Renata Archanjo - UFRN[1]
archanjo@ufrnet.br
“Não há conhecimento em geral, tal como não há ignorância em geral. O que ignoramos é sempre a ignorância de uma certa forma de conhecimento e vice-versa o que conhecemos é sempre o conhecimento em relação a uma certa forma de ignorância. Todo o acto de conhecimento é uma trajectória de um ponto A que designamos por ignorância para um ponto B que designamos por conhecimento”. Boaventura de Sousa Santos, 2007. p. 29.
Um dos mitos mais famosos da história antiga da humanidade, o enigma proposto pela esfinge grega à Édipo, diz: “decifra-me ou devoro-te”. É o saber, o conhecer, o compreender, o interpretar, o decifrar que se coloca como chave para, livrando-se do terror da ignorância, se ter concedido o dom da vida. Saber e compreender para ter o direito de viver. Onde conhecimento e vida se unem em uma relação mais do que direta, constitutiva. Desde então, conhecimento e vida nem sempre tem andado tão próximos e, em muitos momentos da história, caminharam em lados completamente opostos. Criou-se outro mito: o do conhecimento científico.
Esse novo mito habita, tal qual a esfinge às portas de Tebas, as esferas da produção do conhecimento humano arvorando-se o direito de ser o meio legítimo para se compreender céu e terra, homem e Deus, passado, presente, futuro e todas as leis que os regem, do universo ao cotidiano. Tal qual a esfinge, o novo mito devora aqueles que não concebem o conhecimento segundo as leis e regras objetivas e demonstráveis, por ele estabelecidas. Assim, o conhecimento oriundo da vida e da experiência dos sujeitos vai sendo relegado ao plano meramente das crenças e das superstições.
Não parece surpresa um momento de falência de valores que tão dicotômicamente separam ciência e vida. Morin (1996) ao analisar a crise dos fundamentos do conhecimento científico apresenta como ponto central a ser questionado, o conceito de objetividade sobre o qual se assentam os pilares dos enunciados científicos postulados pela ciência clássica. A busca da objetividade na ciência (a partir da observação de dados e verificações empíricas) não prescinde do observador-pesquisador (sujeito) que, membro de uma comunidade (social e científica), possui subjetividade, segue técnicas e procedimentos compatíveis com sua formação (social e científica). Nesse sentido, parece um tanto impensável, pensar os critérios de objetividade sem uma interpenetração da subjetividade do sujeito que conduz a pesquisa. Se este ainda fosse o único fato, ele por si só já revelaria a necessidade de se resgatar o papel do sujeito.
O mundo da ciência moderna como mundo dos dados, “o conhecimento da coisa e o conhecimento do indivíduo” (BAKHTIN, 2003, p.393) é um mundo objetivo. Porém, esse mundo não será alcançado sem a atividade do sujeito-observador-pesquisador. Ainda segundo Morin (1996), há, no mundo das teorias, o indemonstrável, as atitudes de curiosidade, de perplexidade, de questionamento do real, de imaginação; há, além disso, interesses de muitas naturezas. A ciência não é totalmente científica, e essa é uma verdade que muitos cientistas ainda vão precisar descobrir. Na ciência encontram-se mobilizados tantos os aspectos objetivos da humanidade quanto os subjetivos. Em suma,
“[...] todos os elementos constitutivos do conhecimento científico – uns que têm suas raízes na cultura, na sociedade, outros no modo de organização das idéias, da teoria – obrigam-nos a uma interrogação que excede o quadro da epistemologia clássica” (MORIN, 1996, p.18).
Como desconsiderar o sujeito, então? A crise paradigmática da ciência moderna parece revelar a necessidade de reintroduzir o sujeito, a cultura e a história nos modos de produzir conhecimento sobre o ser humano, superando o modelo do sujeito apenas razão. É o lugar que o sujeito sócio-histórico ocupa no processo de produção do conhecimento que parece ser o grande desafio a ser vencido. Considerando-se o sujeito e seu lugar sócio-histórico, abre-se a possibilidade de serem consideradas outras verdades, diferentes das verdades científicas deduzidas e comprovadas pelas leis do método científico.
Na contemporaneidade, o sujeito, a sociedade e a historicidade readquirem um lugar que lhes havia sido negado no seio da ciência clássica. Essa última, ao obedecer ao paradigma cartesiano, necessitou eliminar o mundo do sujeito e a sua subjetividade, que seriam da ordem da filosofia e da reflexão, para assumir o mundo do objeto, único mundo passível de objetividade e racionalidade.
