segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A MARQUESA DE MERTEUIL NA ARQUITETÔNICA DIALÓGICA D’AS RELAÇÕES PERIGOSAS – UMA “EST-ÉTICA” SETECENTISTA?



Daniel Prestes da Silva (Graduando de Letras/UFPA)
Rosa Maria de Sousa Brasil (UFPA)



Bakhtin (2009) considera o homem como um ser essencialmente ideológico e, isso, deve-se ao fato deste ser, também, um ser cultural, que se encontra inserido em um meio social, histórico, além de ser possuidor de uma linguagem. É, justamente, essa linguagem que evidencia sua condição social, já que ela só se manifesta na interação; e ideológica, pois, por meio dela que os discursos se materializam, que o arcabouço ideológico é percebido.
Quando tais discursos interagem e se intercomplementam, há o que Bakhtin conceituou de dialogismo, como nos diz Bezerra, no prefácio de Problemas da Poética de Dostoièvski - Obra à prova do tempo (2010, p. VI). Essa interação discursiva, dialógica, por sua vez, não se encontra concentrada em uma interação face a face e nem pauta-se apenas em o que é dito; pelo contrário, existe no momento da enunciação, entre enunciados, que são as unidades de comunicação verbal, fundamentalmente interdiscursivos e contextuais.
Essa relação, que possibilita tal diálogo, acontece por meio de um processo complexo nos quais vários discursos, imbricados, provenientes de outros sujeitos, são assimilados, re-estruturados, modificados. Há, paradoxalmente, a “força expressiva” do Eu lutando, em constante conflito, em um contínuo “jogo de forças”, com a “força expressiva” dos outros. A qualidade polifônica do discurso é resultado desse processo, haja vista que o processo de construção de sentido nunca finda, está sempre em formação (BEZERRA, 2010, p. VI), evocando diversas “vozes que se justapõem e se contrapõem, gerando algo além delas” (STAM, 1992), ou seja, “dialogizando-se”.
Assim, o sujeito ao tentar estabelecer um contato de maior proximidade deste Outro, em um processo que visa identificar discursos para a construção de sentidos daquilo que se fala, terá estabelecido o que Bakhtin denominou de alteridade, a relação entre Eu-Outro, que sempre será dialógica (CLARK & HOLQUIST, 2004).
Quando tomamos algumas das relações estabelecidas pela Marquesa de Merteuil dentro da composição da obra As Relações Perigosas de Laclos, por exemplo, a interação dela com as outras personagens e de como elas são estabelecidas, também, por meio do gênero epistolar, pelo qual, aquelas interagem entre si, verificamos a presença dos conceitos anteriormente explicitados, a saber: dialogismo, polifonia e alteridade.
            A Marquesa estabelece, de acordo com seu interlocutor, um posicionamento diferenciado, assim em relação à Mademoiselle Cécile de Volanges, ela adota uma postura de complacência, de amiga que compreende e ajuda. No excerto a seguir a Marquesa trata sobre o modo com que procedeu para com a Mademoiselle Volanges sobre o Cavaleiro Danceny:

Adivinhais logo que a princípio fingi ser severa, porém, mal percebi que ela acreditava ter-me convencido com suas más razões, pareci aceitá-las como boas. [...] Era necessária essa precaução para não me comprometer. (carta XXXVIII, da Marquesa ao Visconde)

            No que tange ao relacionamento estabelecido com a mãe da menina, de quem é prima, a Marquesa adota uma postura de amiga preocupada e a fim de fazer com que a Mademoiselle seja uma menina que faça o que se espera dela socialmente, em relação ao comportamento. Evidencia-se essa ação em
Fui no mesmo dia, à noite, à casa de Mme. de Volanges e, de acordo com o projeto, confiei-lhe que estava certa de haver entre sua filha e Danceny um ligação perigosas. essa mulher, tão clarividente contra vós, estava cega a ponto de a princípio me responder que sem dúvida eu me enganava; sua filha era uma criança, etc., etc. [...] ‘Obrigada, minha digna amiga’, disse ela, apertando-me a mão, ‘apurarei isso’. (carta LXIII, da Marquesa ao Visconde)

