e de show (como espetáculo grandioso) modificou-se.
O rock brasileiro foi sendo desenhado sob a pele contraditória da ambivalência existente entre a seriedade amadora de jovens burgueses que, com os gritos pesados de suas guitarras e com suas posturas despachadas no palco, manifestavam a contradição de um “país com o nó na garganta” (PAULA, 2003). O desejo de liberdade de expressão comunicativa, projetado na mistura entre grito da guitarra e temas adolescentes[2] foi a voz da “Geração Coca Cola”. Esta geração representa a manifestação de revolta e comemoração macunaímica de liberdade. Sabemos que desde a Tropicália, e especialmente com o rock, a produção de canções passou a ser coletiva (interdiscursiva e intertextual).  Esta afirmativa se fundamenta no fato de que as canções eram compostas em grupo, redigidas por vários compositores e cantadas por várias bandas, o que se revela nitidamente no Aborto Elétrico.
Este estudo se justifica porque busca, por meio das análises propostas, a compreensão parcial da concepção de autoria coletiva não só da Legião Urbana, mas de toda uma geração do rock brasileiro, a “Geração Coca Cola”.
Para delimitar o corpus da pesquisa, partiu-se da obra completa da banda Legião Urbana e, como os objetivos da pesquisa se referem à análise da constituição da composição autoral dialógica do rock brasileiro, desde sua gênese, optou-se, neste estudo, por trabalhar com duas canções do início da carreira da Legião (dos dois primeiros discos, respectivamente, Legião Urbana (1985) e Dois (1986) – como já dito, não que outras canções, de outros álbuns não serão consideradas, mas “Geração Coca Cola” e “Música Urbana” serão o norte desta pesquisa[3].
Este estudo utiliza a teoria dialógica de Bakhtin como guia condutor. O dialogismo é o núcleo dos estudos bakhtinianos e ele se prende, tornando-se então dependente, às noções de interdiscursividade e intertextualidade.
Bakhtin considera que em uma relação dialógica há sempre um embate de ideologias, estabelecido por meio da relação de alteridade, pois “as pessoas não ‘aceitam’ uma língua; em vez disso, é através da linguagem que elas se tornam conscientes e começam a agir sobre o mundo, com e contra os outros.” (Bakhtin, 1997:47). A relação de alteridade pode ser entendida quando pensamos que o eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo de autocompreensão só se pode realizar através da alteridade, ou seja, pela aceitação e percepção dos valores do outro.
Ao nos apresentar a natureza dialógica do discurso, o filósofo russo diz que “qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores, originando um diálogo social e funcionando como parte dele” (Bakhtin, 1997: 76). Em um sentido mais amplo, podemos dizer que em uma situação de dialogismo o texto joga com diferenças e ainda com “todos os seus outros: autor, intertexto, interlocutores reais e imaginários e o contexto comunicativo”.
Dialogismo é uma noção diretamente ligada à idéia de relação. É relação porque em um diálogo há a relação entre o enunciado e outros enunciados e “qualquer enunciado (...) tem seus outros (enunciados) e só existe em relação ao contexto de outros enunciados” (parênteses nossos) (Bakhtin, 1997:83). Para Bakhtin, existe um movimento dialógico da enunciação, que constitui o espaço comum entre locutor e interlocutor. O locutor enuncia em função da existência de um interlocutor que, por sua vez, pratica uma atitude responsiva antecipando o que o outro vai dizer, ou seja, projetando o lugar de seu ouvinte. Quando recebemos uma enunciação, ela nos exige uma resposta. Isso significa que a enunciação apenas pode ser compreendida se a colocarmos em movimento dialógico dos enunciados, estabelecendo um confronto tanto com nossos dizeres quanto com os dizeres do outro. Com isso, fala-se em duplicidade do dialogismo, pois todo discurso constitui-se como uma antecipação compreensiva fornecida pelo outro participante da interlocução, mas também um outro, o terceiro, que fala no sujeito. Bakhtin considera que todo discurso humano é constituído de uma rede complexa de interrelações dialógicas com outros enunciados. O dialogismo é o diálogo constante existente entre discursos. Por meio do dialogismo, relações entre o eu e o outro são estabelecidas no discurso. Os textos (verbais ou não verbais) podem ser considerados elementos dialógicos, pois neles encontramos o embate de várias vozes sociais que interagem entre si. Discursos são dialógicos porque são marcados pela preocupação com o outro, aquele que interage na interlocução, além de serem concebidos em um espaço de interação com o outro, construído por meio dessa mesma interação.
Em “Interdiscursividade e intertextualidade”, Fiorin (2006:15) diz que quando Bakhtin se refere ao dialogismo, o filósofo russo está se referindo ao interdiscurso de outra maneira. Desse modo, Fiorin explicita que o dialogismo ocorre “sempre entre discursos”, isto é, entre sujeitos, pois “o interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo se dá sempre entre discursos”. De forma mais abrangente, pode-se dizer que o dialogismo é relação porque é engendrado por uma relação (de sentido) estabelecida entre sujeitos e enunciados. O enunciado é uma reação (réplica) ao diálogo e por essa razão possui acabamento específico.
A noção de relação se faz quando tratamos de dialogismo, pois o sujeito pronuncia (isto é, executa a ação de pronunciação) seu discurso e o outro, com quem ele dialoga, re-age à ação enunciadora do sujeito. Assim, o dialogismo é cíclico porque o sujeito discursa, o outro reage a esse discurso e essa relação é uma interação social sucessiva. Dialogismo é, portanto, relação entre discursos construídos por sujeitos sociais, projetos nos discursos. O enunciado é constituído, portanto, de um todo de sentido e, em virtude disso é que ele permite resposta. As respostas são (re)ações que ocorrem em uma situação (relação) dialógica, o que significa que se referem aos sujeitos envolvidos não tendo, portanto, significação e sim sentido. Assim, pode-se dizer que aquilo o que Bakhtin denomina enunciado é o que chamamos de discurso.
A dialogia é preenchida por interdiscursividade e intertextualidade, pois segundo Fiorin (2006:181)
“Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre enunciados e aquelas que se dão entre textos. Por isso, chamaremos qualquer relação dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, interdiscursiva. O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o contrário não é verdadeiro.”

