Bruno Luiz Sousa Clemente*
Para sintetizar a convicção de um mundo aberto e confuso, sempre em potencial estado de liberdade e criatividade, Mikhail Bakhtin propôs o termo inconclusibilidade. A criatividade, que está presente sempre e em toda parte, é então retirada dos processos mais triviais do cotidiano, processos abertos e passíveis das mais variadas alterações. Mas essa busca no cotidiano não é por mera inspiração ou de modo casual.
Para Bakthin, a criatividade deve estar ligada à responsabilidade, e é essa consciência da criação a partir do cotidiano que encontramos em Gargântua, Quixote, Quaderna, dentre outros. Heróis que buscaram alcançar o conhecimento das mais variadas fontes para sintetizá-los em aventuras literárias. Estes elementos romanescos são possíveis justamente porque são articulados com a perspicácia dialógica e a consciência de uma investigação baseada na prosa diária:
A crítica de Bakhtin é uma autentica crítica da razão dialógica em cuja base apenas é possível uma razão dialética, que não se proponha em termos de monologia e do domínio da identidade. [...] Bakhtin busca as condições de possibilidade dentro da história do social que, para além do que se faz valer como “realidade das coisas”, contêm potencialidades de desenvolvimento [...] (PONZIO, p. 12).
Neste sentido, abordaremos o universo Ariano Suassuna, mais especificamente, aqueles criado no Romance d`A Pedra do Reino, para refletir sobre o inacabamento.
Nesta obra está exposta a voz e uma possível visão que o sertanejo tem de si mesmo e do mundo, atribuindo-lhe um caráter de inconclusibilidade ou não-finalizabilidade. Com isso, o homem no romance nordestino dialoga em suas várias possibilidades: “sua pobreza, sua miséria, o anjo e o monstro, sua beleza e sua majestade” (MARINHEIRO, 1977, p.30).
Amplamente conhecido por sua vasta obra teatral, Suassuna envereda por outro caminho, exatamente para demonstrar o caráter de infinitude do homem: “Eu fui para o romance exatamente porque algumas das coisas que eu tinha do meu mundo interior não estavam cabendo em peça de teatro” (apud MATOS, 1998, p. 214).
Esta necessidade de um maior espaço para expansão daquele caráter leva-o à escolha do romance, gênero maleável, que pode abranger várias vozes, discursos e temas. Principalmente a Pedra do Reino, em que desfilam vários enunciados como a cultura popular, a religiosidade, o cordel, a metalinguagem e que, portanto, pode ser lida das mais variadas formas. A escolha desse gênero reflete, dentro da obra, uma das variantes apontadas por Elizabeth Marinheiro, que é metalinguística ou metapoética. Quaderna, que deseja ser o Gênio da Raça Brasileira, pretende escrever uma obra que o torne esse gênio e para tal, recorre aos ensinamentos de seus professores Clemente e Samuel. Cada um defende um gênero para essa empreitada, mas que por ser fixo, como receita, acabaria por corresponder a uma visão fechada de mundo e assim, não seria possível alcançar o desejo de Quaderna de escrever “Num livro só, um “enredo, ou urdidura fantástica do espírito”, uma “narração baseada no aventuroso e no quimérico” e um “poema em verso, de assunto heróico[1]” (SUASSUNA, 1976, p 216).
Quaderna e seus professores fazem um grande debate sobre os gêneros literários, contudo, fica escolhido o romance, porque “conciliava tudo”. Num destes debates, o cantador e mestre de Quaderna, João Melchíades, ao falar de seu discípulo e das Artes menciona que “O Mundo é um livro imenso, que Deus desdobra aos olhos do Poeta! Pela criação visível, fala o Divino invisível sua Linguagem simbólica” (SUASSUNA, 1976, p 263).
Este mundo imenso que é a realidade visível do Sertão, com seus mistérios simbólicos é o reflexo do homem. O Sertão que passa a ser desdobrado, ou seja, revelado, faz parte de mais um dos processos de criação ou recriação por parte do Poeta. Recriação relacionada à idéia de inconclusibilidade, ou seja, a partir de algo que já existia, o Poeta designa um novo sentido, uma re-significação para aquela criação visível através de uma linguagem simbólica, desvendando assim o simbolismo do Sertão. Tal como Quaderna desvenda que o catolicismo romano não é suficiente para si nem para Sertão e então “Não estando muito satisfeito com o Catolicismo romano, fundei essa outra religião para mim e para meus amigos!” (SUASSUNA, 1976, p 509).