            Já na interação que envolve o Visconde, seu ex-amante e “confessor” há uma relação um tanto quanto de igualdade, embora em algumas ocasiões possa ser verificada uma tentativa de se por acima, de mostrar-se superior nas táticas de libertinagem, como se Valmont fosse uma criança a ser guiada, fato que se mostra em

Como sois feliz em me ter como amiga! Sou para vós uma fada benfazeja. Definhais longe da beldade que vos prende; digo uma palavra, e vos achais a seus pés. Quereis vingar-vos de uma mulher que vos prejudica; indico o ponto onde deveis golpear, e entrego-a à vossa descrição. Enfim, querendo afastar da liça um concorrente temível, é ainda para mim que apelais, e eu vos atendo. Na verdade, senão passais a vida a agradecer-me, é porque sois um ingrato. (carta LXXXV, da Marquesa ao Visconde)
    
De forma indireta, ela cria uma relação com a Presidenta de Tourvel, uma jovem mulher que tem seu marido afastado por questões de trabalho e que se torna alvo das investidas do Visconde. Essa relação tem como intermediário o próprio Visconde que, guiado pela Marquesa, fere, mortal e moralmente, a Presidenta, quando, ao manipular o Visconde, faz com que este a deixe.
Sim, Visconde, éreis muito afeiçoado a Mme. de Tourvel, e ainda hoje o sois; vós a amais como um louco. Mas, como eu me divertia em envergonhar-vos por isso, bruscamente a sacrificastes. (carta CXLV, da Marquesa ao Visconde)
    
Observa-se, em todos esses relacionamentos processos de outridade nos quais o “eu” se realiza no outro, com ou contra o outro. Bakhtin (2010, p. 46) bem situa essa “realização” ao explicar:
Quando tenho diante de mim um homem que está sofrendo, o horizonte da sua consciência se enche com o que lhe causa a dor e com o que ele tem diante dos olhos; o tom emotivo-volitivo que impregna esse mundo das coisas é o da dor. Meu ato estético consiste em vivenciá-lo e proporcionar-lhe o acabamento (os atos éticos — ajudar,socorrer, consolar — não estão em questão aqui). O primeiro momento da minha atividade estética consiste em identificar-me com o outro: devo experimentar — ver e conhecer — o que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele (como, deque forma é possível essa identificação? Vamos deixar este problema psicológico de lado, limitemo-nos a admitir como incontestável o fato de que, até certo ponto, essa identificação é possível).

Tendo como estético a percepção de um ato de empatia em relação de um ‘eu’ para um ‘outro’, onde este ‘eu’ coloca-se no lugar deste ‘outro’, vivenciando todas as sensações que este experimenta, depois retorna à sua posição externa na qual, juntando aquilo que é inacessível ao outro com as percepções que este possui dá um acabamento da situação na qual eles se encontram inseridos. O que vemos nas relações entre a Marquesa e as outras personagens é uma relação egoísta e narcísica por parte daquela, que tenta compreender o outro não para agir de maneira ética e sim, para manipulá-los até conseguir o que almeja, ou seja, ela, em vez de servir o outro, a fim de que ambos transformem as suas existências, serve-se do outro, trazendo apenas para si o prazer, as coisas ‘boas e ‘belas’. Cabe lembrar o processo de “espelhamento” descrito por Bakhtin (2010, p. 52), ao evidenciar o “agir ético” atrelado ao “olhar estético”:
A objetivação ética e estética necessita de um poderoso ponto de apoio, situado fora de si mesmo, de uma força efetiva, real, de cujo interior seja possível ver-se enquanto outro. — Na realidade, quando contemplo minha imagem externa naquilo que a faz viver e participar de um todo exterior vivo- pelo prisma dos valores da alma do outro possível, essa alma do outro, despojada de autonomia, essa alma-escrava, introduz algo de falso e de totalmente alheio ao acontecimento existência ético: não é uma geração produtiva e enriquecedora na medida em que carece de qualquer valor autônomo, é um produto fictício que turva a pureza óptica da existência; nesse caso opera-se como que uma substituição óptica, cria-se uma alma sem lugar, um participante sem nome e sem papel. É óbvio que não é pelos olhos de qualquer outro fictício que verei meu verdadeiro rosto; captarei apenas uma máscara. Devo dar a esse filtro de uma reação viva do outro uma consistência e uma autonomia fundamentadas, substanciais, autorizadas, devo convertê-lo num autor responsável.

