segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A carnavalização da figura do caipira nos dias atuais


Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos


Ao escrever A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, Mikhail Bakhtin identifica a presença do cômico durante esse período na vida cotidiana das pessoas, o que fez com que estudasse o riso na Idade Média e o realismo grotesco, visto que era evidente a ocorrência do rebaixamento de tudo que é elevado e espiritual para o plano material e corporal, levando em consideração a carnavalização.
O carnaval era uma festa de manifestação popular, momento, em que os homens se liberavam e, para demonstrarem tal libertação jogavam em meio ao povo tripas, intestinos, as entranhas, o seio materno, excrementos, urinas, entre outras coisas. Esse realismo grotesco fazia balancear um jogo entre o alto e baixo que entravam em movimento se fundindo.
As tripas, os intestinos são o ventre, as entranhas, o seio materno, a vida. Ao mesmo tempo, são as entranhas que engolem e devoram. O realismo grotesco costumava jogar com essa dupla significação. O ‘balanço’ do realismo grotesco, o jogo do alto e do baixo, é magnificamente posto em movimento; o alto e o baixo, o céu e a terra se fundem (BAKHTIN, 1996, p. 140-141).

No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem caráter formal ou relativo. O alto e o baixo possuem relações diferentes, o primeiro significa o céu e o segundo a terra, o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e da ressurreição (o seio materno).
o alto é representado pelo rosto (a cabeça). E o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro. O realismo grotesco e a paródia medieval baseiam-se nessas significações absolutas. Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor (BAKHTIN, 1996, p. 18-19).

O carnaval era o momento de libertação da vida regrada e imposta pela sociedade da época, extremamente opressora, moralista e conservadora. A Igreja tinha em suas mãos o poder de manipular as pessoas, com o fito de lucrar, isto é, arrecadar dinheiro e enriquecer.
Nenhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de cômicos, por exemplo, a eleição de rainha e reis “para rir” para o período de festividades.
Todos os ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderiamos dizer, em relação às formas do culto e as cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado, pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas (BAKHTIN, 1996, p. 4-5).    

Os festejos do carnaval ocupavam um lugar muito importante na vida das pessoas, pois todas as festas de cunho religioso possuíam um aspecto cômico popular e público, consagrado também pela tradição.
As festas típicas brasileiras, como a junina, são tradicionais entre o povo caipira, pois é a sua representação, uma forma de apresentar ao povo a sua origem, isto é, a raiz brasileira. A figura do caipira fora carnavalizada, deixando de ser um símbolo, a representação cultural do Brasil, para se tornar motivos de piadas, deboches, zombarias etc.
No texto, As festas da inocência de Moacyr Scliar, observamos a presença da figura do caipira, do homem do campo que está presente no cotidiano dos brasileiros e que foi metaforazida como trabalhador ocioso. A historia se inicia com uma piada colocando em xeque a inteligência do caipira:
O caipira chega no guichê da estação rodoviária da cidadezinha e pede:
__ Moço, eu quero uma passage pro Esbui.
__ Como disse?
__ Eu quero uma passage pro Esbui.
__ Esbui? Sinto muito, mas não temos passagem para Esbui.
O caipira então volta-se para o amigo que o aguarda na porta:
__ Oi, Esbui, o óme falo que pr’ôce num tem passage, não! (SCLIAR, 2005, p. 11).

A partir dessa piada, notamos a presença de uma personagem muito representativa na cultura brasileira, o caipira, ora retratado como um homem ingênuo e inocente, ora como um preguiçoso e vagabundo, como a personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato.
De acordo com Scliar (2005, p. 12),
o citadino brasileiro encontrou no caipira um alvo predileto de deboche. A própria palavra já é pejorativa: ‘caipira’ poderia ser uma corruptela de caipora, aquela grotesca criatura do folclore que trazia infelicidade a quem o via. O caipira era visto como uma figura apática, passiva, da qual é exemplo o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, personagem que teve duas versões (SCLIAR, 2005, p. 12).