O mundo, como o livro, está aberto, suscetível aos mais variados acontecimentos, é um lugar não fechado, não concluído, assim como o homem. Ao analisar esse caráter não conclusivo do mundo e do homem, o crítico russo Mikhail Bakhtin faz uma paráfrase de um trecho da obra de Dostoievski “Ainda não aconteceu nada de conclusivo no mundo, a última palavra do mundo e sobre o mundo ainda não foi dita, o mundo é aberto e livre, tudo ainda está no futuro e sempre há de estar no futuro” (apud MORSON & EMERSON, 2008, p 55).
Para Gary Morson e Caryl Emerson, a idéia de não-finalizabilidade designa “o genuinamente novo, abertura, potencialidade, liberdade e criatividade (Idem, Ibidem)”. Ora, observa-se que Quaderna demonstra ser essencialmente não concluído, não acabado. O personagem está sempre em busca de respostas, decifrações de enigmas e decodificações de símbolos. Ouve atentamente as teorias dos gêneros, mas escolhe o que mais lhe convêm; estuda num seminário mas é expulso, entre outros motivos, por criar uma religião diferente, o “catolicismo sertanejo”; não aceita uma única forma de explicação dos fatos, por isso “[...] tenta fundir os extremos – o erudito e o popular, o moderno e o arcaico, a esquerda e a direita, o nacional e o importado” (MICHELETTI, 1997, p. 143).
Bakhtin observou em Memórias do Subsolo, que o personagem da prosa não pode ser concluído por que todas “As definições estão em suas mãos e não lhe concluem a imagem justamente porque ele é consciente delas” (BAKTHIN, 2008, p. 59). Também Quaderna detém as mais variadas definições, porque é quem organiza a narrativa de modo a conduzir o leitor à decifração do enigma central da obra, o assassinato de seu tio e padrinho Dom Pedro Sebastião. Além disso, o narrador da Pedra do Reino é consciente do seu processo de criação “Eu sabia que tudo aquilo sucede é dentro do meu sangue e daminha cabeça, da minha “memória” (SUASSUNA, 1976, p. 267).
Quaderna tem noção da realidade dura e áspera do sertão, e é essa realidade que constitui a sua autoconsciência, e como diz o crítico russo “Não são os traços da realidade que constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da personagem, mas o valor de tais traços para ela, para sua autoconsciência” (BAKHTIN, 2008, p. 53).
Desta maneira, temos um personagem que tem como autoconsciência a sua inconclusibilidade. Ele parte da experiência do cotidiano e sua visão de mundo está em construção a partir da assimilação do ambiente e seus costumes, ou seja, da prosa diária. Tal como o homem e o mundo são inconclusivos, abertos e potenciais, a Pedra do Reino, Castelo Literário de Quaderna, também resulta aberta, pois “não coloca o leitor diante de uma visão de mundo pronta” (MICHELETTI, 1997, p. 140), representando então o caráter infinito e inconclusivo:
O inquérito continua aberto e em suspenso, de modo que, pelo menos por enquanto, sua Obra ficará assim, em suspenso e aberta, dependendo sempre de novos depoimentos que o senhor nos prestar. Talvez, até, ela dure o resto de sua vida e nunca chegue a terminar (SUASSUNA, 1976, p. 843).
A última palavra não foi dita, nem sobre o mundo, nem sobre a obra e muito menos sobre Quaderna, exatamente porque cabe a ele, autoconsciente e livre, por seu caráter inconclusivo, continuar nestas buscas que talvez nunca cheguem a terminar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
MARINHEIRO, Elizabeth. A Intertextualidade das Formas Simples. Rio de Janeiro, 1977.
MATOS, Geraldo Costa. O palco popular e o texto palimpséstico de Ariano Suassuna. 1998.
MICHELETTI, Guaraciaba. Na confluência das Formas. São Paulo: Clíper editora, 1997.
MORSON, Saul Gary; EMERSON, Caryl. Criação de uma Prosaística. São Paulo: Edusp, 2008.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
SILVA JR, Augusto Rodrigues da. Morte e decomposição biográfica em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Tese (Doutorado). Niterói: Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, 2008, 216 f.
SUASSUNA, Ariano. O Romance d`A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio 1976.
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