domingo, 19 de setembro de 2010

Apontamentos sobre produção de sentidos na ficção televisual à luz de conceitos Bakhtin




Profa. Dra. Maria Cristina Palma Mungioli
da Escola de Comunicações e Artes da USP

            O presente texto procura apresentar explorações acerca da produção de sentido das produções ficcionais de televisão, sobretudo telenovelas, com base em alguns conceitos de Bakhtin. Tais objetos vem se constituindo, ao longo de quase 40 anos de convívio diário com o telespectador,  peças-chave para a compreensão não apenas da cultura midiática brasileira, mas principalmente da cultura brasileira num sentido lato. Nessa perspectiva, acredito que seu estudo à luz dos conceitos bakhtinianos possam trazer elementos não apenas para sua compreensão, mas principalmente para a compreensão das dimensões estéticas e éticas dos produtos da indústria cultural brasileira. No texto que se segue, apresento apenas alguns aspectos que poderão servir como pontos de partida para a discussão de questões estéticas e éticas que permeiam as ficções de televisão no Brasil.

Introdução
O século passado assistiu à emergência e à consolidação de novas e complexas formas de comunicação verbal e audiovisual mediadas pela tecnologia (rádio, televisão, internet) que, em termos de linguagem e produção de sentido, caracterizam-se não pela exclusão, mas pela adição, complementaridade e hibridização de gêneros discursivos, compreendidos aqui numa perspectiva ampla, tal como os considerou Bakhtin (2002, 2003). Trata-se de uma configuração por meio da qual se constroem sentidos não apenas pela compreensão do funcionamento de determinado gênero discursivo, ou pela apreensão do tema ou do conteúdo em pauta, mas, sobretudo, pela forma complexa como esses elementos permeados pela plasticidade da palavra e pelos valores ideológicos do signo lingüístico se constroem e se reconstroem nos meios de comunicação dentro do fluxo das relações constituídas por meio da linguagem verbal e não-verbal com predominância da primeira modalidade.
            Dentro desse quadro, em nosso país, ocupa lugar de destaque a linguagem audiovisual e mais precisamente a linguagem televisual. Afinal, a televisão é o meio de comunicação de massa de maior penetração no Brasil. Muito embora o uso da internet como fonte de informação e entretenimento venha ocorrendo de maneira crescente, é ainda por meio da programação de televisão aberta que a imensa maioria dos brasileiros se informa e se diverte, mesmo em um cenário em que há concorrência de outra modalidade de programação de televisão como é o caso da televisão por assinatura ou mesmo da internet. Além disso, é preciso ter em mente que há uma grande quantidade de conteúdos veiculados na internet que se referem à programação de televisão aberta e que fazem parte da imensa teia de relações e mediações que se estabelecem entre produto televisual e sociedade.
Diversos estudiosos têm chamado atenção para o fato de a televisão no Brasil e na América Latina possuir um caráter bastante diverso daquele encontrado na Europa ou nos Estados Unidos da América.  A televisão no Brasil, apesar de ter nascido sob a égide da iniciativa privada, sempre esteve intimamente ligada às estruturas governamentais quer no sentido político do termo, quer no sentido de apropriação de um ideário “pedagógico” dos meios de comunicação de massa elevados a uma categoria um tanto quanto discutível de “educadores” do Brasil. No primeiro sentido, estamos nos referindo, principalmente, ao formidável aparato tecnológico fornecido pelo Estado para que as imagens de televisão ganhassem os lares de todos os brasileiros. O melhor exemplo disso é a criação pelos sucessivos governos da Ditadura Militar de uma ampla rede de telecomunicações com a finalidade de integrar o país por meio da televisão.
Dessa forma, os dois sentidos com que a televisão foi vista no Brasil e aos quais nos referimos acima, ou seja, televisão privada fortemente ligada às estruturas governamentais e à  apropriação de um ideário “pedagógico”, relacionam-se de maneira dialética na construção de uma identidade nacional (construída pelos meios de comunicação de massa, principalmente, pela televisão) forjada pelo desenvolvimento de um raciocínio estratégico de que é preciso integrar para não entregar ou de que é necessário que você ame o Brasil ou então deixe-o. Esses são dois lemas caros aos governos militares pós-1964, mas que têm suas raízes em outros movimentos de cunho nacionalista como o republicanismo, populismo, ou o conservantismo de maneira geral.