A perspectiva de uma nova ciência apóia-se no pressuposto de que a vida e o sujeito serão pré-condições para sua existência e seu desenvolvimento. “Tanto a ciência como a cultura são processos construtores de, e construídos por, processos sociais” (SCHNITMAN, 1986, p.13), e, dessa forma, a participação de uma em outra não pode mais ser ignorada no contexto da contemporaneidade.
Bakhtin (2003), em “Arte e responsabilidade”, introduz a questão da ética advertindo-nos sobre a necessidade de superar a clássica dicotomia, defendida em sua época, entre vida e arte e entre vida e ciência. Segundo ele, os “três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade” (BAKHTIN, 2003, p. XXXIII). Defendendo uma interpenetração dos três campos, Bakhtin aponta o homem, o ser humano, como um ser responsável que, ao transitar em cada uma das três esferas, deve integrá-las na unidade da responsabilidade que caracteriza cada uma e todas entre si.
A responsabilidade é, para Bakhtin, a categoria ética fundamental sobre a qual está ancorada a base de toda atividade humana. É possível que, em cada esfera – na cultura, na arte e na vida –, desenvolvam-se conhecimentos e atividades de forma isolada; no entanto, sem a implicação do indivíduo e de sua responsabilidade, não há como atribuir uma qualidade ética a esses conhecimentos e atividades.
A reflexão que fazemos, contemporaneamente, sobre o papel fundamental que exerce o resgate da ética como um padrão para a produção do conhecimento apresenta, como elemento para essa discussão, uma reflexão sobre a constituição do campo de estudos da Lingüística Aplicada e o exercício de sua atividade. Como sujeito, antes de me constituir como pesquisadora ou cientista (no sentido amplo da palavra), não posso deixar de me interrogar sobre meu campo e minha prática.
Ler e falar sobre a trajetória histórica da Lingüística Aplicada, enquanto campo de estudos e de produção do conhecimento, mostra que a discussão não se esgotou em um passado recente quando ela buscava conquistar um espaço próprio. Ainda hoje, a busca por um “perfil de lingüística aplicada numa espécie de subjetividade coletiva” (BOHN, 2001, p.3-6) pode não ser sinal de consenso se aqueles que assumirem a identidade de lingüistas aplicados não se reconhecerem e não forem reconhecidos por seus pares como tal. Talvez as raízes possam estar no que poderíamos chamar de conflito de interesses: “busca de convergência de linhas de pesquisa; conjunto de atitudes; ações investigativas; diversidade de interesses”. Uma prática que não representa a teoria que se defende; uma atividade que extrapola os limites da interdisciplinaridade, propondo como objeto de estudo para a Lingüística Aplicada um problema que não tem bases em material lingüístico, ou ainda uma prática que gere conflitos entre a atividade de pesquisa real e os limites institucionais a ela impostos.
O que pode ser tão importante quanto a clara definição das atividades pertinentes a uma ciência e de uma sólida identidade de um campo do saber? Essa resposta só pode vir da ética que perpassa todas as atividades desse campo, que lhe cobra uma responsabilidade e que lhe confere credibilidade. O lingüista aplicado em atividade no seu campo de estudos está à mercê de conflitos éticos, no âmbito dos quais lhe são cobradas as responsabilidades diante de seu campo de trabalho, estudo e atuação.
No entanto de que padrões éticos e de que responsabilidade estamos falando? Certamente, não apenas da ética da pesquisa (códigos de conduta profissional, padrões de comportamento na relação entre pesquisador e pesquisado, créditos de autoria e remissão etc.) que é, claramente, uma condição prévia para a credibilidade de qualquer atividade científica (CELANI, 2005). Porém, podemos supor a existência de um outro tipo de ética, implicada nas relações que se travam nas atividades desenvolvidas nos diversos campos de conhecimento. Um padrão ético que apresente um conhecimento responsivo e responsável à vida e aos indivíduos que se constituem na e pela linguagem (BAKHTIN, 2010).
Esse padrão ético implica um tipo de conhecimento teórico solidamente ancorado, porém não em qualquer teoria, mas naquela que puder considerar a diversidade de forças sociais, políticas, ideológicas e subjetivas que agem no campo da linguagem em uso e na produção dos discursos.
