Pedro Henrique Couto Torres
O riso é a liberação dos sentimentos que mascaram o conhecimento da vida (Mikhail Bakhtin).
Pensar a literatura rabelaisiana em termos de suas fontes populares foi uma das orientações de Bakhtin ao escrever o livro Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Rabelais “foi o mais democrático dos modernos mestres da literatura” (BAKHTIN,2008, p. 2). A problemática da cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento é avaliada, no livro mencionado, sob o viés da carnavalização e do riso. Na história do pensamento humano e suas diversas trajetórias intelectuais, os estudos dedicados ao riso ocupam apenas um lugar modesto: o humor do povo, na praça da pública, não foi considerado objeto de estudo digno e fidedigno. O pensador russo reconsidera a interpretação do risível na obra renascentista do escritor francês (e para além daí) e elucida as perspectivas originais e de alto nível literário do autor francófono.
Interessa-nos discutir as dimensões do riso e do risível presentes no Auto da Compadecida, escrito por Ariano Suassuna em 1955. A partir da ótica bakhtiniana concernente ao riso e à carnavalização (BAKHTIN, 2008), pretende-se equacionar o referido auto como uma obra que promova, a partir do riso, um abalo na cultura séria e oficial.
A produção literária teatral de Suassuna apresenta elementos, por natureza, ridentes, uma vez que o autor tem explorado consideravelmente enquanto gênero literário a comédia, a qual é responsável, parcialmente, pela consagração deste autor como ícone intelectual do Brasil. Ademais, a mundividência de seu teatro carrega consigo uma tônica marcadamente carnavalesca, i.e., de um riso destronante e de uma celebração ambivalente da própria cultura popular. Como coloca Augusto Ponzio: “Como todos aspectos do carnaval, que possuem um caráter ambivalente ao reunir opostos extremos (nascimento e morte, bênção e maldição, elogios e insultos, alto e baixo etc.) também o riso carnavalesco é ambivalente” (2010, p. 172). Todos estes elementos estão presentes na obra de Ariano Suassuna. Nela, conjugam-se possibilidades autênticas de uma perspectiva que redimensiona as vozes de tipos marginais (“o amarelo safado”, por exemplo, na fala de Padre João, personagem da Compadecida) que se integram — a partir do riso — a uma outra realidade discursiva a eles, que, anteriormente, era alheia e distante.
Para Bakhtin, a visão carnavalesca de mundo (e de vida) teve papel decisivo nas visões do homem da Idade Média (e também do Renascimento): “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva” (BAKHTIN, 2008, p. 7). As origens medievais do Auto da Compadecida são manifestas em sua própria configuração de gênero — afinal, o auto é um item literário medieval típico:
Vinculado aos mistérios e moralidades, e talvez deles proveniente, o auto designa toda peça breve, de tema religioso ou profano, em circulação durante a Idade Média [...] Ibérico por excelência, o auto remonta aos fins do século XII [...] (MOISÉS, 1984:49).
Assim expõe Henrique Oscar no prefácio da 21ª edição do Auto da Compadecida:
Suassuna diz que sua obra se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste, os quais, devemos confessar, desconhecemos totalmente. Por nosso lado, encontramos em “A Compadecida” um parentesco com gêneros mais antigos, de outras épocas e regiões que, todavia, devem ter sido de algum modo a origem remota daqueles que a inspiraram. Enquadramo-la, inicialmente, na tradição das peças da Alta Idade Média, geralmente designadas como Milagres de Nossa Senhora (do séc. XIV), em que, numa história mais ou menos — e às vezes muito — profana, o herói em dificuldades apela para Nossa Senhora que comparece e o salva tanto no plano espiritual como temporal (OSCAR, 1985) (grifo meu).
É razoável pensar na viabilidade das perspectivas da carnavalização em uma obra que tem em suas origens, não só temporais, mas de gênero, em concepções medievais que, conforme certa orientação teórica, são intrinsecamente vinculadas ao riso e ao carnaval.
Analisemos um ponto relevante para as perspectivas de carnavalização.
A cultura oficial, que no auto é expressivamente traduzida pela igreja, é, em certo momento, desautorizada. Passa a ser parodiada e destituída de seus princípios sagrados. Temos na Compadecida uma espécie de paródia que é motivadora das ações desenvolvidas durante a peça: o enterro de um cachorro, que em desrespeito à doutrina cristã, consuma-se ao modo latino de uma missa fúnebre: “Muito pior é enterrar o cachorro em latim, como se ele fosse cristão [...]” (Compadecida,1985, p. 81). Valemo-nos do autor russo:
O princípio cômico que preside aos ritos do carnaval, liberta-os totalmente de qualquer de qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade, e eles são além disso completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório (não pedem nem exigem nada). Ainda mais, certas formas carnavalescas são uma verdadeira paródia do culto religioso. Todas essas formas são decididamente exteriores à Igreja e à religião. Elas pertencem à esfera particular da vida cotidiana". (BAKHTIN, 2008, p. 6). (grifo meu).
No trecho referido do auto, há resquícios de uma transposição de valores pautados definitivamente no riso (conquanto não sempre dos personagens, pelo menos dos espectadores) e na desautorização das qualidades sagradas representadas pela igreja. Uma oposição a um tom sério, oficial e religioso. Com isso, ao longo de toda peça os diálogos são compostos com elementos da esfera particular da vida cotidiana:
Abre-se um segundo plano, mais amplo e de maior importância histórica, facultado pelo riso, pela ironia e pela paródia. Estas ferramentas, éticas e estéticas, são capazes de penetrar a realidade contemporânea e de analisá-la de outra perspectiva — ou seja, o olhar do silenciado, do marginal. Com isso, as questões simbólicas ampliam-se e aprofundam esse segundo plano e o universalismo da festa popular e folclórica em Ariano Suassuna abarcam o nacional e o local, a arte popular e o lazer, o teatro nas suas relações com a região, a tradição e, principalmente, o jogo (RODRIGUES, 2010).
De tal maneira, tracemos um itinerário das fontes populares e carnavalescas (carnavalizadoras?) presentes nesse auto de um autor que traz no arcabouço de sua obra qualidades ibéricas, medievais e renascentistas — detentoras de uma visão carnavalizadora de mundo e vida. A pilhéria da Compadecida é muito maior do que o simples escárnio moderno — resguarda de uma experiência folclórica milenar de riso ambivalente, festivo e que nivela todos em um mesmo patamar. A comédia de Suassuna é uma pista para analisar a própria literatura (e cultura) brasileira, que não estudada por Bakhtin, certamente apresenta vinculações com a carnavalização e o riso.
Referências bibliográficas
Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6ª edição. Brasília/São Paulo: Editora UnB/HUCITEC, 2008.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1984.
OSCAR, Henrique. Auto da Compadecida [prefácio]. 21ª edição. Rio de Janeiro: Agir, 1985.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
RODRIGUES, Augusto. Estudos de Literatura e Cultura: forma literária e o sistema de cultura nacional. CNPq/UnB, 2010.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 21ª edição. Rio de Janeiro: Agir, 1985.
* Aluno do Curso de Letras – UnB. Pesquisador do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: couto.pedroh@yahoo.com.br
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