segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A ÉTICA E A ESTÉTICA DO LOBISOMEN





UNESP  – Campus de Assis

A lenda do lobisomem surgiu na Europa por volta do século XVI, devido aos casos de hipertricose[1], acreditava-se que um homem por alguma circunstância transformava-se em lobo (ou tão somente adquiria suas características), em noites de lua cheia, retornando a forma humana ao amanhecer.
Iremos analisar essa criatura fantástica, tendo como exemplo o personagem Remo Lupin, na perspectiva bakhtiniana de ética, estética e o vir-a-ser.
Atualmente na literatura os lobisomens mais famosos são: Alcide Herveaux de Vampiros Sulinos e Remo Lupin de Harry Potter. Esses dois personagens são caracterizados por terem um bom coração, discernimento em situações difíceis e instinto protetor, mesmo sendo lobisomens. Alcide personagem criado por Charlene Harris, foge um pouco da lenda, ele não se transforma apenas em noites de lua cheia, mas sim quando é necessário, inclusive sobre sua vontade, podendo ser dia ou noite; ele se metamorfoseia num lobo e não exatamente num homem-lobo como acontece com Remo. Já o professor Lupin que aparece pela primeira vez no terceiro livro da série Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, escrita por J.K.Rowling, quando criança, fora mordido por outro lobisomem, fato que o fez tornar-se um todas as noites de lua cheia do mês. Esse é o lobisomem em sua forma mais clássica, um homem com características animalescas, tantas que já não se sabe mais se é um homem ou um lobo. Perdendo, desta forma, sua perspectiva de certo e errado, deixando-se dominar apenas por seus instintos.
Assim um homem bom e culto, como Lupin, transforma-se num lobisomem, ou seja, transforma-se numa criatura abominável com sede de sangue, uma criatura que é incapaz de dialogar, pois está imbuído em seus instintos. Tendo consciência disso, Lupin trancafiava-se para que não ferisse ninguém, já que perderia momentaneamente sua capacidade de discernimento limítrofe.  Não tendo essa consciência, ele perde o poder de dialogar, logo sua ética encontra-se ausente.
Mas a ética de Bakhtin não pode ser vista tão precariamente numa criatura fantástica, que acima de tudo deve ser tomada como uma metáfora do próprio ser humano. Isso porque quando entregue aos seus instintos, como a raiva ou a paixão, o homem fica ausente de si, de sua própria ética no que diz respeito às tentativas de dialogo para com o outro. Tomado por seus instintos ele age como a um animal, um verdadeiro lobisomem incapaz de enxergar, entrar num acordo seja com o outro ou consigo mesmo. A partir do momento em que o sujeito perde sua ética ele não se reconhece no mundo, pois aquele “animal” incapaz de centralizar seus pensamentos, preso em algo primitivo, não é o mesmo homem que carregava aquela imagem estética. O lobisomem apenas age como tal porque além de sua estética ter sido modificada, seu eu interior também fora metamorfoseado em algo que é movido somente por seus instintos. O homem que ainda vive no corpo da criatura fantástica perde a responsabilidade por seus atos.
Mas Bakhtin afirma que na vivencia humana não há álibi, pois cada sujeito é responsável por seus próprios atos, com o cargo dessa responsabilidade ele interfere dialogicamente na vida dos outros sujeitos que estão ou não ao seu redor, como uma reação em cadeia. Portanto a perda dessa responsabilidade acarreta na perda da própria ética. Esse principio geral de agir entre as relações humanas, a responsabilidade de seus atos que interferirão no dialogo com outros sujeitos é o constante vir-a-ser em que o ser humano se encontra. A ética consiste em respeitar esse vir-a-ser, culminando nas diferenças que há em cada um e no próprio outro, que para uma visão interior está completo, ao passo que o próprio eu ainda não.
Quando é um lobisomem Lupin não possui linguagem, não é capaz de interiorizar o signo ideológico de suas situações vividas, enquanto criatura fantástica, para sua própria consciência, pois está tomado pelo aspecto volitivo-emocional de um lobisomem, que não possui quase nenhum poder de escolha quanto aos seus atos, estando preso em suas vontade de apenas ferir o outro. Quando lobisomem Lupin é capaz de ferir a aqueles que ama, pois não há nenhuma mostra axiológica em seu interior, esta se perde com a transformação.
            Mas porque Lupin quando lobisomem ataca? Pelo simples fato de que ele é um lobisomem? Não exatamente. Entramos na questão da estética, que se funde diretamente com o respeito (ética) do vir-a-ser do outro. Aqueles que estão ao redor de um lobisomem, mesmo que não fosse agressivo, sem tomar nessa instancia o professor Lupin como exemplo, é incapaz de aceitar uma criatura, como quase sempre ocorre com as criaturas fantásticas. As pessoas ao redor não respeitam a estética diferente de um lobisomem, pois essas pessoas não possuem ética suficiente para tal. Trocando de mundo fantástico, para o real, tem-se isso a cada instante, dificilmente, respeita-se por completo as diferenças estéticas do outro, a mídia é o maior exemplo disso que ao invés de mostrar os diferentes rostos e corpos, traça um estereótipo igualitário de beleza que dificilmente pode ser atingido.
            Com isso, as pessoas comuns, inclusive o lobisomem, vê o outro como um ser completo e terminado ao menos em seu exterior, algo que o homem que é lobisomem não possui, esse estado findado, pois ele vive em constante transformação, seu estado de vir-a-ser não termina aos olhos dos outros.
            Assim como o lobisomem, essa criatura fantástica que enquanto homem possui sua ética e discernimento, sua imagem estética dada como terminada para os outros; passa para o estado de constante transformação como lobo, um animal que não se acha responsável por seus atos, e sua imagem externa se vê abalada, pois não pode ser tomado como exemplo para as outras pessoas. O que resulta disso é duas criaturas unidas por um só corpo e porque não dizer uma só alma, mas que vivem em constante batalha e transformação. Assim como ele o sujeito humano, ao longo do tempo, já não passa a se reconhecer sua imagem estética, pois as modificações feitas, aos poucos, fazem com que ele perca partes de sua identidade, não podendo mais ser visto pelo outro como um ser acabado, mas sim que continua em constante mudança exterior e interior.
            Perdido em seu âmago, o homem por vezes não sabe mais discernir o limite e as conseqüências de seus atos, mesmo que na prática isso seja impossível, porque não há como por a culpa no outro, todos somos responsáveis por nossos próprios atos. Lupim, em sua forma humana jamais poderia culpar, mesmo se quisesse, ao lobisomem que numa noite de lua cheia lhe atacou. Mesmo se o fizesse, ainda assim a culpa cairia sobre ele.
            Enfim, podemos observar que não há como fugir de seus atos, transformando a batalha que existe entre o homem/lobisomem como metáfora e exemplo, das batalhas que o próprio sujeito enfrenta no seu dia a dia. Vive em constante luta para manter sua ética, perdida por vezes numa metamorfose estética.



BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4.ed. Martins Fontes. São Paulo. 2003. Trad. de Paulo Bezerra.

HARRIS, Charlaine. Série Vampiros Sulinos: Club Dead; Dead and Gone.- Tradução Didática

ROWLING, J.K. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Rio de Janeiro: Rocco. 2000.

SOBRAL, Adail. Ético e Estético Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: Conceitos-Chaves.São Paulo: Contexto. 2005.

TODOROV,Tzevtan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Pespectiva,2007.






[1] Hipertricose é uma disfunção genética em que as faces e outras partes do indivíduo cobrem-se de pêlos espessos, conferindo-lhe uma aparência de lobisomem.

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