segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Bakhtin e a(s) comédia(s) humana(s) de HONORÉ DE BALZAC



Geovanna Marcela da Silva Guimarães (UFPA)

Para Bakhtin o romance é um gênero que se liga ao contexto do novo momento em que o individuo, membro uma determinada sociedade, dita civilizada, está inserido. Nós, como seres humanos, passamos por constantes processos de mudanças e transformações tanto físicas quanto mentais e é esse o principal princípio do romance: o de representar, de forma literária, esse processo de transformação que há em nossas vidas. A nossa vida não é estagnada, portanto o romance também não o é.
Ao estudar as obras do escritor russo Dostoievski, Bakhtin percebe que uma obra, ou melhor, o romance diferente dos outros gêneros por não ser composto de apenas uma “voz” representadora de apenas um personagem, mas sim que é composto por várias “vozes” independentes entre si. A esse discurso de “vozes” chamamos de discurso polifônico.
A polifonia nas palavras de Paulo Bezerra é a forma suprema do dialogismo que é o processo no qual uma obra dialoga com outra(s), podendo esta(s) ser (em) do passado, presente ou futuro. No romance polifônico a personagem ganha consciência e autonomia, não se sujeitando mais às vontades do autor que no romance monológico o tratava como um mero objeto manipulável e sem matéria pensante.  No monologismo, o personagem é um ser acabado que não sofre qualquer tipo de mudança ou alteração na sua consciência, enquanto que o sujeito polifônico é um ser não-acabado que sofre constantes mudanças condicionadas por seu contexto social que interfere nas suas relações com o “outro”.
O autor não é mais o “dono da situação” na obra polifônica. Ele não interfere nos acontecimentos fica apenas observando o que se passa. O autor agora é apenas um observador dos fatos. Podemos observar como se dá esse processo no seguinte trecho:
“Na alameda que coroa a rampa íngreme ao pé da qual se agitam as águas, e olhando para além das pontes dos Gobelins, descobri uma mulher que me pareceu ainda bastante jovem, vestida com a mais elegante simplicidade, e cuja fisionomia suave parecia refletir a alegria da paisagem. Um belo rapaz pousava em terra o mais lindo garoto que é possível imaginar.”                                  (BALZAC. Mulher de Trinta Anos. p. 108).
             O referido trecho pertence a uma das mais importantes obras do escritor francês Honoré de Balzac, A mulher de Trinta Anos. Percebemos ai como se dá a nova posição do autor no romance moderno, na verdade não podemos dizer como o autor se porta, mas sim o narrador, pois não devemos esquecer: o narrador não é o autor.
O narrador balzaqueano não interfere na obra ele apenas observa, no caso do trecho da Mulher de Trinta Anos, ele é um transeunte que passa por uma alameda e observa as personagens num momento de descontração é alegria. Ele não age sobre a ação de suas personagens, não verdade ele não se mantém distante de nenhum deles, porque se atentarmos bem ele os observa, está próximo deles como um ser igual e não distante como ocorre no romance monológico.
O personagem do discurso polifônico não é apenas “ele” na história. O personagem conta a si mesmo (se quiser!) na interação com os outros personagens que possuem a mesma autoconsciência dos seus atos, atitudes e comportamento. E com isso escolhem se querem mostrar aos outros o que realmente são:
“Gostaria, muito de saber quem eu sou, o que fiz, ou que faço. É muito curioso. Meu filho. Vamos calma. Vai ouvir muita coisa. Passei por dificuldades... Quem sou eu? Vautrin. O que faço? O que me agrada. Sou bom com aqueles que me fazem bem e cujo coração fala ao meu”
                                                                              (BALZAC. O Pai Goriot, p.118).
Esse personagem que vos fala é Vautrin, cujo verdadeiro nome é Jacques Collin, de O Pai Goriot, vê-se a facilidade que ele fala ao outro que o ouve a suas experiências de vida, o seu modo de ser e agir. Vautrin, por sua própria vontade decidiu revelar a sua verdadeira personalidade que não é uma das melhores, pois na obra balzaqueana Vautrin é cínico, enigmático e diabólico..
