Rafael Giovani Hansseler Saldanha/UFPA
Orientação: Rosa Maria de Souza Brasil/UFPA
O presente texto trata de inquietações geradas a partir da observação da realidade social do segmento afroreligioso da cidade de Belém. Não tem a pretensão de ser voz de autoridade ou mais uma relevante referência antropológica para a questão. É apenas um levantamento de problemas para introduzir ao Círculo, na sua 3ª edição das Rodas de Conversa Bakhtiniana, o debate a cerca da Intolerância Religiosa no Brasil e as perdas que isso provoca para a diversidade cultural e o desenvolvimento da consciência humana, inviabilizando um novo modelo de convivência social.
A história da prática do candomblé no Brasil se confunde com a história de negros e negras que, arrancados da África Mãe, não desistiram de continuar cultuando suas divindades no novo mundo. É, portanto, acima de tudo uma história de resistência. Interessante que a religião também simula na sua organização a idéia de disputa entre povos, dividindo-se em nações, para preservar elementos da origem, sendo elas Mina, Jeje, Ketu, Angola, Umbanda. Essa divisão possibilita especificidades nos rituais religiosos, desde o uso de línguas diferentes – sendo marcante a presença da língua banto e da língua ioruba na expressividade da comunidade de terreiro – até a riqueza das divindades cultuadas – Vodus, Orixás, Caboclos, Santos sincretizados – o que nos convida a imaginar a dimensão da riqueza estética construída ao longo de tantos anos de religião, desde quando se iniciaram na Bahia os primeiros homens e mulheres feitos no santo.
Figura na Constituição Federal do Brasil, em seu Artigo 5°, inciso seis, as palavras que garantem que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo XVIII, mais palavras de garantia e segurança, tais como “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. No século passado perceberam-se avanços significativos nos instrumentos de regulamentação da vida em sociedade, mas são flagrantes os atos de preconceitos que insistem em suas ocorrências, estimulados e tantas vezes fruto dos rigores da intervenção e especulação da Santa Igreja, que insiste em ser única, e dos seus dissidentes, os que protestaram e seguem protestantes. Todo preconceito parte da ignorância, do desconhecimento, e o que mais pesa à comunidade de terreiro é o estigma e o preconceito. O sincretismo religioso deu nome de santos católicos às divindades da religião afrobrasileira justamente para livrar os homens da religião negra das perseguições dos tribunais católicos. Hoje, a perseguição, como todas as formas de preconceito no Brasil, é velada, mas presente por meio das armas da violência simbólica que substitui os obsoletos instrumentos de repressão forjados à época inquisitorial. Interessante é perceber que o discurso legitimado das Igrejas e o discurso dos segmentos oprimidos, que se mantiveram burlando a vigilância da opressão, chocam-se num diálogo de autodefesa, na tentativa de destruir o Outro, para se legitimar e poder existir. É importante destacar que
“Quando me identifico com o outro, vivencio sua dor precisamente na categoria do outro, e a reação que ela suscita em mim não é o grito de dor, e sim a palavra de reconforto e o ato de assistência. Relacionar o que se viveu ao outro é a condição necessária de uma identificação e de um conhecimento produtivo, tanto ético quanto estético. A atividade estética propriamente dita começa justamente quando estamos de volta a nós mesmos, quando estamos no nosso próprio lugar, fora da pessoa que sofre, quando damos forma e acabamento ao material recolhido mediante a nossa identificação com o outro, quando o completamos com o que é transcendente à consciência que a pessoa que sofre tem do mundo das coisas, um mundo que desde então se dota de uma nova função, não mais de informação, mas de acabamento (BAKHTIN, 1992, p. 47).
Não se deseja aqui sair na defesa da religião de candomblé, mas sim apontar que na relação interdiscursiva entre uma religião opressora e outra oprimida, entre ideologia hegemônica e ideologia do cotidiano, é a comunidade religiosa negra quem está em desvantagem. A ideologia dominante é pré-concebida por classes sociais que detêm o poder, porém, para que uma atue com/contra a outra é necessário que haja a interação entre aqueles que dominam e aqueles que se deixam dominar, assim, qualquer uma dessas ideologias é dialógica por natureza, visto que, mesmo num discurso monofônico, voltado para o outro, aquele só sobrevive mediante à resposta deste. Portanto, a ideologia volta-se para a ação , constitui-se a partir de acordos , de processos , ajustes que se dão na e a partir da visão global constituidora dos sujeitos . Cabe, ainda, chamar atenção para a importância da ideologia do cotidiano como força em direção da liberdade, determinada pelas forças sociais , daí se dizer que
a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva nova secretada. É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer em tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (é claro, nos limites de um grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como ideologicamente significante. (BAKHTIN, 1997, p. 119).
Há uma relação dialógica que entrelaça a ideologia do cotidiano a ideologia oficial ou hegemônica , visto que uma não existe e não sobrevive sem a outra . É necessário ressaltar que ao mesmo tempo em que um ideologia complementa a outra , em outro momento , elas se confrontam em “uma arena de luta ” na qual uma busca superar a outra .
Nesse processo, em que se digladiam a ideologia hegemônica de religiões de ética cristã, por um lado, e de ética cósmico-espiritualista, por outro, o que está em destaque não é a crença na verdade de uma ou de outra, mas sim a sensibilidade de observar que cada qual possui suas belezas, como o estético que se pode encontrar no som que vem dos atabaques, na vestimenta dos babalorixás, nas cores das oferendas entregues aos santos, na simbologia da representação dos orixás, elementos marcantes no candomblé brasileiro, considerado esdrúxulo pela força do preconceito daqueles que não respeitam a diversidade cultural existente entre o céu e a terra.
A língua, cabe salientar, é
definida linguisticamente por um pensamento puramente lingüístico. Um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico (científico, artístico, político etc.) ou no contexto de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante. (BAKHTIN, 1993, p. 46)
Assim, é na língua, por meio dela, que se trava o jogo e a luta.
Importa que uma atitude ética, de (re)ação ao preconceito instituído acerca dos grupos, valores, crenças, comportamentos, dos afroreligiosos permeie todos os campos da vida, contrapondo os discursos de apagamento do Outro, viabilizando a convivência entre o que pode ser exótico e o que pode ser contido, numa harmonia estética, onde liberdade e diversidade sejam, efetivamente, marcos norteadores.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
CAMPELO, Marilu Marcia. Os candomblé de Belém – o povo de santo reconta a sua história. X Encontro de Ciências Sociais no Norte e Nordeste do Brasil. Salvador: UFBA, 14 a 17 de agosto de 2001.
PRANDI, Reginaldo (org.). Encantarias brasileiras, Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário