domingo, 19 de setembro de 2010

Estética e estilo em Bakhtin



Luciano Novaes Vidon (UFES)

Invejo o ourives quando escrevo;
(...)
E horas sem conto passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento. (O. Bilac, “Profissão de fé”)

Voloshinov/Bakhtin, no ensaio Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica) [1926][1], iniciam uma discussão sobre o problema do discurso na vida e na arte observando que, na concepção formalista da linguagem, a arte é vista como desvinculada da história e da sociedade. Esta concepção reflete, na verdade, toda a perspectiva positivista instaurada a partir do século XIX. “Invejo o ourives quando escrevo”. Essa imagem do poeta, arquitetada por Bilac, representa bem uma concepção estética e estilística advinda desse contexto.
É sobre essas duas questões, estética e estilo, que me debruço aqui.

A discussão levantada por Voloshinov/Bakhtin (op. cit.) é fundamental porque toca questões até então indiscutidas(-íveis) - como estilo, autoria, gêneros discursivos - pela lingüística, por um lado, ocupada com seu objeto de investigação integral e concreto, e pela crítica literária, ocupada, por sua vez, com a imanência da literatura. Para os autores do círculo bakhtiniano, equivocam-se os teóricos que deixam de levar em conta o método sociológico para o estudo dessas questões, insistindo em tratá-las sob a égide da forma artística.
Para os formalistas,

“O ‘coração artístico’ imanente da literatura possui estrutura especial e um direcionamento peculiar por si só; assim dotado, ele é capaz de desenvolvimento evolucionário autônomo, “por natureza”. Mas no processo desse desenvolvimento, a literatura se torna sujeito da influência ‘casual’ do meio social extra-artístico”. (id.)

Nesse sentido, o campo da literatura seria autônomo, assim como o de outras áreas artísticas. Ou seja, a arte deveria ser estudada pela própria arte, dentro de princípios definidos por ela. O sociológico só apareceria como influência casual do meio sobre a atividade artística. Limitar-se-ia, assim, a atuação do sociólogo à interação casual entre arte e seu meio social extra-artístico circundante. Nesta perspectiva, segundo Voloshinov/Bakhtin (id.), “a arte é tratada como se ela fosse não-sociológica ‘por natureza’, exatamente como é a estrutura física ou química de um corpo”.
Rompe-se, assim, um laço entre estética e ética, separando-os e delegando à arte uma análise puramente formal, abstrata e idealista.
Opõe-se, dessa forma também, o social ao individual, o coletivo ao singular.
Porém, dentro da perspectiva bakhtiniana não cabe essa visão essencialista da arte. A arte faz parte, como todos os campos da atividade humana, do domínio da ideologia e, portanto, é passível de uma investigação pelos métodos sociológicos.

“Todos os outros métodos ‘imanentes’ estão pesadamente envolvidos em subjetivismo e têm sido incapazes, até hoje, de se libertarem da infrutífera controvérsia de opiniões e pontos de vista e, portanto, menos ainda capazes de encontrar qualquer coisa mesmo remotamente semelhante às fórmulas rigorosas e exatas da química. Nem, naturalmente, pode o método marxista reivindicar tal ‘fórmula’; o rigor e a exatidão das ciências naturais são impossíveis no domínio do estudo ideológico devido à própria natureza do que aí se estuda”. (id.)

No dizer de Voloshinov/Bakhtin, “todos os produtos da criatividade humana nascem na e para a sociedade humana”. (...) “A arte, também, é imanentemente social”. E “o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social”. Trata-se de postular, então, uma teoria sociológica da arte.
Voloshinov/Bakhtin procuram focalizar, em sua crítica, três elementos considerados pontos de vista falaciosos que estreitam severamente os debates sobre a natureza das formas artísticas. Estes elementos são a obra, o autor e o contemplador. Sobre a obra recai uma análise estritamente formalista, enquanto sobre o autor e o contemplador o ponto de vista é psicologicamente individualizante.

“Ambos os pontos de vista pecam pela mesma falta: eles tentam descobrir o todo na parte (...). Entretanto, o ‘artístico’ na sua total integridade não se localiza nem no artefato nem nas psiques do criador e do contemplador considerados separadamente; ele contém todos esses três fatores. O artístico é uma forma especial de interrelação entre criador e contemplador fixada em uma obra de arte”.

