Fabiana Giovani
Cintia Bartolomeu Garcia
(Marilia Amorim)
O tema proposto para reflexão desse circulo bakhtiniano – Bakhtin e a atividade estética – novos caminhos para a ética – orienta-nos a refletir sobre o sujeito delineado na obra de Bakhtin. Ainda como professoras, colocamo-nos por desafio pensar esse sujeito em diálogo com a instituição escolar e com o nosso objeto de estudo: a linguagem.
O fato de a obra de Bakhtin não ser fechada para interpretações únicas autoriza-nos a delinear o sujeito em seu constructo teórico. Partimos do seguinte excerto:
O autor não só vê e sabe o herói em particular e todos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe mais do que eles, vendo e sabendo até o que é por princípio inacessível aos heróis; é precisamente esse excedente, sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o saber do autor, em comparação com cada um dos heróis, que fornece o princípio de acabamento de um todo – o dos heróis e o do acontecimento da existência deles, isto é, o todo da obra (BAKHTIN, 1992, p. 32).
A ideia de “excedente de visão” é condição sino qua non para a compreensão de sujeito. Qualquer sujeito que vive tem um por-vir e, portanto, é um ser inacabado. No interior do mundo em que vive, o sujeito está exposto aos olhos que os veem e sempre será visto com o pano de fundo que o cerca, ou seja, é impossível concebê-lo sem o seu contexto ou lugar que ocupa. Assim, o olhar que o outro lança sobre o ‘eu’ forma um todo com um fundo, cujo domínio é impossível ao próprio sujeito. Nessa relação, o ‘outro’ acaba por ter uma experiência do sujeito (eu) que este próprio não tem. Pode-se dizer, então, que o ‘outro’ tem, relativamente ao eu, nada mais do que um “excedente de visão”.
Partir de tal posição implica assumir toda a incompletude do ‘eu’ além de constituir o outro como o único lugar possível de uma completude que, na verdade, é impossível, uma vez que, a experiência que o outro tem, ainda que seja sobre o ‘eu’, lhe é inacessível. Nesse sentido, a relação dialógica – mediada pela linguagem - torna-se constitutiva do todo e qualquer sujeito.
Porém, partir do princípio de que a incompletude constitui o outro como o único lugar possível de uma completude sempre impossível e assumir essa relação dialógica como essencial na constituição dos seres humanos, não significa imaginá-la sempre harmoniosa, consensual e desprovida de conflitos. Mesmo assim, o outro se mostra imprescindível para a constituição de qualquer indivíduo da sociedade. Como escreve Geraldi (2003), é na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem.
Outro conceito importante na construção do sujeito em Bakhtin é assumir que este é único, inconcluso e singular. Para esta compreensão, é necessário evocar a noção de ética e estética em sua obra. Pode-se dizer que vivemos em um mundo ético, ainda que a vida possa ser vivida esteticamente. Segundo Bakhtin (1993), temos um parodoxo entre o que ele chama acabamento estético e o mundo ético. Para ele, este parodoxo remete mais diretamente a vida, uma vez que esta é vivida na fronteira de nossa experiência individual e por este excedente de visão que temos. Assim, o que se vê é determinado do lugar de onde se vê.
Tudo isso nos revela que o ‘eu’ não tem existência própria fora do seu ambiente social e necessita da colaboração do outro para se constituir, para se definir e ser o autor de si mesmo. Trata-se de um ‘eu’ aberto e inconcluso, susceptível aos discursos vividos e compartilhados com os outros.
Um sujeito - singular e irrepetível - vivendo nesse mundo ético, sendo que neste - tempo dos acontecimentos - cada um tem a responsabilidade pela ação concreta definida não a partir do passado - que lhe dá condições de existência como um pré-dado - mas a partir do futuro, cuja imagem construída no presente orienta as direções e sentidos das ações. É do futuro que tiramos os valores com que qualificamos a ação do presente e com que estamos sempre revisitando e recompreendendo o passado. Geraldi nos diz:
Como temos distintas histórias de relações com os outros – cujos “excedentes de visão” buscamos em nossos processos de constituição – vamos construindo nossas consciências com diferentes palavras que internalizamos e que funcionam como contrapalavras na construção dos sentidos do que vivemos, vemos, ouvimos, lemos. São estas histórias que nos fazem únicos e “irrepetíveis” (Geraldi, 2003 p.10).
A escola deve ser o lugar privilegiado da formação desses sujeitos ‘ideais’- inconclusos, por natureza, únicos e irrepetíveis - através do trabalho estético com a linguagem e para isso os seus sentidos e formas não podem ser de antemão determinadas. Trabalhar nesta perspectiva é considerar a língua não tão somente como sistemas estruturados e acabados, mas como sistematizações em aberto que incorporam as indeterminações necessárias para que ela mesma possa funcionar. A linguagem necessita abrir-se ao trabalho do homem no fazer aqui e agora de seus enunciados concretos. Só assim, daremos corpo ao sujeito ao qual ousaríamos nomear de ético e estético.
Quando se fala em ética, pode-se perceber sua relação com a linguagem, logo constitui-se um processo complexo, e, geralmente marcado por contradições. É fantástico como Bakhtin consegue criar uma ideologia que chama a atenção para o fato de que o discurso verbal em si, seja em qualquer área da vida, é impossível de ser compreendido fora da situação social que o engendra.
A partir do pensamento de Bakhtin, também acreditamos que as pessoas usam a linguagem para se constituírem. E para observar o fenômeno da linguagem é importante “localizar” os sujeitos. Nas palavras de Bakhtin, é preciso situar os sujeitos - emissor e receptor do som - bem como o próprio som, no meio social.
Bakhtin aponta que o locutor não usa a língua como um sistema de formas normativas, mas serve-se dela para suas necessidades concretas, ou seja, para o locutor, a construção da língua está relacionada com o sentido da enunciação da fala. “O que importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada" (Bakhtin, 1994, p.92).
O uso de certa expressão será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata (Bakhtin,1994). Ao se falar em enunciação é imprescindível levar em conta a interação verbal, o meio social em que se insere o falante. Bakhtin (1994) tem convicção de que a interação verbal constitua a realidade fundamental da língua.
Pelo exposto, observamos que as pessoas, ao usarem a linguagem, o fazem como uma experiência estética, afinal construimos nossos textos a partir de nosso repertório mas também levando em conta o interlocutor, a interação com a qual estabelecemos com ele.
Somos, também por isso, seres éticos, porque vivemos no mundo das possibilidades, no mundo da vida. Podemos viver esteticamente esta eticidade. E é justamente na possibilidade da experiência estética que o sujeito singular pode usar sua capacidade de criar.
Já dizia Freire (2006) que a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994.
______________. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Para uso didático. Versão em português, 1993.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
GERALDI, J.W. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In: FREITAS, M.T. (Org) Ciências Humanas e pesquisa. São Paulo: Cortez editora, 2003.
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