Implica, igualmente em um tipo de conhecimento, onde se reconheça e se cultive a tolerância, a diferença, a solidariedade, de modo que o discurso possa ser compreendido na dimensão da sua alteridade constitutiva, respeitando o lugar do outro, a voz do outro, iluminando-a ou obscurecendo-a, mas reconhecendo seu lugar de constitutividade em uma visão dialógica de funcionamento da linguagem.
Nesse tipo de discurso, por fim, implica reconhecer um conhecimento que possa fazer um movimento incessante de ressignificação, um movimento em que ciência e teoria se confrontem com vida e prática, unidas na unidade da responsabilidade que caracteriza a ética do ser humano implicado no mundo e nas suas relações sociais.
Pensar um campo de produção de conhecimento e aliar esse objetivo ao compromisso com a sociedade significa tentar dar respostas às necessidades apontadas por essa mesma sociedade. De fato, qualquer ciência tem obrigação de dar um retorno a quem lhe questiona, restando saber se ela o fará em um sentido estrito, produzindo um conhecimento relevante para o campo de saber, para a comunidade científica, para as instituições de pesquisa e para o mundo da cultura, ou em um sentido mais amplo, refletindo sobre os desafios impostos por uma sociedade na qual o tipo de conhecimento produzido preencha necessidades ao mesmo tempo internas (institucionais, científicas etc.) e externas (individuais, sociais, políticas, ideológicas etc.) unindo o mundo da cultura ao mundo da vida (BAKHTIN, 2003).
Vivemos em tempos, parafraseando Bauman (2001), de uma modernidade líquida, na qual as relações sociais se estabelecem sobre bases móveis, instáveis e fluidas; na qual o conhecimento produzido sobre os indivíduos e pelos indivíduos modifica-se conforme modificam-se os interesses pessoais, políticos, ideológicos desse indivíduo que tem corpo, raça, cor, sexo, classe social, valores culturais e éticos – traços, enfim, que o constituem e que influenciam seu modo de existir e de significar no mundo, traduzidos, por ele, no uso da linguagem. É bastante provável que as necessidades desse indivíduo complexo em uma sociedade igualmente complexa não sejam alcançadas se o conhecimento sobre ele não refletir essa complexidade.
O conhecimento que se almeja produzir na contemporaneidade, dada a diversidade metodológica, epistemológica e sociológica, deve originar textos nos quais os discursos não se eximam de expressar posicionamentos e valores, renunciando à ilusão de uma transparência e neutralidade do discurso científico.
Se muda a pesquisa, em relação a seu contexto de produção, à diversidade de temas de pesquisa, de modos de pesquisar, de saberes implicados, mudam, igualmente, os valores e as implicações éticas que atravessam a pesquisa. Novas tensões se criam, novos confrontos e posições valorativas se enfrentam para dar sentido a novos discursos. Busca-se um retorno à sociedade e consegue-se um aumento da responsabilidade.
Responsabilidade, que entendemos não apenas como a obrigação ética de apresentar à sociedade um produto de reflexão idôneo quanto à sua feitura, quanto ao respeito para com os pesquisados, quanto às regras e normas dos procedimentos institucionais aos quais a pesquisa se vê subordinada; mas responsabilidade como a necessidade de submeter o produto de reflexão da pesquisa ao confronto entre as posições valorativas do Eu e as dos Outros que se interrelacionam no acontecimento dialógico de cada texto, tornando-o produto de um pensamento não-indiferente, de um pensamento ético.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Tradução de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.155p.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 258p.
BOHN, Hilário. Lingüística Aplicada e contexto brasileiro: reflexões e boa prática. In: VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada: A Linguagem como Prática Social (Programa e Resumos). Belo Horizonte: UFMG/ALAB, 2001. 1 CD ROM.
CELANI, Maria Antonieta Alba. Questões de ética na pesquisa em Lingüística Aplicada. Linguagem & Ensino, v. 8, n. 1, p. 101-122, jan/jun. 2005.
MORIN, Edgar. Problemas de uma epistemologia complexa. In: O Problema Epistemológico da Complexidade. Portugal: Publicações Europa – América, 1996.
SCHNITTMAN, Dora Fried. (Org.) Novos paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. 294p.
SOUZA SANTOS, Boaventura. A critica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007. v. 1, 415p.
[1] Profa. Dra. da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Integrante da Base de Pesquisa Práticas Discursivas na Contemporaneidade do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL/UFRN.
Nenhum comentário:
Postar um comentário