Bakhtin mostra que a existência desse novo processo de interação que há entre o eu e o outro no discurso polifônico nos torna dependentes. O meu “eu” precisa do outro, pois é nele que eu me vejo e reconheço, enquanto que o outro também precisa do meu “eu” para se ver e se autoreconhecer. E tudo isso se dá com a convivência com os indivíduos ao nosso redor. O narrador no romance polifônico é o regente do “grande concerto de vozes”, mas, apesar, dele ter essa importante posição ele não interfere em nenhuma das ações que ocorrem na narrativa. Os personagens têm autonomia sobre suas ações, decidem o que querem ou o que não querem fazer.
Paulo Bezerra define a polifonia como a interação e a convivência dos personagens entre si:
“A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes... vozes plenivalentes e consciências eqüipolentes todas representantes de um determinado universo , marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências  não são objeto do discurso do autor, são sujeitos do seu próprio discurso”
                                                                                              (BEZERRA, p. 195. 2008).
 No caso de Eugene Rastignac, protagonista de O Pai Goriot de Balzac, ele precisou da alteridade de sua prima Claire Beauséant, de Vautrin e dos outros personagens com quem convivia para auto-reconhecer e aceitar a sua verdadeira identidade: Eugene é um jovem ambicioso.
“Ai o autor visa conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro ‘eu’ único, infinito e inacabável: não se propõe a conhecer a si mesmo, conhecer o seu próprio eu, propõe-se conhecer o outro, o ‘eu’ estranho”  (BEZERRA, p. 194. 2008)
O narrador no romance polifônico é o regente do “grande concerto de vozes”, mas, apesar, dele ter essa importante posição ele não interfere em nenhuma das ações que ocorrem na narrativa. Os personagens têm autonomia sobre suas ações, decidem o que querem ou o que não querem fazer.








A POLIFONIA BALZAQUEANA
Honoré de Balzac escreveu um dos maiores monumentos literários de todos os tempos e é essa obra que o liga à Bakhtin. Essa obra é a tão famosa A Comédia Humana” - alusão a “Divina Comédia” de Dante Alighieri. Percebemos isso nitidamente no primeiro capitulo da obra “A Menina dos Olhos de Ouro” aonde Balzac divide a sociedade em camadas que vão das mais baixas às mais altas, no caso de Aligheiri isso se faz com o Inferno até se chegar ao Paraíso.
A Comédia Humana fez de Balzac um escritor/historiador por mostrar um magnífico panorama da Paris do século XIX com seus costumes, intrigas, segredos, mistérios e figuras ilustres. A sociedade que Balzac nos mostra é uma sociedade pós-revolução francesa que sofre as conseqüências da revolução e da restauração da monarquia que novamente dá o poder ao rei e aos nobres. Que agora tem de dividir o seu poder e força com a recente formada burguesia.
A sociedade que nos é mostrada por Balzac é movida pelo grande jogo das conveniências e aparências. Na sociedade balzaqueana nada é aquilo o que parece ser.
Mas como apenas uma obra pode mostrar tudo isso?
o nos enganemos ao pensarmos em “A Comédia Humana” como apenas uma obra UMA obra. Não. “A Comédia Humana” são várias obras. Várias obras que somam no total 89 livros com mais de 2.500 personagens que vão e voltam, entram e saem por toda a obra.
Imaginemos que, após ler uma das obras de Balzac, como, por exemplo, O Pai Goriot ou qualquer outra obra e nos encantemos com uma das suas personagens que como todo livro, dito normal, tem o seu próprio fim, pode ser feliz ou não, e some junto com o fechar do livro e fica apenas na sua lembrança como um ótimo personagem. E você, como qualquer leitor, segue para uma outra obra de outro autor e vai encontrando outras personagens com as quais se identifica e  que somem com o termino do livro, assim sucessivamente. Mas, há um porém, isso não acontece com Balzac, pois os personagens balzaqueanos não somem como um personagem normal, eles sempre aparecem para pegar o leitor de surpresa. E essa uma das principais características de Balzac. Há personagens de suas obras que aparecem em vários livros ora como personagens principais ora como coadjuvantes. Lembremos de Vautrin ele é um dos personagens preferidos de Balzac que aparece não só em O Pai Goriot como aparece também em Ilusões Perdidas, Esplendores e Misérias das Cortesãs e Contrato de Casamento. Não é apenas Vautrin que tem esse privilégio há outros como Eugene Rastignac, Henri de Marsay e muitos outros.
O próprio Balzac teve uma visão do seu grande projeto literário:
 “Em 1833, teve uma antevisão do conjunto de sua obra e passou a formar uma grande ‘sociedade’ com famílias, cortesãs, nobres, burgueses, notários, personagens de bom ou mau caráter, vigaristas, camponeses, homens honrados, avarentos, enfim, uma enorme galeria de tipos que se cruzariam e voltariam em várias histórias diferentes sob o titulo geral de A Comédia Humana
                                                                                                          (MACHADO, p.9. 2006).
É esse constante “vai-e-vem” de personagens que faz da obra de Balzac um grande discurso polifônico, aonde ouvimos várias “vozes” cada qual com sua própria consciência e personalidade. Os personagens de Balzac são seres não-acabados que no decorrer das obras, desde o momento que somem e reaparecem, sofrem mudanças, uma verdadeira “evolução” nas suas composições. Um personagem nunca é o mesmo numa obra. Temos essa noção ao reencontrar tal personagem em uma outra obra ou na mesma obra como é o caso de Eugene Rastignac, que será analisado mais profundamente daqui a pouco, pois as personagens mudam dentro da obra em que atuam realmente. O “vai-e-vem” de personagens nos faz ter noção do tempo da obra.
Ao ler uma obra percebemos se aquela história se passa no passado, no presente ou no futuro da vida das personagens. Por exemplo, Claire Beauséant ( Gosbeck, O Gabinete das Antiguidades, A Mulher Abandonada, Albert Savarus, Os Segredos da Princesa de Cadigae e O Pai Goriot) é a famosa Viscondessa de Beauséant prima de Eugene Rastignac é personagem de duas famosas obras de Balzac: O Pai Goriot e A Mulher Abandonada. Da primeira é personagem coadjuvante, enquanto que da segunda é personagem principal.
O leitor ao pegar A Mulher Abandonada para leitura ficará muito curioso e pensativo em saber os motivos pelos quais Claire sofre e age da maneira que age com Gaston de Nueil, seu amante. Claire em A Mulher Abandonada está reclusa e absorta em seus sofrimentos, mas paraque o leitor decifre esse mistério e saiba o que realmente aconteceu deverá ler o O Pai Goriot que é o “passado” de Claire, portanto A Mulher Abandonada é o presente de Claire, logo após, que ela “sai” de O Pai Goriot.
Mais uma característica polifônica em Balzac: é a forte ligação que há entre os seus personagens. Todas elas são interligadas umas as outras. Cada personagem se conhece, se ama ou se odeia dentro de “A Comédia Humana”.
Mas o que move as relações entre os personagens?
Em Bakhtin o ético são as regras e obrigações que somos instruídos a seguir desde o nosso nascimento como indivíduos membros de uma sociedade, pois todos os eventos que praticamos nos trazem as suas devidas conseqüências. Somos responsáveis por nós mesmos e cada ação praticada possue a nossa “assinatura”. É a isso que se deve a autonomia dos personagens dentro de um romance. O estético é maneira como o autor vê a sua própria sociedade a partir de seu próprio olhar de mundo
Nas obras de Balzac o ético é movido pelo estético, pois são as aparências as engrenagens que movem as relações entre os indivíduos e a sociedade. O mundo balzaqueano é uma representação dos valores e ideais do século XIX na França. 
Balzac nos mostra um mundo encoberto pelos moldes do luxo e da riqueza mostrando-nos como a busca incessante pelo luxo é capaz de corromper a alma dos homens. Os poucos que não são corrompidos por isso preferem viver longe de Paris ou ficar afastados de tal sociedade, como é o de Madame e Monsieur Jules (Ferragus).
Em todas as relações da sociedade francesa há sempre uma segunda intenção que envolve algum tipo de interesse que no melhor dos casos deve beneficiar ambos os lados. Balzac em suas obras nos traz homens e mulheres que tiveram a alma destruída pela ambição e desejo.
Todos os personagens de Balzac são movidos pelas aparências, conveniências e pelo jogo de interesses. Por exemplo, caso você não possua um considerável renda ou bom nome não será capaz de fazer parte da nobreza francesa. A sua única saída será beneficiar-se de alguém - na obra balzaqueana isso é um artifício muito comum entre aqueles que almejam uma posição privilegiada. Resumindo, se você é pobre deve manter amizades influentes ou ter amantes influentes. E esse é o caso do já citado Eugene Rastignac.