Essa forma de agir em relação ao outro, que institui um comportamento, uma (re)ação ética, pode ser, possivelmente, explicado pelo fato de a Marquesa não ter frequentado nenhuma escola de moral. Por Escola de Moral concebe-se o aprofundamento racional de “[...] vários preceitos morais e [a reflexão] sobre o modo de praticá-los [...] [além] de proporcionar também as memorizações das regras da vida” (MARCHIONNI, 2010, p. 19), isso pode ser feito através, por exemplo, das religiões, por meio de instituições como os conventos.
Ao contar que não fora educada, como a maioria da moças à época, em convento, ela explicita o modo pensar do período histórico, no qual se encontra inserida: o Iluminismo.
A Ética/Moral Iluminista, de acordo com que escreve Marchionni (Idem), é de livre escolha, ou seja, cada homem pode estabelecer, de acordo com as suas vivências e experiências, sua conduta ética, recusando-se a aceitar o ensino da moral ou a escola de moral. Tal comportamento, entretanto, pode levar a uma postura narcísica, onde só importa o bem-estar e satisfação pessoal, não importando o que deva ser feito pra isso, como podemos perceber no modo de agir da personagem aqui abordada, que se serve do outro.
Afinal, como pensar em um meio pelo qual haja o movimento dialógico entre a personagem e o seu interlocutor (leitor) e, que este não apenas considere os seus intentos, mas de modo a desenvolver uma reflexão sobre “antieticidade” da personagem, levando ele a conduzir sua vida de forma “est-ética”?
Ao lermos a obra e nos depararmos com a falta de ética da personagem, entendendo o termo como um conjunto de preceitos e valores instituídos por um senso comum, social de comportamento; entramos em “estado de choque, e este nos faz movimentarmo-nos em direção a questionar as atitudes e, isso é experiência estética” (BARBOSA, 2006, p.32); contudo considerar algo como estético passa não só por “valores reconhecidos de fato, e sim da validade desses valores, de se eles merecem um reconhecimento” (Idem, p. 31).
Este movimento, de estabelecer um diálogo entre a obra literária (arte) e a vida (cotidiano), estabelece, para Bakhtin (2010, p. XXXIV), “algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”. Os atos da Marquesa a fazem “responsável” por suas conseqüências, evidenciando o quanto o amoral pode ser ético à medida que significa um fazer “assinado”. Também, como sujeitos pós-modernos, somos híbridos no que se refere a valores e identidades, tal qual a Marquesa de Merteuil, uma personagem dentro e fora da comunidade semiótica da qual era parte. Interessante é notar o quanto somos capazes de enxergá-la, e o quanto somos absolutamente avessos a nos enxergar.


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

BARBOSA, R. Experiência estética e racionalidade comunicativa. p. 27-49. In: Comunicação e experiência estética. GUIMARÃES, C.; LEAL, B. S.; MENDONÇA, C.C. (org.) – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2009.
_____. Arte e responsabilidade. p. XXXIV. In: Estética da criação verbal. Mikhail Bakhtin. trad. de Paulo Bezerra. 5ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. XXXIII –XXXIV.
_____. Estética da Criação Verbal. trad. de Paulo Bezerra. 5ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BEZERRA, P. Uma obra à prova do tempo (prefácio). In: Problemas da poética de Dostoiévski. Mikhail Bakhtin. trad. de Paulo Bezerra. 5. Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. VI.
CLARK, K. & HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 2004.
LACLOS, C. As Relações Perigosas. trad. de Carlos Drummond de Andrade. Editora Ediouro/Tecnoprint S.A., s/d.
MARCHIONNI, A. Ética: a arte do bom. 2ª. ed. – Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010.
STAM, R. Bakhtin: da teoria literária a cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.

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