Nesta perspectiva, concebem-se os gêneros discursivos, e, dentro destes, o literário, como formas especiais de comunicação, em que se interrelacionam, de uma determinada forma, locutor e ouvinte, enunciador e destinatário. O que faz de um enunciado uma obra artística (ou jurídica, ou política, etc.) é exatamente o processo de interação eu-outro (sob a forma de locutor-ouvinte, enunciador-destinatário, escritor-leitor, etc.). Isso não significa, entretanto, que esses campos não se comuniquem. Ao contrário, há um profundo diálogo entre o artístico e o político, entre o artístico e o jurídico, entre o artístico e diversos outros campos discursivos, em maior ou menor grau.
Há esferas comunicativas ou gêneros discursivos em que essa interação entre o artístico e outras formas discursivas é evidente. Na esfera jornalística, por exemplo, o gênero crônica (e outros gêneros próximos, como os artigos de opinião e os comentários de várias naturezas) se configura em uma zona limítrofe entre o literário e o jornalístico, revelando, assim, um profundo diálogo entre essas duas estéticas.
Por isso, toda relação comunicativa é, para Bakhtin, ideológica, independente de ser artística, jurídica, política, religiosa etc. As formas comunicativas participam do fluxo unitário da vida social, refletindo a base econômica comum, desenvolvendo-se em ininterrupta interação e troca entre si. Na comunicação cotidiana, as formas comunicativas estão mais diretamente vinculadas à vida em si. Isto permite verificar com maior clareza o quanto o contexto extraverbal torna a palavra (enunciado, discurso, etc.) plena de significado para os interlocutores. Este é um princípio básico da teoria bakhtiniana, o que conduz à formulação da seguinte pergunta: De que modo o contexto extraverbal torna um enunciado pleno de significado?
Para Voloshinov/Bakhtin, isto se explica basicamente por três fatores:
-          o espaço comum dos interlocutores;
-          o conhecimento partilhado da situação;
-          a avaliação comum desta situação.
O sentido do enunciado depende desses fatores, em menor ou maior grau.
Conforme Voloshinov/Bakhtin,

“A situação extraverbal (...) não age sobre o enunciado (...) como se fosse uma força mecânica. (...) A situação se integra ao enunciado como uma parte constitutiva essencial da estrutura de sua significação. Consequentemente, um enunciado concreto (...) compreende duas partes: (1) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. É nesse sentido que o enunciado concreto pode ser comparado ao entimema.” (p. 09). (...) Julgamentos de valor presumidos são (...) não emoções individuais, mas atos sociais regulares e essenciais. Emoções individuais podem surgir apenas como sobretons acompanhando o tom básico da avaliação social. O “eu” pode realizar-se verbalmente apenas sobre a base do nós”. (p. 10)

Voloshinov/Bakhtin apontam, desta maneira, a natureza social da entoação nas situações de enunciação verbal.

“Na entoação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é na entoação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor ou interlocutores – a entoação é social por excelência. (...) Ela é especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante”. (p. 13)

De acordo com Voloshinov/Bakhtin, o enunciado estabelece uma orientação social dupla, em direção ao interlocutor e ao objeto do enunciado. Assim, na enunciação interagem efetivamente três elementos: o falante (autor), o ouvinte (destinatário) e o tópico da fala (herói ou superdestinatário) – o terceiro participante da enunciação é, muitas vezes, o próprio momento constitutivo do todo do enunciado e, numa análise mais profunda, pode ser descoberto.
Para os teóricos russos, não se pode perder de vista a objetividade lingüística do enunciado, nem deixar de considerar sua subjetividade. No entanto, ambos aspectos devem partir da interação social fundante da enunciação. Nem a materialidade lingüística objetiva do enunciado nem a subjetividade psicológica dos interlocutores dão conta do que há de não-dito na enunciação. Este fato teórico só pode ser considerado profundamente tendo em vista o todo da enunciação.
Sob este ponto de vista, a seleção de palavras e a recepção desta seleção são determinadas por julgamentos de valor presumidos:

Palavras articuladas estão impregnadas de qualidades presumidas e não enunciadas. (...) A simples seleção de um epíteto ou uma metáfora já é um ato de avaliação ativo orientado em duas direções – em direção do ouvinte e em direção do herói”. (pp. 17-9)

Estas considerações de Voloshinov/Bakhtin permitem vislumbrar uma outra concepção de estilo. A atividade estilística deixaria de contemplar apenas um fim essencialmente, por natureza, artístico-literário, pressupondo uma natureza imanente na língua, para centrar-se no processo de seleção dos recursos lingüísticos e dos efeitos de sentido buscados e produzidos a partir desta seleção.
No início mesmo deste texto, selecionamos, para compor a epígrafe, dois fragmentos do poema “Profissão de fé”, de Olavo Bilac. A seleção do autor e do poema não foi aleatória; obedeceu a um querer-dizer cujo principal objetivo era ilustrar o pensamento do início do século XX a respeito de estilo e de estética. Além dessa seleção, realizamos o recorte dos fragmentos do todo do poema. Aqui, indubitavelmente, recorremos aos versos que consideramos, do nosso ponto de vista, os mais representativos para a construção de sentidos que almejávamos, qual seja, colocar em questão a visão bilaquiana/parnasiana a respeito do fazer literário e, conseqüentemente, questionar o discurso sobre estética em vigor nos horizontes filosóficos, lingüísticos e literários, do círculo de Bakhtin. Essas escolhas partiram de uma decisão ética, de responsividade e responsabilidade minhas em relação ao objeto de discurso tematizado. Mas partiram, também, de um projeto estético de texto, dirigindo-se a um outro-interlocutor, a um herói, dentro dos limites e das possibilidades oferecidas pelo gênero ensaio acadêmico. Partiram, portanto, de um eu e de outro, éticos e estéticos.




[1] VOLOSHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica) [1926]. Tradução feita por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza para fins acadêmicos, com base na tradução inglesa Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics, publicada em V. N. Voloshinov, Freudism, New York. (Academic Press, 1976).

Um comentário:

  1. Muito boas considerações sobre Voloshinov/Bakhtin. Sobretudo aquelas que se referem ao estabelecimento da orientação social dupla presente em um enunciado.

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