segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A maçã? Que maçã? Um acontecimento, um filme, uma mônada bakhtiniana



                                                                    Edwiges Zaccur e Carmen Lucia Vidal Perez
                                                   Universidade Federal Fluminense
O meu amor é pelas variações e variedades dos termos que dizem respeito a um mesmo fenômeno. A pluralidade dos pontos de vista. A aproximação que está longe sem lhe indicar anéis mediadores.  (Bakhtin)



No princípio, havia um acontecimento noticiado pela mídia local a partir da denúncia feita ao Departamento de Bem-Estar Social de que um pai  prendia suas filhas gêmeas em casa sem lhes permitir, sequer frequentar uma escola. A partir daí já se anuncia um conflito, envolvendo a família, a vizinhança e o poder público e  remetendo a algumas questões bakhtinianas, sobretudo, a alteridade e a responsabilidade. Como sublinha Ponzio, na releitura que faz de Bakhtin,  é a  alteridade que faz a obra artística sobreviver no grande tempo. A própria singularidade do eu, sendo  única, se organiza segundo uma alteridade que lhe é constitutiva, razão por que, ao indagar do ser, a filosofia sempre teve o outro como problema fundamental. Mas voltar-se insistentemente sobre o problema da alteridade implica ocupar-se da responsabilidade como resposta ao outro, uma responsabilidade sem álibi.
A Maçã é um filme bakhtinianamente polifônico em torno do problema bifronte de alteridade e responsabilidade, em que se fazem  ecoar diferentes vozes que se implicam: as da família - o pai e a mãe com suas crenças e certezas, as da vizinhança - indignadas ou incomodadas pela  reclusão em que viviam as gêmeas, a da assistente social que intervém de forma criativa e problematizadora, indo além do papel regulador do Estado.  Cada qual a seu modo, porém responsavelmente envolvidos: como testemunha e juiz, a  vizinhança acompanha e denuncia; como representante do poder público, a assistente social intervém, levando as crianças ao Departamento do Bem Estar Social; acuados, os pais se defendem, desejos de retomar a guarda dos filhos.
A jovem diretora Samira Makhmalbaf, impactada pelos acontecimentos  se viu, ela também, chamada à responsabilidade de a fazer fosse documentário ou ficção. Hibridizando-os, a partir de um roteiro  escrito por seu pai em diálogo com os fatos e para além deles, Samira realizou um filme que problematiza os acontecimentos em que se  implicam o eu e o outro. Não por acaso, no filme   se abre com mãos que assinam o abaixo-assinado endereçado ao poder público, sendo que a última assinatura, a da diretora, pode ser lida  como um termo de responsabilidade.
A narrativa cinematográfica segue nos convidando a dialogar com várias perspectivas de diferentes heróis envolvidos, cada um deles um sujeito situado, cuja responsabilidade ética nasce em situação. A cada herói, no sentido bakhtiniano do termo, importa  ter razão responsavelmente e não subjetivamente.
Nesse contexto, arte e vida dialogam e se hibridizam intensamente. O filme chega a incorporar à ficção algumas cenas  reais gravadas no Departamento do Bem Estar Social. Acresce, para veracidade ainda maior, que o pai e as gêmeas representam,   na recriação  cinematográfica, os acontecimentos  que viveram.  Segundo a diretora do filme, o pai aceitou representar a si mesmo como uma oportunidade  para  apresentar seu ponto de vista, defender sua posição e limpar seu nome, na sua opinião, caluniado e publicamente humilhado, quando a mídia trouxe o caso à tona.
Desafio  maior para a diretora foi conseguir que as meninas Massoumeh e Zahra "atuassem''. Para tanto precisou entrar no universo das crianças, recorrendo à imaginação e às brincadeiras, propondo jogos de  faz de conta e/ou de imitação. Samira  percebeu que as gêmeas eram  curiosas, bem humoradas e tinham grande  facilidade de estabelecer relações com pessoas desconhecidas, apesar de terem  ficado isoladas por onze anos, tendo uma comunicação verbal limitada e alguns comprometimentos quanto à motricidade e socialização. Ou seja, por mais isoladas que vivessem no fechado círculo familiar, as gêmeas interagiam valendo-se de uma consciência humana pensante. Algo de fora sempre lhes chegava: ecos de vozes  e  gritos do menino vendedor de sorvetes. Retalhos de imagens que se figura como   um cronotopo de passagem entre o dentro e fora.
Acresce que naquele espaço-tempo em que a tradição está tensionada por  novos valores, é possível   escutar, bivocalmente, uma pergunta no avesso da notícia que deu origem ao filme: se o pai, em  vez de filhas, tivesse filhos, iria prendê-los, mesmo que a mãe fosse cega? Como salienta Samira, na cultura iraniana, que o filme A maçã refrata, meninos têm direito de brincar nas ruas, nas mesmas ruas onde as meninas são excluídas.
O feminino, como um outro no interior de uma cultura tradicionalmente machista que atravessa todo o filme, informa um tenso conflito entre a tradição e um novo Irã - representado pela presença emblemática das duas mulheres, a mãe cega e embuçada - guardiã do velho regime das mulheres sem rosto - e a assistente social - anunciadora de uma nova ordem, em que a emancipação feminina se anuncia. Há no  diálogo entre o velho e novo uma positividade anunciadora de uma transformação que agencia contrários: da mão que rega um pequeno vaso de flor, do lado de fora  à cena final, em que a mão da mãe cega tateia, mas enfim, se apodera da maçã quando se atreve a sair do espaço fechado da casa – uma e outra cenas indiciando vida e emancipação, ainda e sempre possíveis,  apesar dos impasses.