A primeira, o escritor descreveu a história de um caboclo extremamente preguiçoso, um verdadeiro parasita, visto que vivia a custas de outras pessoas. Já a segunda, Lobato descobriu com a ajuda de vários sanitaristas que o homem do campo era na realidade um doente, infestado de vermes, escrevendo logo após essa descoberta um texto, ao qual pedia perdão ao Jeca Tatu pelas ofensas que lhe havia feito e oferecendo-lhe um tratamento para combater as verminoses, o Biotônico Fontoura.
Porém, o homem do campo, o chamado de caipira era segundo Scliar (2005, p. 12) um homem “doente, pobre, o homem do campo mantinha, contudo, sua crença na espécie humana. Em vilas do interior as portas não são chaveadas; as pessoas acolhem com a maior hospitalidade os desconhecidos”.
A figura do caipira está se desfazendo aos poucos no contexto social, pelos fios das gerações, não obstante estar registrada na literatura. É notável essa diminuição no quadro geográfico do país, apesar de ainda ser visto principalmente em cidades do interior, fazendas, vilas e pequenos povoados.
No que tange ao personagem do homem rural, ou seja, o caipira percebe-se certa complexidade e uma contradição, que está ricamente presente nos causos, nas cantigas, nas histórias e nos achares de quem viveu ou ouviu e reconta essas trajetórias.
A manchete do jornal “Zero Hora” descreveu o Brasil com a metáfora de “país bandido”, pois a marginalização da população tornava-o um país de mentiras, corrupções, falsidades, desonestidades etc.
A manchete Zero Hora no último domingo falava no ‘país bandido’, o Brasil do crime, da transgressão, ao qual devemos acrescentar o Brasil da corrupção, da mentira e do engodo. Isto não é resultado da urbanização que é, aliás, um processo inevitável; isto é resultado, antes de mais nada, de uma espantosa desigualdade social. Na cidade, e por causa da proximidade entre as pessoas, a desonestidade e o cinismo encontram terreno fértil; mas também é verdade que, na cidade, as pessoas podem conviver, podem se organizar, podem lutar juntas para melhorar suas vidas, coisa que o homem do campo, também explorado, dificilmente podia fazer (SCLIAR, 2005, p. 12-13).

O caipira nasceu longe da cidade grande e, muitas vezes, dos pequenos vilarejos também, foram criados pela natureza, por esse motivo, são tímidos e desconfiados as se relacionar com os habitantes da cidade. São alegres, francos quando estão em seu meio “natural”, isto é, o campo. Revelam rara inteligência do senso comum, são dóceis, amorosos, sinceros e afetivos.
Do Brasil rural – camponês ficou uma dupla imagem: lírica de uma premissa e debochada de outra,
e esta dupla imagem reaparece nos festejos juninos, por exemplo, na tradicional cena do casamento da roça. As crianças que se fantasiam de caipira sempre aparecem com o chapéu de palha, o lenço no pescoço, o bigodinho – e, graças a um simples truque de maquiagem, desdentadas. Muito simbólico: era o Brasil desdentado, o do caipira. Desdentado, mas sorridente (SCLIAR, 2005, p. 13).

A figura do caipira está representada pelo homem humilde, sem estudos – formação profissional e desdentado, que ao mesmo é extremamente sorridente, pois encontram a felicidade nas coisas mais simples que se possa imaginar. Porém, ao longo do tempo o caipira, aos poucos, fora pendendo sua identidade e tornando-se comum.
Como muitas outras essa piada não tem muito humor, pois debocha sarcasticamente da ingenuidade do homem do interior, daquele que trabalha na roça, que é sofrido e pouco familiarizado com a malícia da cidade.
Porém, é esse homem humilde e trabalhador, ou seja, o caipira, que as festas juninas celebram. Segundo Scliar (2005, p. 12), essas festas eram “alegres, claro, sem apelo ao sexo que caracteriza o Carnaval: festas de brincadeiras inocentes, como eram as festas pagãs européias que, nesta época do ano, marcavam a chegada do verão e o começo da colheita”.

REFERÊNCIAS:
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, Mikhail.  A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coord. Tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
SCLIAR, Moacyr. As festas da inocência. In: COUTO, Mia. Pensando igual. Moçambique, 2005.

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