domingo, 19 de setembro de 2010

Da falta de estilo e de conteúdo no ensino de língua portuguesa por meio de gêneros do discurso


Partindo do tema comum para as discussões nas rodas deste ano, “Bakhtin e a Atividade Estética – Novos Caminhos para a Ética”, faço um recorte sobre meus questionamentos sobre o assunto: A formação de leitores. Há algum tempo venho tomando contato com os materiais didáticos usados na educação básica, e esse ano iniciei minha carreira docente. Com minhas observações nesse curto período, pude observar com clareza alguns princípios norteados por Bakhtin, e por seu círculo, colocados em prática, seja nas instruções para o professor, na concepção e organização de um material didático, e no que deve ser considerado relevante na correção de uma produção escrita.
A influência mais clara das discussões bakhtinianas na sala de aula é certamente a concepção de gêneros do discurso, e é sobre tal aspecto que pretendo me debruçar. Como documento organizador do ensino hoje, inicio a discussão pelos PCN para Língua Portuguesa, em cuja introdução vemos a seguinte passagem:

Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros refere-se a “famílias” de textos que compartilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em número quase ilimitado” (MEC/SEF, 2000, p. 26)

Mais adiante, no documento oficial, volta-se à noção de gênero:
Nessa perspectiva, necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas.(p.24)

Nota-se que a definição aqui apontada de Gêneros do discurso é quase escrita da mesma forma como Bakhtin expôs quando explicou tal concepção:

Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. (Bakhtin, 2003, p.261)

Tanto Bakhtin, como os PCN, colocam em evidência o aspecto “construção composicional”, porém chamo a atenção para o objetivo de escrita de cada um dos textos acima citados: Bakhtin buscava explicar a natureza dos enunciados, enquanto os PCN se preocupam com o ensino, ainda que também seja, em vários momentos, de produção de enunciados. Bakhtin esclarece que a construção composicional é o primeiro aspecto que observamos para identificar um gênero do discurso, e que a desenvoltura para usar um ou outro gênero se dá de forma muito natural, nas interlocuções dialógicas a que somos submetidos diariamente.
Parece-me oportuno remeter a teoria a um texto anterior de Bakhtin, publicado 30 anos antes de “Os gêneros do discurso”. Em “O problema do conteúdo, do material e da forma”, o pensador expõe dois grandes conceitos: formas arquitetônicas e formas composicionais, sendo a primeira referente a uma visão e vivência estética do mundo, enquanto a segunda seria a organização e efetivação dessa visão em matéria verbal. Nessa primeira conceituação, vemos que o autor define forma composicional quase com o conceito de gênero de discurso, apresentado três décadas mais tarde.
Chego, enfim, aos meus questionamentos. Não estariam os professores e profissionais relacionados ao ensino de língua portuguesa confundindo o conceito de construção composicional com o de gêneros do discurso, como o fez Bakhtin uma vez? Ao que vejo, a resposta é sim, pois os capítulos dos materiais didáticos que atendem ao PNLD ou ao PNLEM são “nomes” de gêneros, e cada um mostra como é a estrutura de determinado gênero e sua organização superficial, apresentando inclusive um tópico gramatical “camuflado” de gramática textual, enquanto não passa de um tópico retirado de um texto para a apresentação de uma regra normativa e, por fim, uma produção de texto dentro das “características” de determinado gênero.
Em geral, a produção de texto deve ser corrigida pelo professor que, por seu pouco tempo e incentivo, procura também ler tais textos de maneira superficial, verificando apenas se a construção composicional do gênero estudado foi atendida, e corrigindo eventuais problemas de ortografia.
Percebo que são raros os casos em que o conteúdo de um texto é analisado em sala de aula ou levado em consideração no momento de uma correção, menos ainda aspectos do estilo dos escritores, levados em consideração apenas em aulas de literatura, mas também sem olhar o texto de fato, e sim uma série de tópicos que enumeram o “estilo” do autor estudado.
Preocupo-me, por fim, com a apreciação estética que esses alunos podem ter de um texto escrito. Se o que se ensina na escola é mera identificação de textos em um ou outro determinado gênero, de que serve ler esses textos? Compreendê-los? Se a professora não se importa com o que estou escrevendo ou com o como, mas sim com as regrinhas daquele gênero, de que serve aprender a construir uma argumentação lógica, um enredo criativo, ou um encadeamento de ideias consistente?
Com as novas rodas de discussão, pretendo investigar essa observação, não muito científica, mas subjetiva, e buscar formas aprofundar essa investigação, para colocar novamente em jogo o conteúdo e o estilo de um texto, ao lado da construção composicional, a fim de que os alunos de hoje possam apreciar um texto esteticamente e produzir textos mais criativos e lógicos.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de P. Bezerra. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.261-306.

______. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: ______. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de A. F. Bernadini et al. 3. ed. São Paulo: Ed. da UNESP, 1993. p. 13-70.

GRILLO, S. V. C.; OLÍMPIO, A. M. Gêneros do discurso e ensino. Filologia e linguística portuguesa, São Paulo, n.8, p.379-390, 2006.

________________; MACEDO, C. M. Dialogismo e forma composicional em reportagens da revista Superinteressante. Alfa: revista de Linguística, São Paulo, v.54, n. 1, p. 59-80, 2010

MEC/SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

VOLOCHINOV, N./BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud e Y. F. Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.

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