 A tensão entre a tradição e um outro Irã que desponta,  por outro lado, pode nos remeter externamente ao Irã como um outro da cultura ocidental. Filmes iranianos implicam uma sintaxe outra  construída na contramão da hegemonia ocidental. A língua já produz o primeiro estranhamento – as palavras podem soar aos nossos ouvidos como mágicas ou bárbaras, como reza ou pragas, como cânticos ou imprecações, como música ou ruído. Aliás, qualquer comparação que nos ocorra já está de antemão impregnada pela nossa cultura cristã, ocidental, capitalista.  
Temos argumentos bakhtinianos para compreender que o modo de olhar  e ver, a escuta entretecida de outras imagens e texto, o sentir habitado de tantas outras cenas tudo isso foi longamente construído num diálogo  intertextual  de que cada um se apropria, configurando um  modo de ser,  a partir de diferentes textos, imagens e linguagens. Quer nos parecer  que, a exemplo de outros filmes iranianos, A maçã  realiza, com poesia e sutileza,  o convite de Saramago em Ensaio sobre a cegueira: Se podes ver, repara. E acrescentamos: se podes ouvir, experimenta a escuta sensível da polissemia de cada palavra, que se não for falsa, bakhtinianamente não tem fundo. Se podes sentir, busca compreender como esse filme polifônico é pontuado pela  bivocalidade dos discursos que se enredam à cultura local.
As primeiras pistas desse intrincado enredamento se refrata nas simbologias que surgem a partir da palavra título. Maçã, em iraniano, significa  saúde e beleza – condensando metaforicamente tudo de que precisavam as duas meninas, mantidas, com excessivo zelo, afastadas do mundo. Maçã, na tradição judaico-cristã,  evoca o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. Tudo de que também precisavam as gêmeas para travar contato com o mundo que as cerca e que desde logo as atrai, apesar dos cuidados dos pais para mantê-las isoladas de seus perigos. A maçã segue sendo ressignificada ao longo do filme. Ela é a isca  com que o menino traquina tenta e testa, desafia e convida as gêmeas a provar o gosto da vida. Com a maçã, as gêmeas  vivem  uma série de experiências sensíveis: as que se materializam  em forma,  cheiro,  gosto, as que conotativamente remetem  a  desafio,  encontro,  mediação e troca. Assim em cada palavra dita se indicia uma outra palavra, que a implica numa dialogia interna.
Corte rápido.   Voltemos à tensa cena do filme em que os pais são chamados ao Departamento do Bem-Estar Social, para recuperar a guarda das filhas. A assistente social lhes impõe condições que não têm como não aceitar. Enquanto o pai afirma que não prendia as filhas, a mãe cega as envolve com os braços de modo a lhes encerrar as mãos nas suas. Mas a mão de uma delas - seria Massoumeh ou Zahra?  - já segurava a maçã que lhe fora dada. E a partir daí, algo muda na arquitetura do eu que bakhtinianamente se constrói na alteridade - do eu para mim, do outro para mim e do eu para o outro.
Consideramos que o diálogo para Bakhtin  é sempre mais fundo do que uma simples abertura para o outro, demanda uma implicação, uma impossibilidade de se alhear, ainda que se queira. Vale destacar a cena de um intenso diálogo entre a assistente social e o pai, ela do lado de fora, ele do lado de dentro, vivendo uma experiência dupla:  ser privado da liberdade, mas  também ser desafiado a libertar-se. A a assistente social, que o prendera, também lhe dera uma serra. Em conversa, no tempo lento em que serrava a grade, enquanto ouvia os veementes protestos da mulher cega, vindos do interior da casa,  mais uma vez ele expressa sua recusa em aceitar que se dissesse que ele aprisionava suas filhas.  Para comprovar seu extremo cuidado com elas, buscou um livro antigo onde se destacou uma passagem: Meninas são como a flor. Os raios do sol podem queimá-las. Nesse ponto, parece se abrir uma via de compreensão entre as exotopias  com que reciprocamente se viam de fora e de dentro da grade, à medida em que a grade, simbólica e materialmente, começava a ser serrada.
O filme é repleto de signos e símbolos que se abrem à leitura polissêmica. Além da maçã – a que já nos referimos anteriormente, destacam-se ainda; a flor, regada canhestramente com uma caneca através da grade, mas só consegue que apenas um bocadinho de água chegue até a planta; o espelho,  presente da assistente social e que uma delas dá de presente a outra criança – o menino vendedor de picolé, o livro guia que orienta a educação das meninas e a chave que,  com muito esforço,   Massoumeh e Zahra aprendem a usar e “libertam” o pai.
Por certo, cada espectador(a) dialogará com o filme de modo distinto, segundo diferentes disponibilidades e inventários,  de modo a permitir, em diferentes graus, se alfabetizar pelo que nos chega e fala de um outro lugar, de uma outra cultura, de um espaço tempo de que pouco ou nada conhecemos.
E quem nos ajuda nesse processo são elas, as crianças, esse povo criança como diria Allan, esses enigmáticos outros que precisamos redescobrir em nós, soterrados que foram pelos valores culturais que nos foram ensinados. No entanto, esses outros ainda nos habitam e nos convidam, com  espanto, a hibridizar contrários. Os atos vividos pelas crianças, numa fração de segundos, ela transitam  da disputa à negociação,  do sério a riso,  da raiva ao amor.
Esse filme, como uma mônada bakhtiniana, consegue   nos arrancar  das  “zonas de conforto” e nos colocar frontalmente diante da complexidade humana. Não  há culpados,  todos,  situados em seus pontos de vista, instigam a compreensão ativa do espectador, que, ao provar dessa Maçã, em diferentes intensidades,  é provocado a desconstruir a visão estereotipada, que dicotomiza o certo e o errado, o bom e o mau, o humano e o desumano.











Nenhum comentário:

Postar um comentário