domingo, 19 de setembro de 2010

Aproximações reflexivas entre Bakhtin e a escrita de aprendizes em fase escolar[1]



Eliane A. Pasquotte Vieira[2]

De que maneira as proposições teóricas de Bakhtin (2003 [1952-1953]) sobre gênero discursivo, enunciação e, consequentemente, sobre a relação sujeito/linguagem como um fenômeno social, histórico e essencialmente dinâmico podem ancorar um trabalho com a produção escrita de aprendizes em sala de aula? É claro que Bakhtin não estava preocupado com questões escolares de ensino-aprendizagem da escrita, mas também é inevitável que as pesquisas acadêmicas busquem fazer esta ponte à medida que as discussões bakhtinianas sobre gêneros discursivos, enunciação, sujeito e linguagem provocam questionamentos novos sobre a artificialidade das atividades escolares que envolvem a escrita. Essa artificialidade decorre de atividades — na verdade, “exercícios” — de escrita cuja proposta permanece fincada na tradicional maneira escolar de conceber a produção textual a partir do ensino formal de narração, descrição e dissertação, cujos modelos abstratos servem como parâmetros. Em decorrência dessa artificialidade, alguns estudos apontam para a existência de um tipo de gênero, típico do ambiente escolar: a redação escolar.
Para Schneuwly e Dolz (1999), é positivo pensar em gêneros escolares, já que “o gênero trabalhado na escola é sempre uma variação[3] do gênero de referência”, isso porque os autores pressupõem que, pelo fato de ser produzido em outro lugar social, ao ser deslocado para o ambiente escolar para fins de ensino-aprendizagem, o gênero forçosamente sofre transformações. Para os autores, isso é positivo desde que esse desdobramento do gênero para ensinar/aprender mantenha a função de gênero para comunicar. Para a questão que aqui se coloca sobre a artificialidade da redação escolar, a preocupação parece estar no mesmo lugar apontado pelos autores suíços, mas também e, principalmente, em outro. No mesmo, porque os limites da instituição escolar serão vistos por alguns como desdobramentos da sociedade e, por outros, como espaços próprios e, de certa forma, distanciados da sociedade, o que faz, então, surgir os gêneros escolares. Em outro, porque a atividade escolar de escrita parte, por um lado, de exercícios gramaticais para o domínio da norma culta e, por outro, da apreensão de técnicas (escolarizadas) de redação para compor tipos de texto modelares de narração, descrição e dissertação, como se estes existissem de forma independente e fossem abstraídos de uma (certa) literatura que nada ou pouco tem a ver com as esferas sociais concretas de atividades com a linguagem. Ou seja, quando a atividade escolar de produção escrita é distanciada das práticas sociais existentes nas esferas da atividade humana, são produzidos simulacros para a produção textual. A crítica se torna, então, negativa para esse gênero que é a redação escolar, porque este nasce e sobrevive distanciado das situações concretamente vividas pelos sujeitos na vida cotidiana — seja, segundo Bakhtin (2003 [1952-1953]), nos gêneros primários ou secundários — e desconsidera, portanto, o fato de os gêneros serem essenciais para, entre outras coisas, nos situar na rede complexa de enunciados concretamente produzidos nas diferentes esferas de comunicação verbal.
Apesar de Bakhtin (op.cit) relacionar os gêneros discursivos às esferas de atividade humana, inicialmente buscou reflexões para desenvolver seus pressupostos em seus estudos sobre o romance literário, pois seu objetivo básico era entender como aí se elucidavam questões de tema, composição e estilo. Bakhtin conseguiu levar ao questionamento a estética tradicional formal que pressupunha a divisão composicional dos textos literários em três moldes absolutos: narração, descrição e dissertação, como se esses modelos abstratos preestabelecessem, por si só, as formas humanas de produção de linguagem (no caso da literatura oficial e, por consequência, da escola, como fundamentos para a linguagem escrita).
Bakhtin partiu, então, da percepção de que as várias práticas de linguagem estão inseridas em práticas sociais relacionadas a determinadas esferas de atividade humana e, por isso, implicam determinadas escolhas para se estabelecerem. Nesse sentido, as categorias de tema, composição e estilo foram retomadas na perspectiva das relações sociais, históricas e culturais de uso da linguagem, o que possibilitou ao teórico russo compreender que a produção de linguagem só ocorre através de determinados gêneros do discurso (para ele, gêneros primários e secundários, ambos escritos ou orais), os quais são construídos e reconstruídos sócio-historicamente e, por isso, apesar de seu caráter estabilizador, também podem se revestir de novos contornos:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.
(BAKHTIN, 2003, p. 262 [1952-1953])

Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). (...) até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas (...) A língua materna — sua composição vocabular e sua estrutura gramatical — não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam.
(BAKHTIN, 2003, p. 282-283 [1952-1953]; grifos em itálico do autor; grifos em negrito meus)

A concepção de gêneros discursivos e de enunciação na perspectiva bakhtiniana coloca em foco as situações concretamente vividas pelos sujeitos na vida cotidiana numa rede complexa de enunciados, os quais são tidos como “um elo na cadeia da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 289 [1952-1953]). Decorre daí a noção bakhtiniana de dialogismo: todo enunciado tem relação com “o próprio falante (autor do enunciado) e com outros participantes da comunicação discursiva” (op.cit.). Para repensar a produção escrita na escola, esse sentido dialógico dos enunciados coloca as relações sujeito/linguagem em outro lugar que não é exclusivamente o da apreensão de regras gramaticais da norma padrão, tampouco o de técnicas da redação escolarizada. Se o enunciado sempre se liga a outros enunciados na complexa construção da cadeia discursiva e das relações humanas, então, é preciso considerar, para a elaboração textual, o caráter responsivo ativo existente nessas relações, determinado inclusive e principalmente, pela representação do outro em nossa elaboração enunciativa (op.cit. p.273).
No caso da elaboração escrita, deixaríamos, então, de ter um leitor virtual passivo, estático, pronto para ler e apenas aceitar ou não o que escrevemos. Como nós, este outro é ativo, inacabado por estar sempre se construindo diante de nós, tem uma história, ocupa um determinado lugar na sociedade de onde vai se posicionar para emitir sua opinião, pode estar em constante movimento intelectual ou situar-se no senso comum. Dialogamos com sua forma de pensar, com suas bases ideológicas, com seus argumentos, com sua representação de mundo, de si mesmo e dos outros, assim como também ele dialoga com tudo que nossa voz está representando ao ler o que escrevemos. É, portanto, um leitor-interlocutor ativo, com quem intercruzamos nosso discurso e com quem ativamos a responsabilidade da resposta. Este interlocutor inacabado e ativo pode ter sua voz, seu modo de pensar representado em nossos discursos de forma a compartilharmos ou a nos contrapor a essa voz. Este outro pode ser a voz de um interlocutor específico ou de uma instituição, ou de uma comunidade, de um grupo, de uma cultura, ou de uma ideologia, ou de um determinado senso comum existente. Por esse prisma, ainda que não possamos escapar completamente de mecanismos coercitivos, quaisquer que sejam eles, e da forma como mais ou menos incidem sobre nós, ou da forma como mais ou menos temos consciência disso, ainda assim, não nos constituímos meros repetidores nem apenas informantes em nossos textos, porque nos integramos na cadeia discursiva de modo ativo.
Ao considerarmos a concepção dialógica do enunciado e, portanto, o processo de alteridade que constitui o EU a partir do OUTRO e o OUTRO a partir do EU, torna-se pouco para a produção textual ter a escrita representada/idealizada/trabalhada fundamentalmente pela sua condição de tecnologia a ser utilizada apenas para atividades de codificação e decodificação, sob as regras de um sistema absoluto, pré-definido e ditador de usos. É pouco porque

o significado e a importância de um enunciado na vida (seja qual for a espécie particular deste enunciado) não coincide com a composição puramente verbal do enunciado. Palavras articuladas estão impregnadas de qualidades presumidas e não enunciadas. O que se chama de ‘compreensão’ e ‘avaliação’ de um enunciado (concordância ou discordância) sempre engloba a situação pragmática extraverbal juntamente com o próprio discurso verbal. A vida, portanto, não afeta um enunciado de fora; ela o penetra e exerce influência num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo deste jogo todo sem o qual nenhum enunciado inteligível é possível. A enunciação está na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único.
  (BAKHTIN, 1993, p. 09)

