domingo, 19 de setembro de 2010

Dialogismo e intertextualidade

Sara Vieira Costa UFPA
s_belle@hotmail.com


“O dialogismo defende que todo o sentido é relativo na medida em que ocorre apenas como resultado da relação entre dois corpos ocupando um espaço simultâneo mas diferente, sendo que corpos aqui podem ser entendidos como recobrindo um leque que vai da imediatez dos nossos corpos físicos até aos corpos políticos e aos corpos de ideias em geral (ideologias)” (Holquist, Dialogisme  Routledge, 1990,20).


Ao contrário dos Formalistas Russos que apostaram na distinção da linguagem literária a partir do contraste estabelecido com a linguagem prática, referencial, Bakhtin enfatiza o que há de comum entre a situação de enunciação de qualquer falante e a situação de enunciação dum produtor literário: ambos estão condicionados ao diálogo, um diálogo que se verifica a diferentes níveis: entre o falante e o interlocutor directamente envolvido, entre o falante e o sistema linguístico no qual assenta e do qual deriva o seu discurso particular, entre aquele e o contexto imediato e mediato (povoado por uma multiplicidade de linguagens ou discursos diferentemente acentuados e ideologicamente saturados). Transpondo para o caso da literatura estes diferentes níveis corresponderão às seguintes relações dialógicas: entre o autor e o leitor ou, no plano intratextual e tratando-se de uma narrativa, entre o narrador, o narratário e as personagens (e respectivos pontos de vista), entre a série literária e a série linguística, entre a obra concreta e o sistema literário precedente e contemporâneo, entre a obra e o contexto social saturado de discursos e linguagens concretas de várias espécies - o que Bakhtin designa de plurilinguismo.

As quais se revestem de um certo grau de complexidade já que não se restringem a fenómenos como o discurso directo sem intermediação (expressão imediata autoriade última do falante) nem ao discurso objectivado (correspondente a uma personagem representada), mas reportam-se caracteristicamente a modalidades discursivas internamente dialogizadas (‘double-voiced discurse’ (Bakhtin, Problems of Dostoievsky’s Poetics, University of Minneapolis Press, 1984, 106). Por elas se refractam as intenções e o ponto de vista do autor/narrador que para tal recorre ao discurso de outrem.



. Na observação das relações contextuais, duas linhas devem ser seguidas: a da contextualização interna e a da contextualização externa. A primeira diz respeito à coerência entre as partes que compõem o texto e permitem ao leitor estabelecer contato com o mundo ali apresentado; a segunda prende-se à época em que foram escritos e revela ao leitor, à revelia do autor, muito de seus valores e dos valores de seu tempo. As relações contextuais destacam-se para o leitor pelo universo que revelam.

Em Bakhtin, encontra-se o conceito de relações dialógicas que se manifestam no espaço da enunciação: “Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso[...]”. Para ele, a língua se harmoniza em conjuntos, pois não é um sistema abstrato de normas, mas sim uma opinião plurilíngüe concreta sobre o mundo.
Analisando os procedimentos de criação da linguagem no romance, Bakhtin, além dos diálogos puros, aponta a inter-relação dialogizada e a hibridização – considerada como amálgama de duas linguagens e uma das modalidades mais significativas no processo de transformação das linguagens; seu objeto, a representação literária da linguagem –. Ambas fundem dois enunciados potenciais. Destaque recebe a hibridização dialogizada, apontada como um sistema de fusão que busca esclarecer uma linguagem com a ajuda de outra linguagem e, dessa forma, construir uma imagem viva desta outra linguagem.
Quanto mais ampla e profundamente se aplicar no romance o procedimento da hibridização, com várias linguagens, e não apenas uma, tanto mais objetiva se torna a própria língua que representa e que aclara e que se transforma, afinal, em uma das imagens da linguagem do romance.

Destaca, ainda, Bakhtin, a estilização como a forma mais característica de dialogização interna, salientando que a consciência lingüística que ilumina a recriação estabelece para o estilo recriado uma importância e uma significação novas. A linguagem estilizada aparece com ressonâncias particulares: alguns elementos são destacados, outros deixados na sombra. Acrescenta a variação e a paródia como outras formas de trabalhar o material lingüístico. Caracteriza a variação como o procedimento que “introduz livremente um material de outrem nos temas contemporâneos [...], põe à prova a língua estilizada, colocando-a em situações novas e impossíveis para ela”. Apresenta a paródia como uma construção dialógica muito especial em que o discurso que representa estabelece uma relação de desmascaramento em relação ao discurso representado. Entre a estilização e a paródia, encontram-se as mais variadas formas de linguagens determinadas por inter-relações, desejos verbais e discursivos que se encontram nos enunciados.
O diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexistências, mas é também o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce; aqui a coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta e indissolúvel de uma diversidade contraditória e de linguagens diversas.

