quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Estética da criação da alteridade no contexto de cervantes


Ana Clara M. de Medeiros


O homem na arte é o homem integral.
Mikhail Bakhtin.

A percepção do outro é essencial dentro da obra de Mikhail Bakhtin. De acordo com o crítico em Estética da Criação Verbal, o outro, enquanto ponto de apoio, força real fora do eu, conjunto de valores distintos é “representado na arte pela palavra, por cores, sons” (BAKHTIN, 2006, p. 92) e fundamenta toda a concepção estética, seja de um indivíduo, seja da sociedade.
Os conceitos bakhtinianos estão assentados na ideia do outro, afinal, é impossível pensar em dialogismo, polissemia ou exotopia, sem assumir a existência de um “outro” distanciado capaz de imprimir nova voz e visão ao todo. Segundo Augusto Ponzio:

Nossas palavras nós tomamos, diz Bakhtin, na boca dos demais. ‘Nossas’ palavras são sempre ‘em parte dos demais’. Já estão configuradas com intenções alheias, antes que nós as usemos (admitindo que sejamos capazes de fazê-lo) como materiais e instrumentos de nossas intenções (2010, p. 23).

Perseguindo assim, a insistência do teórico nesse indivíduo que, não sendo o eu, lança as bases para a existência deste e, principalmente, do diálogo, procura-se analisar aqui, em uma perspectiva bakhtiniana, como a noção do “outro” é basilar tanto na constituição interna, como externa do clássico Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes.
Em Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin mostra como a própria complexidade cultural do Renascimento está embasada em “duas concepções de mundo que se entrecruzam (...) a primeira, deriva da cultura cômica popular; a outra, tipicamente burguesa, expressa um modo de existência preestabelecido e fragmentário” (BAKHTIN, 2008, p. 21). Invadindo esses dois segmentos contraditórios, é que o romance cervantino consegue alcançar “seu universalismo e seu profundo utopismo popular” (BAKHTIN, 2008, p. 20).
Bakhtin alerta que se pode vivenciar a si mesmo apenas fora de si e, portanto, no outro; de modo que as vivências carregam uma exterioridade que é necessariamente interior, ainda que isso pareça paradoxal. O ponto é que as experiências da vida individual estão voltadas para esse indivíduo, mas só existem porque dialogam com o outro.
Diante dessa premissa, pode-se inferir que o personagem Dom Quixote só assume sua complexidade a partir de, pelo menos, duas percepções: a do todo – incluindo os leitores e o narrador, que o julgam como louco – e a do próprio Quixote, que não vê sentido em sua essência cavaleiresca se ela não for externada no mundo que o circunda. Assim, por mais que a comicidade, o delírio, a reflexão partam do eu problemático do valoroso cavaleiro, esses elementos não encontrariam sentido não fosse a dissonância das outras vozes com relação às peripécias do herói e não fosse a necessidade deste de se recriar, esteticamente, no real.
Na tessitura interna do personagem, percebemos que Quixote se forma, inicialmente, a partir de sua própria reinvenção dos outros cavaleiros dos romances de cavalaria que lia. Lançando mão de conceito bakhtiniano, é possível inferir que se trata de uma compreensão simpática essa nova valorização do outro pelo eu, isto é, a reinterpretação dos cavaleiros por Dom Quixote nele mesmo.
No nível da técnica, também se pode apontar a singularidade do outro, pois, já no princípio da história, o narrador exprime seu olhar valorativo (que pressupõe um olhar externo) sobre o personagem: “y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro de manera que vino a perder el juicio”[1] (CERVANTES, 2004, p.30). Aliás, permeia toda a obra um narrador irônico que desdenha do suposto cavaleiro, mas que, ao mesmo tempo, enfatiza a veracidade do que é dito: “basta que en la narración de él no se salga um punto de la verdad”[2] (CERVANTES, 2004, p. 28). Desse modo, até as concepções acerca do caráter real da obra são infundidas pelo olhar do outro perante aquilo que conta, olhar que pode ou não ser confiável.
            No tocante às personagens, é igualmente possível perceber as relações travadas entre o herói (eu) e os demais envolvidos na trama (outros). Aqui cabe pequena divisão entre os outros todos que se fazem antagonistas de Quixote e o outro principal do Cavaleiro Andante, que é o fiel escudeiro Sancho Pança.
            Esse primeiro conjunto de “outros” constitui o mundo em que está inserida a narrativa. É o todo que dá uma significação desajustada ao personagem central, que prega valores e assume condutas pertinentes ao apogeu da Idade Média, porém não mais permitidas diante do julgo da sociedade contemporânea do herói, que, portanto, toma-o como insano.