1. Discursos, Enunciação na Construção do Sentido de Nacionalidade[1]
A linguagem, enquanto discurso, é entendida como espaço de conflito, onde se opera o confronto ideológico, próprio dos processos histórico-sociais. Dentro dessa perspectiva, adotamos, em nossas análises, os conceitos de discurso, enunciação e ideologia de acordo com as considerações de Bakhtin (2002, 2003) e buscamos estabelecer correlações entre a abordagem do pensador russo e as discussões acerca do sentimento de nacionalidade empreendidas por Bhabha (2003).
            Bhabha (2003: 199) propõe o entendimento do conceito de nacionalidade “(...) como uma forma de afiliação social e textual (...)” que se opõe ao conceito de nacionalismo como certeza histórica e natureza estável. Segundo esse raciocínio, o importante para compreendermos a nacionalidade e o nacionalismo é termos a noção de localidade da cultura, uma localidade que não encontra referência apenas no mundo “real”, mas principalmente num conjunto de sentimentos que emerge nas relações humanas, principalmente naquelas em que a narrativa da nação surge como força aglutinadora, como metáfora da própria nação.
            Nessa perspectiva, Bakhtin (2002) fornece fundamentos teóricos para discussão do papel das produções ficcionais brasileiras como lugar privilegiado de enunciação da nacionalidade brasileira. De acordo com Bakhtin (2002), mesmo a realização pessoal de apropriação da língua é instaurada por meio da compreensão semiótica que é de natureza social, pois todo enunciado se constrói direcionado e condicionado por duas forças que agem sobre o indivíduo, a individual e a social. A força individual é ela própria constituída social e historicamente por meio das relações semióticas que produzem o surgimento da consciência individual que emerge durante os processos de interação verbal. A enunciação individual não pode ser dissociada do todo social e histórico no qual ela se insere e com o qual dialoga de forma constitutiva e interpretativa.
            Dessa forma, toda palavra, entendida aqui em sua dimensão discursiva, demanda uma resposta, uma contrapalavra (Bakhtin 2002). Ou seja, o processo de comunicação verbal, e mais especificamente o processo de construção de sentidos, coloca em jogo não apenas a capacidade de o ser humano expressar-se por meio da fala – referida aqui em seu sentido estrito -, mas também, e principalmente, de se fazer entender e compreender por meio de todo um saber discursivo tecido pelas relações sociais de sujeitos constituídos social e historicamente. A construção de sentidos ocorre por meio de um processo caracterizado pela alteridade, ou seja, de contínua interação com o outro. Processo que compreende o verbal, o não-verbal e o extraverbal. Nesse quadro, o extraverbal não corresponde apenas ao contexto imediato que envolve os interlocutores, mas também diz respeito à constituição dos falantes como seres socialmente organizados (e, portanto, ideologicamente constituídos). O extraverbal não se define de maneira mecânica, mas dentro de uma dialética que envolve o percurso que “articularia o verbal e o não-verbal, o dito e o não-dito, o posto e o pressuposto, o entendido e o subentendido.”[2]

