Bruna Sant' Anna |
O presente texto possui a canção como objeto de estudo e pretende estudá-la e abordá-la fundamentado na análise dialógica do discurso, calcado no Círculo de Bakhtin (especificamente, nas concepções de interdiscursividade e intertextualidade). Pretende-se desenvolver uma pesquisa sobre as bandas do circuito de Brasília, especialmente aquelas surgidas no final da década de 80, influenciadas pelo grupo Aborto Elétrico. O foco do estudo está nas bandas Capital Inicial, Plebe Rude e Legião Urbana, sendo, a última, o centro da pesquisa. O corpus constitui-se pelas canções “Geração Coca-Cola” (1985) e “Música Urbana 2” (1986). Essas canções serão ilustrativas do processo composicional dialógico do rock brasileiro, razão pela qual foram escolhidas: ambas são canções importantes da gênese do movimento “Rock Brasil”. O “BRock”[1] da “Geração Coca Cola”, nascido em Brasília, na década de 80. A partir de então, o rock tornou-se um fenômeno de massa e gerou lucro para as gravadoras. Com ele, a concepção de canção, de produção da música brasileira e de show (como espetáculo grandioso) modificou-se.
O rock brasileiro foi sendo desenhado sob a pele contraditória da ambivalência existente entre a seriedade amadora de jovens burgueses que, com os gritos pesados de suas guitarras e com suas posturas despachadas no palco, manifestavam a contradição de um “país com o nó na garganta” (PAULA, 2003). O desejo de liberdade de expressão comunicativa, projetado na mistura entre grito da guitarra e temas adolescentes[2] foi a voz da “Geração Coca Cola”. Esta geração representa a manifestação de revolta e comemoração macunaímica de liberdade. Sabemos que desde a Tropicália, e especialmente com o rock, a produção de canções passou a ser coletiva (interdiscursiva e intertextual). Esta afirmativa se fundamenta no fato de que as canções eram compostas em grupo, redigidas por vários compositores e cantadas por várias bandas, o que se revela nitidamente no Aborto Elétrico.
Este estudo se justifica porque busca, por meio das análises propostas, a compreensão parcial da concepção de autoria coletiva não só da Legião Urbana, mas de toda uma geração do rock brasileiro, a “Geração Coca Cola”.
Para delimitar o corpus da pesquisa, partiu-se da obra completa da banda Legião Urbana e, como os objetivos da pesquisa se referem à análise da constituição da composição autoral dialógica do rock brasileiro, desde sua gênese, optou-se, neste estudo, por trabalhar com duas canções do início da carreira da Legião (dos dois primeiros discos, respectivamente, Legião Urbana (1985) e Dois (1986) – como já dito, não que outras canções, de outros álbuns não serão consideradas, mas “Geração Coca Cola” e “Música Urbana” serão o norte desta pesquisa[3].
Este estudo utiliza a teoria dialógica de Bakhtin como guia condutor. O dialogismo é o núcleo dos estudos bakhtinianos e ele se prende, tornando-se então dependente, às noções de interdiscursividade e intertextualidade.
Bakhtin considera que em uma relação dialógica há sempre um embate de ideologias, estabelecido por meio da relação de alteridade, pois “as pessoas não ‘aceitam’ uma língua; em vez disso, é através da linguagem que elas se tornam conscientes e começam a agir sobre o mundo, com e contra os outros.” (Bakhtin, 1997:47). A relação de alteridade pode ser entendida quando pensamos que o eu só existe em diálogo com os outros, sem os quais não se poderá definir. O processo de autocompreensão só se pode realizar através da alteridade, ou seja, pela aceitação e percepção dos valores do outro.
Ao nos apresentar a natureza dialógica do discurso, o filósofo russo diz que “qualquer desempenho verbal inevitavelmente se orienta por outros desempenhos anteriores na mesma esfera, tanto do mesmo autor como de outros autores, originando um diálogo social e funcionando como parte dele” (Bakhtin, 1997: 76). Em um sentido mais amplo, podemos dizer que em uma situação de dialogismo o texto joga com diferenças e ainda com “todos os seus outros: autor, intertexto, interlocutores reais e imaginários e o contexto comunicativo”.
Dialogismo é uma noção diretamente ligada à idéia de relação. É relação porque em um diálogo há a relação entre o enunciado e outros enunciados e “qualquer enunciado (...) tem seus outros (enunciados) e só existe em relação ao contexto de outros enunciados” (parênteses nossos) (Bakhtin, 1997:83). Para Bakhtin, existe um movimento dialógico da enunciação, que constitui o espaço comum entre locutor e interlocutor. O locutor enuncia em função da existência de um interlocutor que, por sua vez, pratica uma atitude responsiva antecipando o que o outro vai dizer, ou seja, projetando o lugar de seu ouvinte. Quando recebemos uma enunciação, ela nos exige uma resposta. Isso significa que a enunciação apenas pode ser compreendida se a colocarmos em movimento dialógico dos enunciados, estabelecendo um confronto tanto com nossos dizeres quanto com os dizeres do outro. Com isso, fala-se em duplicidade do dialogismo, pois todo discurso constitui-se como uma antecipação compreensiva fornecida pelo outro participante da interlocução, mas também um outro, o terceiro, que fala no sujeito. Bakhtin considera que todo discurso humano é constituído de uma rede complexa de interrelações dialógicas com outros enunciados. O dialogismo é o diálogo constante existente entre discursos. Por meio do dialogismo, relações entre o eu e o outro são estabelecidas no discurso. Os textos (verbais ou não verbais) podem ser considerados elementos dialógicos, pois neles encontramos o embate de várias vozes sociais que interagem entre si. Discursos são dialógicos porque são marcados pela preocupação com o outro, aquele que interage na interlocução, além de serem concebidos em um espaço de interação com o outro, construído por meio dessa mesma interação.
