segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A noção de cronotopo: do mundo da estética para o mundo da ética


Nara Caetano Rodrigues 

                                                        
                       
Melting Space-Time - Salvador Dali

Na obra Questões de literatura e de estética (1988)[1], composta por ensaios que, seguindo uma linha histórica, focalizam desde o romance grego até a obra de Rabelais, Bakhtin analisa a importância da natureza cronotópica da arte literária. Para construir a sua teoria do cronotopo, o autor começa pelo exame dos aspectos do tempo e do espaço, primeiramente no romance grego (Século XVII), na análise do qual interessa-nos a discussão sobre um dos elementos cronotópicos constitutivos dos enredos que Bakhtin considera o mais importante: o encontro. Para além de sua relevância nos diversos gêneros de esfera literária, Bakhtin destaca que o motivo do encontro é um dos mais universais em outros campos da cultura e em diferentes esferas da vida e da sociedade. Ele acrescenta, ainda, referindo-se ao mundo da vida fora da literatura:

O cronotopo real do encontro tem constantemente lugar nas organizações da vida social e nacional. Todos conhecem os vários tipos de encontros sociais organizados e o significado deles. Na vida de um estado, os encontros são também muito importantes; veja-se, por exemplo, os encontros diplomáticos, sempre regulamentados com rigor, onde o tempo, o lugar e a composição dos que se encontram são estabelecidos segundo o grau da pessoa que é encontrada. Enfim, é concebível por todos a importância dos encontros (que às vezes determinam diretamente todo o destino de um indivíduo) na vida e na rotina cotidiana de cada pessoa (BAKHTIN, 1988, p. 223-224).

No segundo tipo de romance sobre o qual o autor discorre – de aventuras e de costumes –, interessam-nos as noções de transformação e de identidade, as quais “estão profundamente unidas na imagem folclórica do homem.” (BAKHTIN, 1988, p. 235).
Amorim (2006, p. 103-105) esclarece que o campo do tempo é a dimensão do movimento, das transformações incessantes e inevitáveis e dos acontecimentos. A autora associa o conceito de cronotopo, como produção da história, a um “lugar coletivo, espécie de matriz espaçotemporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem”.
Bakhtin discute ainda o cronotopo na biografia e na autobiografia antigas e no romance de cavalaria, chegando às “insólitas amplidões espaço-temporais” no romance de Rabelais (BAKHTIN, 1988, p. 282, grifos do autor). Dentre os cronotopos analisados por ele, aparece a estrada (“caminho da vida”), espaço-tempo no qual ocorrem os encontros das mais diferentes pessoas (romance de cavalaria) e onde se marca o transcurso do tempo. Já na Inglaterra do fim do Século XVIII, surge um novo território para os acontecimentos do romance: o castelo; nos romances de Stendhal e Balzac, segundo Bakhtin (1988, p. 352), tem papel fundamental o salão-sala de visita, pois é onde ocorrem os diálogos, revelam-se as ideias e as paixões dos heróis. O autor cita, ainda, o cronotopo da soleira, que “é o cronotopo da crise e da mudança de vida”, cujo significado na literatura é sempre metafórico e simbólico, pois a “palavra ‘soleira’ já adquiriu, na vida da linguagem (juntamente com seu sentido real), um significado metafórico; uniu-se ao momento da mudança da vida, da crise, da decisão que muda a existência (ou da indecisão, do medo de ultrapassar o limiar).” (BAKHTIN, 1988, p. 354).
Por fim, vale destacar que o autor atribui ao cronotopo um significado temático: “Eles são os centros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os nós do enredo são feitos e desfeitos. Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado principal gerador do enredo.” Bakhtin atribui também um significado figurativo ao cronotopo, que “como materialização privilegiada do tempo no espaço é o centro da concretização figurativa, da encarnação do romance inteiro”. Nele cabem os elementos abstratos do romance que gravitam ao redor do cronotopo: “as generalizações filosóficas e sociais, as idéias, as análises das causas e dos efeitos, etc.” (BAKHTIN, 1988, p. 355-356).
Como cada cronotopo pode incluir muitos pequenos cronotopos, Bakhtin ressalta, ainda, que eles “podem se incorporar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se encontrar nas inter-relações mais complexas.” (BAKHTIN, 1988, p. 357).
Para confirmar a relevância desse aspecto para os discursos do mundo da vida, vale trazer o que diz Amorim (2006, p. 106): “no trabalho de análise dos discursos e da cultura, quando conseguimos identificar o cronotopo de uma determinada produção discursiva, podemos dele inferir uma determinada visão de homem.”.
Na sequência, refletiremos sobre a dimensão macrocronotópica da escola, a partir de pesquisa desenvolvida em uma escola pública de educação básica de Florianópolis. Nosso recorte de pesquisa foram as discussões realizadas no processo de reestruturação curricular desencadeado na escola, ao longo dos anos de 2006 e 2007.