Em vista do exposto, pode-se dizer que Bakhtin diferencia texto de enunciado. Enunciado se aproxima àquilo o que chamamos de interdiscurso, pois ele se constitui de relações dialógicas. Texto é a manifestação do enunciado, ou seja, é a realidade que o leitor recebe ao lê-lo. Assim, a interdiscursividade é qualquer relação dialógica entre enunciados, enquanto a intertextualidade é um tipo específico de interdiscursividade. A intertextualidade é encontrada em um texto e nela há, pelo menos, duas materialidades textuais distintas. A materialidade textual é um texto no sentido propriamente dito ou um conjunto de fatos linguísticos.

REFERÊNCIAS
DAPIEVE, Arthur. BRock – o rock brasieliro. Rio de Janeiro, 34, 2000.
FIORIN, José Luiz. “Interdiscursividade e intertextualidade”. In BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin – outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
MARCHETTI, Paulo. O Diário da Turma – 1976 – 1986. Rio de Janeiro: Conrad, 2000.
MARCHEZAN, Renata Maria Facuri Coelho. “Diálogo”. In BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin – Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2006.
PAULA, Luciane de. “‘Tudo vale a pena’ entre a canção e a literatura”. São Paulo: ABRALIC, 2007. Disponível em <www.abralic.com.br>
___. Ao Encontro do (En) Canto dos Paralamas do Sucesso. Dissertação de mestrado. UNESP-CAr, 2002.
___. “Com o país na garganta”. Entrevista publicada no Jornal da UNESP. São Paulo: UNESP, 2003.
RUSSO, Renato. O trovador solitário. Rio de Janeiro: EMI-Microservice LTDA, 1982.
Anexo 1 – Letras das canções que constituem o corpus deste estudo.

Geração Coca-cola

Composição: Renato Russo / Fê Lemos

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis.

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola

Depois de 20 anos na escola
Não é dificil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola

 

Música Urbana 2

Composição: Renato Russo

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã -
É só música urbana.

Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repertir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.

O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana.
E a matilha de crianças sujas no meio da rua -
Música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.

Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.

E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
Yeah, Música urbana.
Oh Ohoo, Música urbana.




[1] A expressão “BRock” foi usada a primeira vez por DAPIEVE (2000) e significa “Rock Brasil”, referente ao movimento denominado como “rock brazuca” (mistura de BRrasil com bazuca – arma de fogo).
[2] Os adolescentes eram os pequenos burgueses, cujos temas de interesse envolviam dramas familiares, questões amorosas, além de críticas sociais severas.

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