Isso significa que o foco de ensino-aprendizagem da produção textual não pode ser a língua como se bastasse um “treinamento” através de exercícios com uma modalidade padrão, pois, embora as línguas sejam códigos, estruturas e tudo que elas significam é por conta de alguma combinatória de elementos linguísticos, ao veicular as significações, estas dependem de outros fatores, como os contextos ou as circunstâncias de ocorrência dos enunciados (POSSENTI, 2001, p.16). A produção textual tem que ser vista como uma produção discursiva que se encontra no processo dialógico da alteridade e se constitui, tanto nos gêneros orais quanto escritos, primários e secundários, em escolhas conscientes e inconscientes que determinam as intenções entre os interlocutores e, portanto, a atividade dos sujeitos com e sobre a linguagem. Essas escolhas sempre estarão ligadas aos gêneros, sua composição, estilo e tema; por outro lado, o gênero discursivo é o ponto de partida para o estilo individual e, sendo assim, são escolhas que demarcam o “território de um sujeito discursivo” (VIEIRA, 2005), histórica e socialmente construído.
A noção bakhtiniana de gênero discursivo, por colocar em foco as situações concretamente vividas pelos sujeitos na vida cotidiana, pode mudar a percepção escolar sobre a produção escrita à medida que possibilita pensá-la sob outros aspectos que não seja a prática canônica de escrita escolar. O trabalho com textos, principalmente, em seus modelos (em suas “fórmulas”) de narração, descrição e dissertação, como pontos de partida para as práticas de ensino do português, ou seja, a tradicional maneira escolar de conceber a produção de leitura e escrita fincadas na concepção formal de ensino/aprendizagem de narração, descrição e dissertação não enquadra a produção textual nas práticas sócio-pragmáticas de uso da escrita. A suposta polarização entre uso correto e incorreto da língua para a escrita — na busca do certo/autorizado/institucionalizado e do errado/não-autorizado/não permitido — dilui-se à medida que o foco passa a ser o uso da linguagem dentro de um conjunto de práticas sociais de comunicação construídas e reconstruídas pelos sujeitos de acordo com as possibilidades e intenções desses sujeitos. Dilui-se, dessa forma, a artificialidade até agora empreendida nos exercícios de escrita para produzir a redação escolar porque se descaracteriza a visão canônica de escrita baseada em “fórmulas” ou técnicas capazes de dar à produção textual uma arquitetura que comporte “corretamente” o que vai ser dito — “corretamente” do ponto de vista da codificação escrita da língua padrão, como se houvesse a predeterminação de regras de uma língua fechada em si mesma, e “corretamente” do ponto de vista de que o que vai ser dito deve objetivar uma lógica impessoal, um modelo da verdade, sem pressupor o dialogismo dos discursos existentes e a sua permanente (re)(des)construção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo, Martins Fontes, 4a. ed., 2003 [1952-1953].
_____ Para uma filosofia do ato. Tradução inédita de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza de Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
POSSENTI, Sírio.  Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 2a. ed., 2001b [1988]
SCHNEUWLY, Bernard. e DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares. Das práticas de linguagem aos objetos de ensino. In: Revista Brasileira de Educação, nº 11, Tradução de Glaís Sales Cordeiro, 1999.
VIEIRA, Eliane A. Pasquotte.  A constituição de marcas de estilo e autoria para os projetos escritos de aprendizes. Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Linguística Aplicada-IEL/Unicamp, Campinas, 2005.



[1] O texto aqui apresentado é baseado no Capítulo 2 de minha dissertação de mestrado, intitulada “A constituição de marcas de estilo e autoria para os projetos escritos de aprendizes”.
[2] Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas/Instituto dos Estudos da Linguagem (UNICAMP/ IEL); Doutoranda em Linguística Aplicada - IEL/UNICAMP e bolsista CNPQ,
[3] Grifos em itálico próprios dos autores.

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