A linguagem poética aparece como um diálogo de textos: toda seqüência se faz erelação a uma outra proveniente de um outro corpus, de maneira que toda seqüência está duplamente orientada: para o ato de reminiscência (evocação de uma outra escrita) e para o ato de intimação (a transformação dessa escritura)

Para se tornarem dialógicas, as palavras precisam encontrar outra esfera de existência: precisam tornar-se discurso.
Assim, o dialogismo bakhtiniano designa a escritura, ao mesmo tempo, como subjetividade e comunicatividade ou, melhor dizendo, como intertextualidade; face a esse dialogismo, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” começa a se esfumar, para ceder lugar a uma outra, a da “ambivalência da escritura”.

Um texto é voz que dialoga com outros textos, mas também funciona como eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças.
As relações transtextuais estão a evidenciar que o texto literário não se esgota em si mesmo: pluraliza seu espaço nos paratextos; multiplica-se em interfaces; projeta-se em outros textos; perpetua-se na crítica; estabelece tipologias; repete-se em alusões, plágios, paródias e citações.

A intertextualidade confirmada na literatura pelos temas retomados, eternizando e dando nova feição aos mitos e às emoções humanas, comprova que os textos se completam e se inter-relacionam.



Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin(1992) trata das relações entre linguagem e sociedade, colocando como elemento centralizador o signo, enquanto efeito das estruturas sociais, ou seja, o signo ideológico. Trata da natureza social do signo e da enunciação (enunciado). A enunciação é compreendida como uma unidade de base da língua, que só existe dentro de um contexto social, compreendida como uma réplica do diálogo social, sendo, portanto, de natureza social, ela é ideológica. Busca compreender em que medida a ideologia determina a linguagem.



“A linguagem constituída pelo universo dos signos é tema central nas discussões, justificando que o signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados”(BAKHTIN, 1992:16). Entende-se por signo todosos sistemas semióticos que servem para exprimir uma ideologia; mas destaca que a palavra ‘é o signo ideológico por excelência’. Define como signo ‘tudo que é ideológico, possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo’(idem,ibdem:31).


Bakhtin ressalta, ainda, o caráter semiótico do signo no conjunto da vida social, que além de refletir uma realidade, tem sua ‘encarnação’ numa materialidade, seja como som, cor, massa física, movimento do corpo ou outra forma de expressão.Privilegia a palavra ‘que funciona como elemento essencial e acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for (idem,ibdem:37), pois todas as manifestações da criação ideológica de signos não-verbais podem ser manifestadas pelo discurso verbal.

A leitura de Marxismo e Filosofia da Linguagem confirma que, do ponto de vista da construção dos sentidos, todo texto – discurso – é perpassado por vozes de diferentes enunciadores, ora concordantes, ora dissonantes, o que faz com que se caracterize o fenômeno da linguagem humana como essencialmente dialógico e, portanto, polifônico.



Esse reconhecimento é fundamental para o leitor na constituição do sentido textual e fundamenta uma concepção interacionista de linguagem, em que o sentido constrói-se ativamente através das múltiplas vozes discursivas.

Bakhtin retoma, nesta obra, o conceito de dialogismo e o valor duplo da palavra, ou seja, por um lado palavra no sentido de unidade lexical e, por outro, no sentido de encadeamento de idéias como unidade de enunciação. As palavras são unidades da língua, enquanto os enunciados são unidades reais de comunicação. Por isso o enunciado é irrepetível, é singular; não é determinado pela dimensão, mas pelo dialogismo.
Vale mencionarmos o pensamento de Bakhtin, destacando que oenunciado não existe fora do dialogismo, pois este é constitutivo do enunciado : Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo: ela os rejeita, confirma, completa,baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 2003:297).


Desse modo, o dialogismo é a característica do funcionamento discursivo em que se encontram presentes várias instâncias enunciadoras. É a presença destas várias instâncias que constitui a dimensão polifônica do discurso. Bakhtin já o encontrara nos seus trabalhos sobre a obra de Dostoiewsky, onde várias vozes se fazem ouvir, concluindo que todo o romance é o resultado de várias vozes enunciativas.



Assim, sintetiza em dois sentidos aquilo que é efetivamente dialogismo em Bakhtin:é o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto, é seu princípio constitutivo;é uma forma particular de composição do discurso. Portanto, todo discurso dialoga com outro discurso,manifestando-se em enunciados.


O sentido da enunciação completa é o tema, isto é, a realização é dado pelos fenômenos segmentais e supra-segmentais. A significação deriva da interação, ou seja, constitui os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que se repetem. É a sua significação que nos leva ao tema e este à criação de diálogo e às relações translinguísticas. Logo, não há dúvida de que Bakhtin era já consciente da dimensão pragmática que muitos ainda não tinham percebido, destacando-se por uma concepção realmente inovadora na época. A interação verbal é a chave da realidade fundamental da língua que se realiza pela enunciação.



Bibliografia:



. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São       Paulo: HUCITEC, 1988, p. 100-106

. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed.
São Paulo: Martins fontes, 2003. (Coleção biblioteca universal)

. BAKHTIN, Mikhail. (Volochínov) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad.de Michel Lahud e Yara F. Vieira. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1992.

. Julia Kristeva, “Une poétique ruinée”, pref. a M. Bakhtine, La Poétique de   Dostoievski  (1970).
. Tzvetan Todorov, Mikhail Bakhtine : le principe dialogique suivi de Écrits du cercle de Bakhtine (1981).



















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