Eugene Rastignac, personagem principal O Pai Goriot e um dos personagens preferidos de Balzac. É um jovem estudante que busca uma nova vida que almejando conseguir uma grande posição na nobreza sai do interior e vai para Paris. É possuidor de suas próprias convicções e ideais. Quando vê que terá renunciar alguns de seus propósitos para conseguir o que desejar não aceita muito, pois não deseja viver como a maioria dos hipócritas que se deixam levar pelas aparências. Mas no decorrer de sua história percebe que será muito difícil e longo o caminho para chegar aonde quer se opta seguir seus instintos. Por esse motivo Eugene deixa-se levar pela ambição. Ele chega a essa conclusão no momento em que se depara com situações quase que inverossímeis e cruéis em que figura como personagem coadjuvante como o abandono e a indiferença sofridos por Goriot pelas suas filhas Delphine e Anastasie Goriot que o rejeitam por sua origem.
Para conseguir o quer Eugene conta com a ajuda de sua prima a Viscondessa de Beauséant, uma das mulheres mais lindas e influentes da sociedade francesa, que “empresta” o seu nome à Eugene para ajudá-lo na sua empreitada aconselhando-o a tornar-se amante de uma mulher que seja possuidora de beleza, dinheiro e, além de tudo, um bom nome:
“Pois bem, Sr. Rastignac, trate o mundo como ele merece. O senhor quer vencer, eu o ajudarei.... Quantos mais friamente o senhor calcular, mais longe chegará. Bata sem piedade e será temido. Só aceite os homens e mulheres como cavalos de sela, que abandonará a cada parada, assim chegará ao ápice de seus desejos. Veja bem, o senhor não será nada aqui se não tiver uma mulher que se interesse pelo senhor. Ela precisa ser jovem, rica, elegante”   
                                                                                                     (BALZAC. O Pai Goriot.)
Mas não eram apenas as pessoas da mesma condição social de Eugene que se beneficiavam das pessoas da alta esfera social, pois as pessoas que ocupavam esse espaço dentro dessa sociedade também se beneficiavam da sua própria influência sobre os outros.
Para elas esse artifício tão comum servia-lhes para demonstrar o poder e domínio que exerciam sobre os outros. Antoniette de Navarreins, A Duquesa de Langeais, faz isso:
“...a duquesa de Langeais seja por cálculo, seja por vaidade, jamais aparecia na sociedade sem estar cercada ou acompanhada de três ou quatros mulheres igualmente distintas por seu nome e fortuna(...) Ela as havia escolhido habilmente entre algumas pessoas que ainda não estavam nem na intimidade da corte....mas que tinham a pretensão de chegar lá(...) Assim colocado, a duquesa de Langeais senti-se forte, dominava melhor, estava mais segura. Suas damas a defendia contra a calúnia e a ajudavam a desempenhar o detestável papel de mulher da moda”
                                                                        (BALZAC. A Duquesa de Langeais, p. 57 e 58).
A Duquesa de Langeais como o narrador nos diz é um ser múltiplo que não conseguiria ser definido, mas que deseja manter a aparência de uma mulher distinta, assim como manda os moldes da conveniência. A Duquesa para manter essa privilegiada posição precisa mostrar-se soberana entre todos. Mas para que consiga mostrar isso precisa demonstrar força e segurança. E ela alcança isso através dos outros que a rodeiam. É esse o jogo que visa a beneficiar a todos.      
Balzac nos mostra uma sociedade aos moldes da sociedade moderna e é isso que deixa o leitor balzaqueano maravilhado.





Referência Bibliográfica:
BALZAC, Honoré de. A Duquesa de Langeais. Tradução: NEVES, Paulo. Porto Alegre: L&PM. 2006.
BALZAC, Honoré de. A Mulher de Trinta Anos. Editora Martin Claret. 2004.
BALZAC, Honoré de. O Pai Goriot. Tradução: PORTOCARRERO, Celina; HEINEBERG, Ilana. . Porto Alegre: L&PM. 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética (A Teoria de Romance). 4° Edição. São Paulo: Unesp. 1998.
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2005.
SOBRAL, Adail. Ético e Estético. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2005.





 



















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