O grande exercício estético desse romance está na naturalidade com que se escancara uma premissa fundamental para que se dê a contemplação estética: “Compreender esse mundo como mundo dos outros [...] é a primeira condição para uma abordagem estética do mundo” (BAKHTIN, 2006, p. 102). Assim, se a estética não existe fora do distanciamento eu-outro, o grande clássico Dom Quixote também inexistiria não fosse a invasão de fronteiras de Quixote no mundo Moderno, que não é o mundo de seu interior; e não fosse ainda, o alcance dos outros a esse mundo onírico exclusivo do cavaleiro. É a convivência de mundos de diferentes outros que dita o caráter ambivalente de genialidade da obra: o risível e o reflexivo. O risível é inevitável em virtude do choque entre aquilo que se espera do mundo ordinário e aquilo que só ganha sentido dentro da realidade quixotesca, além das pitadas humorísticas de um narrador nada despretensioso. O reflexivo surge a partir do potencial que existe entre vozes dessemelhantes de se encontrarem em um todo dialógico que, contudo, é brutalmente cerceado.
            Já Sancho representa o contraponto imediato, o ponto de apoio mais direto de Quixote: a praticidade daquele completa a inventividade deste. A estupidez de um contrasta com os conhecimentos elevados do outro. A pobreza do primeiro destoa da riqueza do segundo. O senso de realidade de um procura conscientizar a loucura do outro. Nas palavras de Bakhtin, o “materialismo” do escudeiro acolhe o “idealismo” do fidalgo de modo tão importante que Sancho chega a ser considerado “o corretivo natural, corporal e universal das pretensões (quixotescas) individuais, abstratas e espirituais” (BAKHTIN, 2008, p.20), além de contaminar, com o riso, a “gravidade unilateral” das pretensões do cavaleiro. A personalidade de ambos só existe, porque eles fazem a revalorização um do outro, continuamente. Desse modo, a dupla parece exemplificar fielmente os dizeres de Bakhtin: “o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro [...] que é o único capaz de criar para ele uma personalidade [...]; tal personalidade não existe se o outro não a cria” (BAKHTIN, 2006, p. 33). A dissonância dos dois personagens sugere uma fusão e só nela estaria escondido o todo.
            No que transcende a produção literária, os leitores são os outros responsáveis por garantir validade estética à obra. O leitor é um “outro” singular, pois está distanciado de três visões principais: a onírica de Quixote, a intransigente das personagens comuns e a volúvel do narrador. Nesse sentido, apreciadores e críticos estão aptos a vislumbrarem o todo dessas vozes que, atreladas a sua própria, configuram o que Bakhtin chamou de “homem integral”, que não poderia ser outro senão o “homem na arte” (2006, p. 91), pois ela é um dos raros meios que permite uma eficaz transposição da alma no outro, do sentido na existência, conforme preconizava Bakhtin (2006).
Só a consciência distanciada do leitor permite que Dom Quixote de La Mancha seja não meramente um louco inocente, mas um símbolo de contestação diante das vozes autoritárias, que impõem um mundo limitado, sem espaço para a invenção, para a liberdade, para a diferença, para o outro – mesmo que sem este seja impossível a existência de Quixote, de Cervantes, de leitores e do próprio eu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – O Contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

_____. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a Arte. São Paulo: Ática, 2000.
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. São Paulo: Alfaguara, 2004.
_____. Dom Quixote de La Mancha. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005.
GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 2002.
NUTO, João Vianney Cavalcanti. O pensamento de Mikhail Bakhtin na Atualidade. In: Conversas Escritas para o Círculo 2009. Disponível em: <http://conversasbakhtinianas.blogspot.com/search/label/Jo%C3%A3o%20Vianney%20Cavalcanti%20Nuto>. Acesso em: 28 mar. 2010.

PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

RODRIGUES, Augusto. Bakhtin: Leitor de Romances. In: Conversas Escritas para o Círculo 2009. Disponível em: <http://conversasbakhtinianas.blogspot.com/search/label/Augusto%20Rodrigues>. Acesso em: 28 mar. 2010.



* Aluna do Curso de Letras – UnB. Pesquisadora do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: anaclara_sfc@hotmail.com
[1] Na tradução, para o português, de Miguel Serras Pereira: “e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro de maneira que acabou por perder o juízo” (2005, p.14).
[2] “basta que na narração dele não nos afastemos um ponto da verdade” (2005, p. 13).

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