Em “Interdiscursividade e intertextualidade”, Fiorin (2006:15) diz que quando Bakhtin se refere ao dialogismo, o filósofo russo está se referindo ao interdiscurso de outra maneira. Desse modo, Fiorin explicita que o dialogismo ocorre “sempre entre discursos”, isto é, entre sujeitos, pois “o interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo se dá sempre entre discursos”. De forma mais abrangente, pode-se dizer que o dialogismo é relação porque é engendrado por uma relação (de sentido) estabelecida entre sujeitos e enunciados. O enunciado é uma reação (réplica) ao diálogo e por essa razão possui acabamento específico.
A noção de relação se faz quando tratamos de dialogismo, pois o sujeito pronuncia (isto é, executa a ação de pronunciação) seu discurso e o outro, com quem ele dialoga, re-age à ação enunciadora do sujeito. Assim, o dialogismo é cíclico porque o sujeito discursa, o outro reage a esse discurso e essa relação é uma interação social sucessiva. Dialogismo é, portanto, relação entre discursos construídos por sujeitos sociais, projetos nos discursos. O enunciado é constituído, portanto, de um todo de sentido e, em virtude disso é que ele permite resposta. As respostas são (re)ações que ocorrem em uma situação (relação) dialógica, o que significa que se referem aos sujeitos envolvidos não tendo, portanto, significação e sim sentido. Assim, pode-se dizer que aquilo o que Bakhtin denomina enunciado é o que chamamos de discurso.
A dialogia é preenchida por interdiscursividade e intertextualidade, pois segundo Fiorin (2006:181)
“Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre enunciados e aquelas que se dão entre textos. Por isso, chamaremos qualquer relação dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, interdiscursiva. O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o contrário não é verdadeiro.”
Em vista do exposto, pode-se dizer que Bakhtin diferencia texto de enunciado. Enunciado se aproxima àquilo o que chamamos de interdiscurso, pois ele se constitui de relações dialógicas. Texto é a manifestação do enunciado, ou seja, é a realidade que o leitor recebe ao lê-lo. Assim, a interdiscursividade é qualquer relação dialógica entre enunciados, enquanto a intertextualidade é um tipo específico de interdiscursividade. A intertextualidade é encontrada em um texto e nela há, pelo menos, duas materialidades textuais distintas. A materialidade textual é um texto no sentido propriamente dito ou um conjunto de fatos linguísticos.
REFERÊNCIAS
DAPIEVE, Arthur. BRock – o rock brasieliro. Rio de Janeiro, 34, 2000.
FIORIN, José Luiz. “Interdiscursividade e intertextualidade”. In BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin – outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
MARCHETTI, Paulo. O Diário da Turma – 1976 – 1986. Rio de Janeiro: Conrad, 2000.
MARCHEZAN, Renata Maria Facuri Coelho. “Diálogo”. In BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin – Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2006.
PAULA, Luciane de. “‘Tudo vale a pena’ entre a canção e a literatura”. São Paulo: ABRALIC, 2007. Disponível em <www.abralic.com.br>
___. Ao Encontro do (En) Canto dos Paralamas do Sucesso. Dissertação de mestrado. UNESP-CAr, 2002.
___. “Com o país na garganta”. Entrevista publicada no Jornal da UNESP. São Paulo: UNESP, 2003.
RUSSO, Renato. O trovador solitário. Rio de Janeiro: EMI-Microservice LTDA, 1982.
Anexo 1 – Letras das canções que constituem o corpus deste estudo.
Geração Coca-cola
Composição: Renato Russo / Fê Lemos
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Depois de 20 anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Depois de 20 anos na escola
Não é dificil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Depois de 20 anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola
Depois de 20 anos na escola
Não é dificil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Geração Coca-cola
Música Urbana 2
Composição: Renato Russo
Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã -
É só música urbana.
Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repertir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana.
E a matilha de crianças sujas no meio da rua -
Música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.
Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.
E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
Yeah, Música urbana.
Oh Ohoo, Música urbana.
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã -
É só música urbana.
Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repertir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana.
E a matilha de crianças sujas no meio da rua -
Música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.
Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.
E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
Yeah, Música urbana.
Oh Ohoo, Música urbana.
[1] A expressão “BRock” foi usada a primeira vez por DAPIEVE (2000) e significa “Rock Brasil”, referente ao movimento denominado como “rock brazuca” (mistura de BRrasil com bazuca – arma de fogo).
[2] Os adolescentes eram os pequenos burgueses, cujos temas de interesse envolviam dramas familiares, questões amorosas, além de críticas sociais severas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário