Lívia de Lima Reis[1]
livialreis@gmail.com
Este texto surgiu de algumas inquietações a respeito de como se pode pensar a ética e a estética pelo viés bakhtiniano nas relações sociais mediadas pela Internet, considerando as proporções tomadas por este meio de comunicação na sociedade atual. A interação entre pessoas de qualquer lugar do mundo se tornou facilitada pela criação da World Wide Web (WWW). A Internet (e as práticas sociais que circulam pela rede) não é estanque, linear ou previsível, o que se evidencia pela emergência do conceito de Web 2.0:
de fato, é num contexto de profundas alterações sociológicas que surge o conceito de Web 2.0. Este termo, criado por Tim O’Reilly (2005), que reforça o conceito da Internet de propiciar que seus usuários colaborem efetivamente para a disponibilização de serviços virtuais e organização dos conteúdos. Um exemplo clássico desta nova geração é a Wikipedia, uma enciclopédia dinâmica, na qual os próprios usuários disponibilizam e editam informações. (CATARINO; BAPTISTA, 2007, s. p.)
O conceito de ética em Bakhtin está relacionado ao agir responsivamente por meio do dialogismo, ou seja, de relações com os outros e com as coisas do mundo. Este agir engloba a compreensão ativa dos sujeitos, a ação criadora e transformadora. “O ato responsível ou ato ético, envolve o conteúdo do ato, o processo do ato, e unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito ao seu próprio ato.” (SOBRAL, 2005, p.104).
Os sujeitos não tem como escapar do contexto em que estão inseridos, pois mesmo que não se pronunciem estão respondendo a algo no mundo, pois constantemente sua consciência está avaliando, interagindo, reagindo, se transformando. Assim, diariamente em todos os campos da atividade humana os sujeitos estão agindo responsivamente. A partir disso, quais são os meios da ação ética na sociedade atual? Sem dúvida, não há como escapar das relações e transformações proporcionadas pelos usos da Internet. Este é o contexto do sujeito contemporâneo. Então, como pensar o sujeito ético na contemporaneidade? De que maneira o agir responsivamente se dá nas relações sociais mediadas pela Internet?
Na Wikpedia, a escrita dos verbetes se dá de forma coletiva e colaborativa. Os sujeitos podem inserir espontaneamente um conteúdo a ser compartilhado e avaliado:
Por exemplo, ao escrever na Wikipédia, eu atualiza um bem público. Sua ação parte de uma produção da coletividade e a transforma. Porém, como toda interação da coletividade, é irrelevante nesse caso quem iniciou a escrita do verbete e quem fez a última edição. Mas eu pode iniciar um longo debate com ele, por exemplo, no fórum ligado àquele verbete. Ou seja, a partir da participação na coletividade, eu e ele se conhecem. Porém, a coletividade não participa desse diálogo, ainda que este possa ter repercussões: como uma nova atualização do verbete, um bem público. (PRIMO, 2006, p. 8)
Então, como pensar a ética neste espaço? Os sujeitos estão agindo eticamente ao se relacionar a fim de atualizar, debater e avaliar os conteúdos que são considerados um bem público?
A Wikipedia também se utiliza da ferramenta de classificação social conhecida como folksonomia. O termo foi criado por Vander Wal em 2004, entendido como a junção das palavras taxonomia e povo (folk em inglês). Esta é uma das ferramentas da geração da Web 2.0 que possibilita uma forma dialógica de organização das informações, vista como prática social em meio virtual. Nesse tipo de relação que os usuários estabelecem com as informações, são criadas tags (“etiquetas”), que funcionam como representação dos conteúdos e, dispostas na forma de links, configuram hipertextos.
A prática hipertextual significa relacionar assuntos, o que se faz através dos links. No momento em que são os próprios usuários, que ao utilizarem ferramentas cooperativas, organizam a informação de forma que possam recuperá-la através de uma busca por conexões e significados, em função da folksonomia, percebe-se a ocorrência de alteração dos padrões organizacionais dos dados na Rede. (AQUINO, 2007, p. 4)
Outros sites que utilizam esta ferramenta colaborativa são o Del.ici.ous[2] (organiza links de sites favoritos), o Connotea[3] (apresenta referências e informações bibliográficas), o Flickr[4] (armazena e compartilha fotos), o YouTube[5] (compartilha de vídeos), o Last.fm[6] (armazena músicas), o Bibsonomy[7] (bookmarking social para gerenciamento de recursos bibliográficos) e o Amazon (comércio eletrônico). No site Amazon, por exemplo, ao clicar em uma tag, abre-se um fórum de discussões, que é uma “comunidade” que tanto discute o uso de determinada tag, como escolhe aceitar ou não a atribuição de uma tag. Trata-se de um procedimento ideológico em que estão em jogo, por meio de uma interação dialógica, a disputa e a avaliação social de temas. Isso mostra que as relações sociais possibilitadas pela Web 2.0 vão além do que simplesmente um compartilhamento dos conteúdos eletrônicos. Elas causam transformações por meio das avaliações sociais. As tags são disponibilizadas nos sites para a coletividade, que fornece um feedback, o qual é visto como um ato responsivo:
Outra característica da folksonomia, apontada por Quintarelli, Udell e Mathes, é o feedback imediato, ou seja, a dinamização intrínseca que possuem, pois cada vez que se sente a necessidade de criação de uma nova tag ou da troca de uma não muito utilizada por outra mais adequada, qualquer usuário o pode fazer [...] (AMARAL; AQUINO, 2008, p. 2)
Nota-se, então, uma forma de relação dialógica, na qual está envolvida a compreensão do que uma tag representa, as constantes trocas de algumas tags por outras e a criação contínua de novas tags que são compartilhadas socialmente. As tags são signos que partem de um sujeito em direção a outros:
A compreensão é uma forma de diálogo [...] Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. [...] Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. (BAKHTIN, 1997, p. 132)
Segundo Bakhtin, a ideologia do cotidiano é que orienta a atividade mental da compreensão e desta forma a maneira como essa atividade se expressa: “o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de nossa expressão” (BAKHTIN, 1997, p. 118, grifo do autor). Essa atividade mental pode ser medida pelo nível em que se encontra na ideologia do cotidiano. Em que nível se encontram as transformações decorrentes das relações de cooperação na construção e organização de conhecimentos na Internet?
Os níveis superiores da ideologia do cotidiano que estão em contato direto com os sistemas ideológicos, são substanciais e têm um caráter de responsabilidade e de criatividade. São capazes de repercutir as mudanças da infra-estrutura sócio-econômica mais rápida e mais distintamente. (BAKHTIN, 1997, p. 120)
Como que se dão as relações entre a ideologia oficial já constituída e as novas correntes da ideologia do cotidiano? Quais são os discursos circulantes nas esferas da arte, da ciência, da literatura, etc? “Essas novas correntes da ideologia do cotidiano, por mais revolucionárias que sejam, submetem-se à influência dos sistemas ideológicos estabelecidos [...]” (BAKHTIN, 1997, p.120). No Last.fm, por exemplo, é possível observar as forças centrífugas atuantes possibilitadas pela liberdade de escolha e criação de novas categorias pelos próprios usuários do site, categorias as quais se infiltram no meio oficial por meio de atitudes responsivas e avaliativas:
há também as junções de um ou mais gêneros, como exemplo, a tag hellektro, que é uma derivação de dois subgêneros da música eletrônica. Nessa apropriação, os críticos e jornalistas de música acabam perdendo o poder do seu lugar de fala, no sentido de que anteriormente eram apenas eles que criavam tais categorizações. Assim as discussões sobre a natureza e autenticidade dos subgêneros musicais é discutida em múltiplas plataformas e fóruns, apontando a capacidade de um determinado grupo de desdobrar-se e negociar suas identidades em distintos locais e redes (AMARAL; AQUINO, 2008, p.3)
E a estética? Como se dá neste contexto a valoração pelos sujeitos? Os sites que se utilizam das ferramentas colaborativas abrem espaço para as apreciações sociais ao permitir que as pessoas criem livremente as categorias que irão representar os conteúdos? O Last.fm, ainda exemplificando, mostra como as tags recebem a “assinatura” dos sujeitos, os quais agregam valores ao categorizar as músicas: “as tags não precisam estar vinculadas com o gênero/estilo musical em si e podem, agregar valores subjetivos como ‘breakfast radio’ (rádio do café da manhã), ‘músicas que eu amo’, ‘música mais gay de todos os tempos’” [...] (AMARAL; AQUINO, 2008, p.3). Assim, nota-se como a atribuição das tags pode se dar de acordo com certos valores individuais que são agregados aos conteúdos
As questões que foram apresentadas brevemente são os motivos para análises e reflexões deste estudo. Os exemplos mostram a possibilidade de se pensar a ética e a estética bakhtiniana na contemporaneidade, especificamente no contexto das relações sociais propiciadas pelas ferramentas recentes da Web 2.0.
Referências
AMARAL, A.; AQUINO, M. C. Práticas de folksonomia e social tagging no Last.fm. 2008. Disponível em:
<http://www.inf.pucrs.br/ihc2008/pt-br/assets/files/Praticas_Folksonomia_Social_Tagging_Lastfm.pdf.> Acesso em: 18 jun. 2010.
AQUINO, M. C. Hipertexto 2.0, folksonomia e memória coletiva: um estudo das tags na organização da web. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, ago. 2007. Disponível em:< www.compos.org.br/e-compos>. Acesso: 20 jul 2010.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929). São Paulo: Hucitec, 1997.
CATARINO, Maria Elisabete; BAPTISTA, Ana Alice. Folksonomia: um novo conceito para a organização dos recursos digitais na Web. DataGramaZero: revista de Ciência da Informação. Rio de janeiro, v.8, n.3, jun. 2007. Disponível em: <http://dgz.org.br/jun07/Art_04.htm >. Acesso em: 20 julho 2010.
PRIMO, A. F. T. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. In: XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília: UnB, 2006. Disponível em: http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/handle/1904/20222. Acesso em: 15 setembro 2010.
SOBRAL, Adail. Ético e estético: na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2005.
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