A dimensão macrocronotópica da escola

As transformações/crises que ocorrem na escola e, consequentemente, nas disciplinas, segundo Chervel (1990), têm a ver com as finalidades delegadas à escola pela sociedade em cada época. No momento em que são impostas novas finalidades teóricas ou de objetivo (oficiais), é preciso rever as práticas. Logo, instala-se a crise, pois essas novas finalidades impostas não coincidem com as finalidades reais, ou seja, não vêm legitimar a prática pedagógica dos professores.  O processo de reestruturação curricular é o momento do conflito, do encontro – e do confronto – dessas finalidades.
Embora, para fins de observação e análise, tenha sido necessário fazer um recorte de tempo cronológico, as transformações se dão no curso da história, num tempo não marcado por hora, dia, mês e ano. O que constatamos são alguns indícios de transformações em curso que se mostram no discurso que vai (re)constituindo os sujeitos nas situações de interação, na sua relação com o outro, na e pela linguagem.
Como os momentos de crise e de conflito nos permitem captar melhor o funcionamento real das finalidades atribuídas à escola (CHERVEL, 1990; JÚLIA, 2001), o período pós-reforma do ensino (Lei 9.394 de 1996) e pós-publicação dos PCN provocou a emergência de contradições nas reações-respostas dos professores e de toda a comunidade escolar às novas propostas para o ensino. Por um lado, há professores empenhados em implementar uma prática pedagógica mais sintonizada com as novas propostas oficiais, tentando romper com as delimitações organizacionais. Por outro, algumas práticas escolares, cujos pilares estão na instituição da escola como espaço de ensino, resistem ao tempo e às mudanças.
Com relação à organização dos tempos e espaços organizativos das práticas pedagógicas na escola, podemos perceber que houve poucas mudanças. Ao entrarmos em uma sala de aula do século XXI, não perceberemos muitas mudanças em relação às salas do final do século XV. A escola já estava configurada em termos de agrupamentos de alunos sob a regência de um professor em salas com mobiliário específico, os tempos de duração das aulas já estavam divididos em ciclos ao longo do dia e até mesmo o relógio e a sineta já demarcavam as atividades escolares (PETITAT, 1994, p. 79).
A escola é um cronotopo extremamente complexo constituído por uma multiplicidade de cronotopos, que, de um lado, envolvem o aspecto temporal: o tempo cronológico do ano letivo, o tempo cronológico do trimestre, o tempo/espaço da aula, o tempo das reuniões pedagógicas, no caso da escola investigada: reunião de disciplina; reunião de área; reunião geral... Por outro lado, com relação ao aspecto espacial, a escola é um todo que, se olhado de fora, não possibilita a visão dos pequenos cronotopos que existem dentro dela: sala de aula, sala de reuniões, sala de convivência, sala da Direção, biblioteca, auditório, sala de informática, corredores, pátio... Para se ver bem (analisar) um deles, é preciso se aproximar sem perder de vista que o espaço escolhido está inserido numa dimensão macrocronotópica.
A reestruturação curricular realizada institucionalmente ocorre em várias instâncias que estão imbricadas na estrutura organizacional da escola, de modo a promover diversos tipos de encontro formal. O processo foi desencadeado inicialmente por meio de um seminário que sugeriu as discussões em Fórum Pedagógico. Como o fórum acontecia com suspensão de aulas em um dos períodos (matutino ou vespertino), a intervenção da Associação de Pais Professores questionando o Calendário inviabilizou a continuidade dos encontros do Fórum Pedagógico, previstos pela Direção. As discussões tiveram continuidade nas reuniões de coordenadores, que repassavam as questões para as reuniões de disciplina, que encaminhavam as questões para a Direção, que levava para a reunião geral. Da reunião de coordenadores, saiu a sugestão das discussões nas reuniões de área, a partir das quais as questões deveriam voltar para a reunião de disciplina e deveriam ser levadas, em última instância, para a reunião geral. A dimensão macrocronotópica da escola evidenciada nessas várias instâncias de discussão imbricadas entre si pode ser representada na figura a seguir:




A complexidade do processo de reestruturação curricular na escola foi se explicitando a partir da constatação do caráter organizativo dos tempos/espaços na escola e de sua relação direta com a abordagem dos temas propostos. Além disso, a relação entre os interlocutores (sua posição hierárquica e os discursos mais e menos autoritários que mobilizam) mostrou índices de valor que determinam não só a organização dos encontros, mas também a abordagem dos temas.
Nesse sentido, os vários tipos de encontro/reunião podem ser caracterizados como instâncias discursivas nas quais são produzidos enunciados que respondem a enunciados já-ditos e se constituem na antecipação dos enunciados pré-figurados dos interlocutores que participam dessas situações de interação.
No processo de reestruturação acompanhado, o discurso dos professores é a ação, é o que transforma: é o diálogo com os muitos outros que adentram o cronotopo da escola, seja para alavancar a mudança ou para reforçar a permanência/barrar as transformações. As reuniões se constituem uma arena discursiva para a qual os professores são chamados a agir pela linguagem a partir da tematização da reestruturação curricular.

Referências

AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: Outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 95-114.
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: UNESP; Hucitec, 1988.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, 2, p. 177-229, 1990.
JÚLIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001.
PETITAT, A. Produção da escola/produção da sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no ocidente. Trad. Eunice Gruman. Porto Alegre: Artes médicas, 1994.




[1] A questão do cronotopo também é abordada em estudos sobre o gênero romance nas obras de Rabelais (BAKHTIN, 1987 [1965]) e de Dostoiévski (BAKHTIN, 1997[1929/1963]).

Nenhum comentário:

Postar um comentário