2. Cronotopo e Telenovelas Adaptadas
Na perspectiva de Bakhtin (2003), as diversas temporalidades emergem por meio da inter-relação que se constrói entre forma e conteúdo permeada pela relação tempo-espaço presente na sociedade e que é incorporada à literatura. Para investigar e compreender essa inter-relação, Bakhtin (1993: 211) criou o conceito de cronotopo. Para o estudioso russo, a relação tempo-espaço é dinâmica e organicamente construída de maneira concomitante pelo autor, obra e leitor na medida em que todos se inserem no quadro da comunicação dialógica. Assim, na literatura, a característica cronotópica se evidenciaria na maneira como as pessoas são representadas[3] e, por conseguinte, se concretizaria por meio das expansões/contrações das dimensões espaciais e temporais nas quais atuariam essas pessoas. Assim, o conceito de cronotopo, como todos os conceitos desenvolvidos por Bakhtin, integra-se de maneira constitutiva e orgânica ao mundo construído pela enunciação e pelo discurso. A inter-relação tempo-espaço se configura como uma espécie de denominador comum onde se aglutinam, debatem-se e, enfim, de onde emergem as particularidades dos seres construídos por meio das interações sociais.
            O uso de histórias adaptadas de textos literários pode ser visto como uma forma de aceitação do status quo, como uma espécie de escapismo, como uma forma de fugir da realidade. Guimarães (1996-97) afirma que, a partir de 1975, “se às telenovelas originais cabe representar o Brasil contemporâneo, às adaptações cabe apresentar ao telespectador o Brasil histórico.”. E conclui que as novelas históricas teriam sido empregadas como uma forma de o governo militar incentivar uma fuga da discussão dos problemas contemporâneos[4]. Entretanto, parece-nos importante assinalar que a chave de interpretação de uma obra estética (literária ou televisual) não se encontra restrita ao espaço-tempo retratado na história, mas se localiza no espaço da interdiscursividade que instaura, a partir dos significados criados na obra revista por um adaptador contemporâneo ao telespectador, novas leituras imprimindo novas significações aos temas tratados, alterando o texto-fonte para que ele se torne legível e agradável para seu público.
            Assim, por exemplo, as diversas adaptações de obras literárias como Sinhá Moça (Maria Dezonne Pacheco Fernandes, escrita na década de 1940) e Escrava Isaura (Bernardo Guimarães, 1875) contêm visões diferentes sobre a escravidão em relação àquela retratada nas obras originais. As adaptações de Sinhá Moça ou Escrava Isaura contêm também a luta dos escravos pela liberdade, a luta política contra o poder dos escravocratas – representantes de um sistema de produção francamente em decadência - e a luta pela liberdade dos escravos empreendida pelos abolicionistas, a luta contra a violência em relação à pessoa humana que, em virtude de um regime econômico e político, é privada de ser dona da própria vida. Essas preocupações não se faziam presentes, por exemplo, na obra original de Bernardo Guimarães[5].
Os cronotopos senzala e casa-grande presentes nas duas telenovelas possuem matizes diferentes daqueles constantes nos textos originais, uma vez que como cronotopos adaptados não correspondem às relações construídas entre tempo-espaço da época da obra literária, mas sim a uma nova relação tempo-espaço específica da época da adaptação. O cronotopo não é fixo nem rígido; ele se constrói dinâmica e organicamente no tecido social regido pelos discursos impregnados pela dimensão dialógica das relações de linguagem.
Por isso, é preciso cautela ao analisar a transposição de obras literárias para a televisão ou mesmo o remake de uma telenovela para que não se acredite que se trata de uma ingênua repetição do já-visto e do já-conhecido. Isso porque esse tipo de adaptação coloca-nos diante da instauração do duplo-tempo a se refere Bhabha (2003: 207) “para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo reprodutivo” e possibilita novas interpretações e aproximações que incidem sobre o antigo e o atual tornando-os passíveis de compreensão e transformação.

Considerações finais
Considerar o gênero teledramatúrgico como lugar de memória, como espaço de construção de sentidos é levar em conta não apenas a imensa penetração que o meio televisual tem no Brasil, mas principalmente compreender a força que as narrativas têm de colocar frente a frente as diversas temporalidades que nos constituem como seres históricos e os diversos discursos que nos constituem como seres de linguagem.

Referências bibliográficas
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
BAKHTIN, Mikhail.  Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:  Hucitec,  2002.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). São Paulo: Hucitec/Editora da UNESP, 1993.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 33ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CLARK, Katherine & HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
GUIMARÃES, Hélio. A presença da literatura na televisão. Revista da USP, São Paulo (32): 190-198, dezembro/fevereiro 1996-97.


[1] Tratamos de outros aspectos referentes à enunciação na televisão em co-autoria com a Profa. Maria Lourdes Motter em: Gênero teledramatúrgico: entre e a imposição e a criatividade. Revista USP, v. n. 76, p. 157-166, 2008, e em nossa tese de doutorado intitulada Minissérie Grande Sertão: Veredas: gêneros e temas construindo um sentido identitário de nação.
[2] Cf. Valdemir Miotello, Bakhtin em trabalhos de estudo da língua: levantando o problema do pertencimento, in Estudos Lingüísticos XXXV, p. 176-180, 2006. [176/180], disponível em http://www.gel.org.br/4publica-estudos-2006/sistema06/vm.pdf, capturado em 15.05.2008.
[3] Cf. Katerina Clark & Michael Holquist, Mikhail Bakhtin, principalmente p. 296-300.
[4] Em 1975, o Ministro da Educação, Ney Braga, sob o governo do General Geisel, publica o Plano Nacional de Cultura que propõe a valorização da cultura nacional por intermédio dos meios de comunicação de massa e em especial da televisão. Logo depois, voltam a ser veiculadas as telenovelas de conteúdo “histórico”.
[5] Cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, principalmente p. 142.

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